Desrespeito, negligência, preconceito e até mesmo desinformação por parte de profissionais da saúde.
O acesso à saúde é garantido a todo cidadão brasileiro por lei, mas o preconceito e a discriminação afasta mulheres trans de seus direitos.
Profissionais especializados na saúde LGBTQIAPN+ lutam a favor dos direitos da comunidade, já que acolhem indivíduos marginalizados pela sociedade e excluídos das principais políticas públicas voltadas para a saúde.
A psicóloga Lisa Dutra, de 27 anos, faz parte dessa luta. A profissional, que é uma mulher trans, fornece atendimento à comunidade, oferecendo uma visão pessoal, com responsabilidade e repertório para atender à saúde mental da população LGBTQIAPN+.
Mesmo já atuando como psicóloga, Dutra compartilha que as oportunidades para ela são escassas, especialmente pelo fato dela ser uma mulher trans nascida em uma cidade do interior.
“Não é comum vermos pessoas trans trabalhando em empregos formais e de cargos altos. Tentei ser analista de RH e não importava o quão qualificada eu era, via pessoas cis e heteronormativas ocupando todas as vagas.
A psicóloga conta que as mães de alguns de seus pacientes não aceitaram que ela os atendesse ao descobrirem que Lisa é uma mulher trans: “as mães dos adolescentes transexuais diziam ter medo que eu ‘influenciasse’ a identidade de gênero deles.”
Sobre o atendimento oferecido para pessoas trans, Dutra opina ser majoritariamente despreparado e até mesmo violento:
“Depende muito dos profissionais. Quando eles são especializados, sabem lidar com a demanda e cuidar com respeito. Mas, quando não são especializados em cuidados de pessoas LGBTQIAPN+, sempre ouço sobre negligências, violências e até mesmo desinformação.”
A profissional ainda desabafa:
“Cuidar de pessoas como nós parece uma exigência absurda.”
Existe uma diferença entre a saúde pública e a privada para a população trans?
Pietra Santiago, de 19 anos, está realizando a transição há três anos e é acompanhada de forma gratuita pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Apesar da gratuidade no atendimento, a jovem frequenta majoritariamente instituições privadas, com o apoio e acompanhamento da família:
“Isso vem de um ambiente extremamente privilegiado, já que eu possuo uma família que me apoia e também tem a questão de eu ter uma ‘passabilidade’ cisgênera na sociedade, por ter começado a transicionar muito cedo.”
Dutra explica que a diferença no tratamento de postos de saúde pública e privada é evidente, considerando que os profissionais de instituições privadas possuem um melhor treinamento para tratar de pacientes transexuais.
“Já ouvi de profissionais, tanto de plano de saúde como de hospitais públicos, que o acolhimento é falho e em algumas situações até mesmo perverso, discriminatório e carregado de ideologias preconceituosas”, conta.
A psicóloga relata também que muitos de seus pacientes a buscam pela identificação:
“Eu trabalho no meio privado de saúde e o que mais ouço é que me buscam pela identificação. Ser cuidado por uma pessoa que também é trans é mais ‘seguro’. Eu entendo com uma maior compreensão a realidade que essas pessoas vivem.”
Qual seria a solução para a equidade na saúde?
Para Dutra, a saída para um acolhimento mais respeitoso seria a criação de cursos que preparassem os profissionais de saúde para um atendimento humanizado. Infelizmente, até mesmo o acesso a pesquisas e artigos especializados na saúde da população transexual é escasso, como afirma a psicóloga:
“Desde a minha formação, meu foco era cuidar de pessoas LGBTQIAPN+. Principalmente após a minha própria transição, sabia que precisava focar meus estudos na realidade de pessoas trans. Entretanto, é um pouco complexo encontrar leituras e artigos que tratam da saúde desses indivíduos. Ainda é um tema extremamente escasso em pesquisas.”
O médico ginecologista e obstetra Vitor Manga, de 35 anos, especializado em ginecologia endócrina, que envolve as questões hormonais e sexuais, afirma que a saúde trans deveria melhorar como um todo, porém, em especial, no âmbito do respeito às políticas públicas e opina os motivos pelos quais as pessoas não acolhem a população trans.
