Em vigor desde 2023, protocolo sancionado pelo presidente Lula obriga estabelecimentos a prevenir constrangimento e violência contra mulheres.
Desde 2023, com a formulação do artigo 216-A, o assédio contra as mulheres passou a ser crime prescrito na Constituição brasileira. De acordo com o código penal, “o assédio sexual é o crime de constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função”.
A existência legal da proteção para as mulheres contra o assédio no Brasil é um avanço perante a luta contra situações de abuso sexual ou de poder em qualquer ambiente. Porém, o assédio não tem hora ou lugar – e, com a presença de bebidas alcoólicas na jogada, as chances de uma tragédia aumentam paralelamente.
Em fevereiro de 2024 uma parceria da empresa de bebidas alcoólicas Johnnie Walker com a startup “Women Friendly“, gerou a pesquisa “Bares sem assédio”, liderada pelo Studio Ideias. Duas mil e duzentas mulheres com mais de 18 anos foram ouvidas em todo o país. Dessas, 66% afirmam terem sido assediadas em bares, baladas, restaurantes ou casas noturnas.
Nesse sentido, uma crescente preocupação a respeito da violação dos direitos das mulheres tem sido expressa e reconhecida por meio de novos projetos, que abrangem a realidade feminina e trazem maior segurança em locais como bares, shows e casas noturnas.
Protocolo “Não se Cale”
Sancionada pelo atual Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, a lei conhecida como “Protocolo Não se Cale” traz a obrigatoriedade, desde junho de 2024, do apoio às vítimas ou às mulheres que se sentirem ameaçadas a uma maior quantidade de estabelecimentos. Dessa forma, torna-se dever das localidades algumas instruções.
“Em primeiro lugar, o estabelecimento tem que estar bem sinalizado. Temos um padrão de cartazes que têm que estar em um local bem visível, também nos banheiros femininos, nos espaços que são frequentados pelas mulheres”, contam Marcelo Pagotti, diretor de fiscalização, e Regiane Costa Campos, assessora técnica. Ambos são profissionais no Procon de São Paulo.
Mas, para além de saber que a mulher pode contar com uma rede de proteção, essa rede tem de ser eficiente. “Tem que ter funcionários treinados para prestar esse atendimento com qualidade, para não revitimizar essa mulher. É interessante que seja feito um curso, porque isso é uma obrigação legal. O curso é bem amplo. Vai treinar bem aquele funcionário para que ele tenha condições de dar o atendimento, chamar a polícia, encaminhar a um serviço médico, fazer tudo direitinho”, finalizam.
Garantir a segurança para mulheres nesse tipo de ambiente é essencial para que seja cumprido outro direito básico no cotidiano: o de ir e vir. A pesquisa “Bares sem assédio” também constatou que 53% das entrevistadas já deixaram de ir a um bar ou balada por medo de assédio, e apenas 8% delas se sentem confortáveis em visitar esse tipo de estabelecimento sozinhas. Das que contam já ter sofrido algum tipo de assédio, 89% não denunciaram as agressões, 24% por não saber como.
Estratégias para a proteção das mulheres
Em São Paulo, muitos bares e restaurantes têm pensado em formas de facilitar a denúncia para as mulheres, de forma segura e discreta – visto que, em muitos casos, o agressor é também acompanhante da mulher naquele ambiente. Bares, como o “Mule Mule Muleria”, localizado no Alto de Pinheiros, criaram códigos para que a mulher em risco denuncie sem o medo de uma retaliação: basta você pedir ao garçom uma bebida secreta, a qual o nome só está disponível em banners encontrados dentro do banheiro feminino – e que não vamos divulgar nessa matéria para preservar a exclusividade dessa informação apenas para mulheres que possam precisar usar o código diante de seus agressores.
“A empresa não tem só um caráter de gerar lucro. Ela precisa ter uma função social. Essa lógica, que a maioria das empresas segue, não faz sentido nenhum para mim”, diz Diogo Sevilio, sócio do “Mule Mule”. Ele se preocupa com a possibilidade de as pessoas enxergarem o selo como apenas uma obrigação, e não de fato se engajarem no protocolo.
Apesar disso, ele contou que o “Mule Mule” vai passar por uma transformação: dia 14 de abril o bar fecha e reabre no fim do mês, agora como “Pindura”. O que não muda é a presença do protocolo, que mesmo com a reabertura, vai continuar mantendo os banners e o treinamento em ordem. “Fora a gente viver em uma comunidade machista, a gente trabalha em um ambiente que normaliza esse comportamento. É preciso fazer diferente”, finaliza Diogo.
Esse tipo de iniciativa é um primeiro passo para a garantia de segurança pública para as eventuais vítimas.
“Essas estratégias visam trazer mais segurança às mulheres que frequentam os ambientes mencionados na lei, estabelecendo um sistema de condutas que devem ser seguidas, tanto pelo estabelecimento, quanto pelos funcionários. Então, essas medidas visam, principalmente, não só a punição do agressor, mas o acolhimento da vítima e o respeito das suas decisões, preservando a dignidade, a honra e intimidade dessa mulher que foi violentada”, diz a advogada Anelise Borguezi, pós-graduada em Direito pela USP e sócia do Borguezi e Vendramini, Advocacia para Mulheres e Minorias.
