O debate sobre o vício digital é recente, mas tem raízes na virada do milênio e marcou a vivência de muitas gerações.
No dia 30 de abril de 2024, uma Comissão criada pelo governo francês publicou uma análise denominada “Em busca do tempo perdido”, a respeito da superexposição dos jovens a telas. O relatório visa alertar pais e responsáveis sobre os impactos do uso excessivo da internet na saúde, no desenvolvimento e no futuro dos jovens, além de propor orientações rígidas: nenhuma tela até os 3 anos, celular a partir dos 11 anos e acesso à internet a partir dos 13.
A Comissão reconhece a importância da tecnologia, mas afirma que ela tem sido utilizada por diversas empresas para confinar, alienar e subjugar as crianças e adolescentes. Segundo o relatório, estratégias do algoritmo virtual capturam a atenção dos usuários como forma de controle e monetização.
Paulo Beer, psicanalista e doutor em psicologia social, concedeu entrevista à Jornalismo Júnior e relatou que o documento é muito relevante no cenário atual, tendo em vista a quantidade de diagnósticos psiquiátricos que são acentuados pelo uso das redes.
Mas o entrevistado também afirma que essa realidade não é inédita, e cresce em ritmo acelerado desde o início do século 21. “A difusão [da tecnologia] se dá a partir dos anos 90, com a popularização dos computadores pessoais, e se intensifica nos anos 2000 com os aparelhos móveis”, explica Paulo.
A virada do milênio foi marcada por mudanças na comunicação, no comércio, nas formas de relacionamento e em como o ser humano percebe a si mesmo e o mundo. Apesar da televisão e do rádio já existirem há décadas, as redes sociais e a instantaneidade de transmissão condicionaram o homem a construir novas formas de vivência.
A oportunidade de estar online a qualquer momento e em qualquer lugar afetou a saúde mental da população e a convivência coletiva. “Antes, o acesso à informação só se dava em casa, na escola, no trabalho. A partir do momento em que os smartphones se propagaram, nossa forma de estar conectado se modificou”, Paulo afirma. “Isso teve efeitos muito importantes na maneira que nos relacionamos com os outros”.
O entrevistado conta que, não por acaso, começou a se instaurar um regime de socialização mediado pela tecnologia. “Os aplicativos são programados para criar uma hiperconexão, ou seja, para fazer com que o usuário fique o máximo de tempo possível conectado”.
Desde os jovens dos anos 2000, que passaram por essa transição, até as crianças que, hoje em dia, desconhecem um mundo separado da esfera virtual, todos vivem algo em comum: a vida através das telas.
Geração Y (1982-1997)
Também conhecida como geração do Milênio, foi a primeira a nascer em um mundo totalmente globalizado. Seus integrantes cresceram com o vídeo cassete, o disquete, os CDs e os DVDs, e tiveram contato com a internet de uma maneira gradual. Eles viveram sua juventude durante os anos 2000 — momento em que o boom das redes sociais enfatizou o universo de possibilidades da internet.
Segundo Paulo, um dos impactos iniciais da popularização da web foi a grande quantidade de informação disponível. A partir do estabelecimento das grandes plataformas, qualquer pessoa tornou-se um possível criador de conteúdo. “Isso faz com que comecemos a perceber os vieses que estavam presentes na informação muito centralizada”, ressalta.
Nesse período, a autoridade das instituições de informação tradicionais entra em crise. “Proliferam-se outros canais e meios, junto com os ‘especialistas’ — pessoas que não são da área e ainda assim ganham um verniz de credibilidade”, explica o psicólogo. Esse processo tem consequências ambivalentes: “a ideia de democratizar a informação é muito bem-vinda, mas ao mesmo tempo causa fragmentação e dificulta a criação de consensos na sociedade”.
Para o entrevistado, o deslumbramento vivido pelos Millennials não é injustificável. “Em um primeiro momento, existe um discurso de que todos os problemas serão resolvidos ou facilitados”, diz. O maior problema é que os usuários ainda não tinham noção do alcance de suas ações e dos riscos da exposição na Web. “A tecnologia traz ganhos palpáveis, mas não se pensava em qual direção esses avanços iriam”, complementa.