“Em primeiro lugar, pelo preconceito, pela discriminação e, muitas vezes, intolerância. O segundo empecilho é que a formação médica não incluiu ainda essa temática. O que existe sobre o tema nas faculdades de medicina ainda é muito pouco.”
Manga, que trabalha na rede privada e no SUS, diz que o sistema está se organizando para melhorar e já possui alguns ambulatórios bem estabelecidos, como o DiaTrans, em Diadema.
Por fim, o profissional compara as duas redes de serviço, apontando as semelhanças e as diferenças entre elas:
“Todo mundo está muito despreparado, os profissionais, a rede de cuidado. Desde a recepção até a enfermagem, todos estão despreparados para o atendimento da população trans. Agora, na rede privada existe mais recurso. Então, quando se implementa alguma estratégia de acolhimento, de divulgação, de facilidade de acesso, de programa social ou de atendimento, eu acabo vendo que as engrenagens rodam mais fácil.”
O que diz a lei?
Casos de discriminação e deadnaming – a prática de chamar pessoas trans pelos seus nomes mortos – são comuns e até recorrentes em serviços de saúde no Brasil, sejam públicos ou privados. Em abril de 2023, vários processos que correram no Tribunal de Justiça de São Paulo foram decididos em favor de pessoas transexuais, que foram ao órgão para reclamar seus direitos de serem atendidos.
Em uma das decisões favoráveis aos pacientes, um dos relatores cita que, segundo a Súmula 102 do TJ-SP, “havendo expressa indicação médica, é abusiva a negativa de cobertura de custeio de tratamento”, mesmo que a empresa afirme que o procedimento ou exame procurado está fora da cobertura oferecida.
Nos casos de negação de procedimentos de readequação sexual, a justificativa mais comum usada pelos planos de saúde é que as operações não estariam inclusas no rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar, a ANS. Ou seja, que as empresas não deveriam ser obrigadas a garantir cirurgias de redesignação.
Entretanto, um parecer da própria ANS tem sido usado a favor dos pacientes transexuais: o parecer técnico nº 26/GEAS/GGRAS/DIPRO/2021. Ele estipula que planos de saúde são obrigados a realizar a cobertura de cirurgias de “afirmação de gênero”, como cita o órgão. O documento permite que procedimentos como mastectomia, histerectomia, ooforectomia e tiroplastia sejam cobertos sem constrangimento adicional às pessoas trans, desde que sejam pedidos por médicos assistentes.
Além disso, a ANS deixa claro que outros procedimentos que beneficiem os pacientes podem ser incluídos no rol, e portanto fornecidos pelas operadoras dos planos.
Outra suposta justificativa oferecida pelos planos para as negações é que a cirurgia tem caráter unicamente estético. Em um dos processos consultados pela reportagem, a defesa da clínica Care Plus afirma que a paciente havia requisitado mamoplastia, uma “cirurgia plástica, portanto, de caráter meramente estético, não coberta pelo seu plano de saúde”. A argumentação da clínica foi negada, e a juíza Clarissa Rodrigues Alves decidiu “que a mamoplastia não se trata de mero desejo de cunho estético da requerente, mas, sim, de procedimento necessário à sua saúde física e emocional”.
Em 2006, o SUS introduziu, por meio da Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde, o direito ao uso do nome social – nome pelo qual transexuais se identificam e escolhem ser chamados socialmente – e não apenas nos serviços especializados que já os acolhem, mas em qualquer outro da rede pública de saúde.
As pessoas transexuais têm direito a sete tipos de cirurgias que integram o SUS. A primeira é a de redesignação sexual, feita exclusivamente em mulheres transexuais e travestis, instituída em 2008. Em 2013, o protocolo foi ampliado para incluir outras possibilidades.
Autores: Beatriz Felizardo, André Preturlan, Thiago Bomfim e Fernanda Nakazoni.
Fonte: Cásper Líbero.