Em entrevista, o Procon informou que a lei não exclui outras medidas benéficas e que todos os estabelecimentos podem, com certeza, adotar algo a mais. No curso de capacitação, oferecido gratuitamente pela Secretaria de Proteção à Mulher de São Paulo, os funcionários são treinados para verificar e identificar se mulheres se encontram em condição vulnerável. Em caso positivo, esses funcionários saberão como se aproximar, verificar se é o caso de chamar o SAMU ou alguma outra autoridade. Além disso, a Dr.ª Anelise ressalta que a lei é recente e “ainda é cedo para dizer sobre o quão eficiente essa medida é”, mas, acredita que a adoção deste protocolo pode trazer um impacto positivo se bem implementado.
Mas sempre será implementado?
É importante lembrar que, apesar de só ter se tornado lei em junho de 2024, a campanha de implementação do protocolo aconteceu entre os dias 20 de novembro e 11 de dezembro de 2023; mas ainda há estabelecimentos que não contam com a iniciativa.
O Senhor Petiscos é um bar localizado no Moinho Velho, em São Paulo. Apesar de acreditar que as estratégias sugeridas pelo “Não se Cale” são essenciais para todo e qualquer estabelecimento, os donos e funcionários alegaram não saber que o protocolo existia. “Agora entrou em vigor algumas leis novas, algumas coisas novas, a gente ainda não está por dentro de tudo ainda”, diz Danilo Tricanico, dono do bar. Ele acredita que a disseminação do protocolo não foi ampla o suficiente para se tornar conhecimento de todo o público.
Já o Procon afirma que tem feito uma orientação ostensiva e levado profissionais a campo para orientar os fornecedores, para que não haja – justamente – alegações de desconhecimento. Também foi informado que o trabalho tem sido feito em conjunto com a Secretaria de Proteção de Políticas para as Mulheres e, por exemplo, a Associação de Bares e Restaurantes solicitou que o Procon faça uma apresentação do protocolo para os associados.
Em dezembro do ano passado, aconteceu uma “blitz” do protocolo em bares e restaurantes de São Paulo. O Procon enviou fiscais, para conferirem se o “Não se Cale” havia sido posto em prática nos estabelecimentos – e, caso não houvesse, realizar os procedimentos de retaliação. “De pronto, ele pode ser autuado. O fiscal faz um relato da situação, que é apreciado internamente e pode ser sancionado. Vai depender da conduta, a parte da conduta que ele deixou de cumprir. As multas são graduadas internamente, conforme o porte do estabelecimento e a conduta que ele praticou”, contam Marcelo e Regiane, e completam informando que as próprias mulheres podem denunciar os estabelecimentos no site do Procon.
A Dr.ª Anelise acredita que os códigos podem ser uma estratégia eficiente, contanto que os agressores não tenham acesso a eles. “Para que tenhamos dimensão sobre a eficiência, é preciso que o código seja sim amplamente divulgado para eventuais e possíveis vítimas: as mulheres. Mas, ao mesmo tempo, ele não pode ser tão divulgado assim para que os eventuais agressores não tenham acesso a ele. Como a legislação ainda é recente, nós precisamos ainda de tempo para ver como essa sugestão de código vai ser implementada para saber sobre sua eficiência ou não”, diz.
Tarda, mas não falha
A demora para que esse tipo de legislação fosse elaborada se dá por inúmeros motivos, como a cultura misógina e patriarcal na qual a sociedade é calcada. Mas, para a Dr.ª Anelise, esse atraso é principalmente causado pela falta de representatividade feminina no poder legislativo:
“Hoje em dia, o nosso legislativo é formado majoritariamente por homens, que pouco entendem, ou sequer se interessam, pelos problemas e violências que as mulheres enfrentam no dia a dia. Então, se não há uma provocação das mulheres, seja por meio de movimentos sociais, ou pelas mulheres que ocupam esses espaços, por mais que elas sejam poucas, é muito difícil que eles tenham interesse em formular políticas públicas e leis nesse sentido.”
No caso dessa lei em específico, foi necessário que um caso midiático ocorresse para que se reconhecesse a importância de uma lei de políticas públicas que protegesse as mulheres em estabelecimentos que tenham a venda de bebidas alcoólicas: o caso do ex-jogador Daniel Alves. Ele foi condenado por “agressão sexual” – sentença que, no Brasil, equivale ao crime de estupro – contra uma mulher de 23 anos que, segundo a corte, foi abusada por Alves no banheiro de uma discoteca em Barcelona na madrugada de 31 de dezembro de 2022.
Esse caso evidenciou outra situação que, aos poucos, vem se tornado corriqueira na vida de mulheres ao redor mundo: a da cultura do estupro. “Já estava mais do que na hora de tirar essa cultura do estupro, essa coisa horrosa. A lei, ela vem para garantir mesmo, agora está escrito, quem não cumprir será punido, mas a sociedade tem que abraçar. As pessoas têm que cobrar dos estabelecimentos a sinalização, o atendimento adequado, não só as vítimas, quem estiver perto também é um pouco responsável para garantir a segurança. A garantia do direito ao lazer e a diversão sem ser importunada, sem ser assediada, a mulher tem que se sentir à vontade naquele momento sem ser importunada. A gente tem que cuidar de quem está hiper vulnerável”, finaliza Regiane Costa Campos.
Autores: Clarissa Palácio, Julia Paixão, Mariana Lumy e Nico Diniz.
Fonte: Cásper Líbero.