Geração Z (1997-2010)
Os integrantes da Geração Z são considerados os primeiros nativos digitais. Eles viveram, na infância, a ascensão da Web 2.0 — uma evolução acelerada das formas de interagir na internet. Por processarem as informações de maneira distinta, acredita-se que esses jovens podem ser até geneticamente diferentes das gerações anteriores.
Paulo defende que a maior diferença entre as gerações Y e Z é o parâmetro do que é o mundo sem a conexão virtual. “Existem processos de constituição subjetiva que ocorrem na infância e na adolescência”, explica. “A geração Y se desenvolveu psicossocialmente de maneira menos conectada do que as gerações posteriores”.
Segundo o psicólogo, os nativos digitais entendem melhor o universo digital e têm mais flexibilidade para habitar ambientes virtuais. Por outro lado, a geração Y consegue reconhecer melhor os malefícios causados por eles. “Tem pontos que [os jovens] estão começando a perceber agora; existem movimentos de jovens se desconectando”, relata Paulo. “Mas isso ocorre em um cenário no qual vários processos já foram estabelecidos”.
A socialização mediada pelas redes produz alguns sintomas característicos da Geração Z, como o FOMO (Fear of Missing Out), que se refere ao medo de não saber o que outras pessoas estão fazendo ou de estar perdendo algo. “O FOMO é produzido intencionalmente pelas redes sociais, porque é isso que faz com que a pessoa esteja engajada o tempo inteiro”, diz.
Outro efeito marcante para a Geração Z, segundo o psicólogo, é a Gamificação, ou seja, a aplicação das estratégias de jogos digitais em atividades do dia a dia. “É uma característica dos nativos digitais transformar tarefas cotidianas em atividades lúdicas que trazem recompensa imediata”, afirma Paulo. Ele explica que esse processo interfere na forma como a maturação cerebral dos jovens acontece, causando uma tolerância muito baixa a frustrações e à ausência de recompensa.
A internet também impulsiona a supervalorização da autoimagem, que produz sintomas majoritariamente entre mulheres. A psicóloga infantil Nívia Vivas concedeu entrevista à Jornalismo Júnior e discutiu sobre o assunto. “Existem, hoje, várias campanhas para a postagem de fotos sem filtros, porque o filtro é em si uma ferramenta danosa”, realça.
“As redes sociais vendem uma imagem padrão que gera nas meninas uma falsa percepção do corpo que elas têm”. A psicóloga conta que é comum o desenvolvimento de anorexia e bulimia já na pré-adolescência, devido à magreza extrema idealizada nas redes.
Questão de identidade
A identidade social, para a psicologia, vai muito além de uma compreensão de si mesmo: ela determina aquilo em que uma pessoa é igual e aquilo em que ela é diferente das demais. Outro problema que afeta os atuais adolescentes e jovens adultos, para Paulo, é o enrijecimento das identidades para encaixar em tribos sociais.
“O que acontece é que a circulação muito grande de ideias nas redes faz com que estejamos sempre em contato com muita gente”, afirma. “Isso convoca cada um a sustentar, ou não, essas identidades que são produzidas […] e as falhas são muito exploradas”.
O psicólogo refere-se à práticas de cancelamento e linchamento virtual, que ocorrem principalmente quando uma pessoa tem atitudes contraditórias aos ideais que ela defende. “Isso leva os jovens a utilizarem enunciados que não comportam negociação, produzindo uma incapacidade de lidar com diferentes opiniões”.
“Grandes tribunais virtuais têm uma denúncia como embasamento e geram uma enxurrada de agressividade. Isso deixa as pessoas apreensivas sobre entrar nas redes, ao mesmo tempo que têm enorme dificuldade de sair. No final das contas, a sua identidade é sempre determinada pelos outros”
Paulo Beer
Geração Alpha (2010-2024)
As crianças da geração Alpha nasceram imersas em uma rotina cercada pela tecnologia. Elas são independentes, têm grande capacidade de adaptação e facilidade de resolver problemas. Para elas, não existe fronteira física: não há distinção entre o real e o virtual.
Quando comparada à geração Z, Nívia afirma que existe uma diferença em relação ao tempo dedicado à internet, mas principalmente ao que as crianças fazem quando não estão conectadas. “Hoje, as crianças não têm a capacidade de buscar uma alternativa de leitura, ou de atividade corporal, porque ficam só na passividade do contato com a tela”, afirma.
Outra questão que se destaca é a normalização da exposição para a geração Alpha. A psicóloga acredita que a utilização da imagem de crianças, como acontece no TikTok e no Instagram, é muito maléfica. “A rede social é um caminho de uma única via. Uma vez colocado ali, é muito difícil ter controle”, diz. “Muitos pais estão tirando da criança a possibilidade de escolher o quanto ela queria ser exposta ou não”.
Nívia afirma que essas ações, em geral, estão ligadas ao narcisismo parental e a uma demonstração de sucesso para com o filho. Além disso, existe o risco de fornecer informações, como uniformes de escola e endereços, que reduzem a segurança da criança.
Limites também não carregam o significado tradicional. “Antigamente, a televisão e os jogos tinham horário. O uso do celular não tem”, explica. “Quando a criança recebe algum grau de limite — hora de tomar banho, ou fim do recreio — ela não consegue lidar”.
Um empecilho é que muitos pais das crianças Alpha são da geração Y, e, portanto, são também hiperconectados. “Para atender uma criança ou adolescente, eu converso com os pais no consultório, e eles estão constantemente mexendo no celular e não me dão atenção”, Nívia relata. A incapacidade de lidar de forma saudável com o celular gera o abandono digital: a completa não supervisão da criança na internet.
“A base do meu trabalho com crianças, adolescentes e família é prevenção: é informar e sensibilizar para mudar atitudes”
Nívia Vivas
A pandemia
O período pandêmico desencadeou diversos problemas psicológicos entre crianças e jovens, e o uso exagerado de eletrônicos ampliou suas consequências.
Entre a Geração Z, o maior impacto ocorreu no amadurecimento tardio de aspectos relacionais. Segundo Nívia, muitos jovens adultos estão passando, hoje em dia, por transformações típicas da adolescência. “Os espaços sociais para viver as experiências de experimentação, de relação e de aprofundamento, se perderam”, conta a psicóloga.
No entanto, a geração Alpha foi mais comprometida, por estar nos estágios iniciais de desenvolvimento socioemocional. “A partir dos dois, três anos, a figura pai e mãe perde a exclusividade de relevância, e a criança começa a se virar para o mundo”. Nívia explica que a pandemia impediu esse movimento, visto que o único meio de construir relações extrafamiliares era através das telas.
“As crianças ficaram fixadas em seus pais, e hoje, tendo que se relacionar socialmente, não têm ferramentas para isso”, complementa. Por esse motivo, segundo a psicóloga, existe uma tendência de aumento de diagnósticos de ansiedade e depressão na infância. A falta de exercícios físicos durante esses anos também prejudicou o desenvolvimento muscular das crianças.
Além disso, o uso intenso da tecnologia propiciou o desenvolvimento de déficit de atenção e atrasos cognitivos. Esses sintomas prejudicam a relação da Geração Alpha com a escola. “Muitas funções básicas não foram apreendidas devido ao sistema online muito deficitário”, explica Nívia. Esse sistema, que exigia conexão com a internet, dificultou a definição dos limites de uso de tela e a separação do que é adequado e do que não é.
“O uso do digital gera uma enorme quantidade de estímulo através de vídeos. É muito difícil hoje para uma criança conseguir se fixar num professor, porque não tem graça, não tem estímulo”
Nívia Vivas
Afinal, a proposta do relatório francês de controle parental é utópica, pois os próprios pais estão inseridos na cultura digital. “Mais importante do que impedir que a criança ou adolescente tenha contato com a tela, é ajudar que ele tenha consciência do dano”, diz. Nívia defende que, assim, é possível criar uma geração que cuide da sua saúde mental.
A psicóloga também ressalta que a internet pode ser benéfica para a socialização e para a educação infantil, mas ela não pode ser o centro desses processos. Para ela, parte do investimento precisa ser focado em ‘o que eu estou fazendo quando eu não estou na internet’. “É inevitável que uma criança queira brincar no computador e no telefone, mas é preciso que dure uma certa quantidade de horas e que seja oferecido a ela outras ferramentas de relação”, finaliza.
Autora: Gabriela Nangino.
Fonte: Jornalismo Júnior/USP.