Entenda como a mulher indígena é importante na política, sobretudo para aquelas que não são vistas.
As eleições de 2022 demonstraram o poder da resistência dos grupos minoritários indígena que aumentaram o número relativo de suas candidaturas. Mesmo com essas mudanças significativas, de acordo com dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o cenário permanece desigual nas porcentagem gerais: aproximadamente 50% se autodeclararam brancos, enquanto os indígenas representavam 0,64%. Já o percentual de mulheres na disputa somava apenas 34% das candidaturas.
A história das mulheres na política brasileira é recente, sendo o voto feminino permitido apenas a partir da Constituinte de 1934; e isso se intensifica quando analisamos o protagonismo feminino nas políticas indígenas.
A proporção das candidaturas indígenas duplicou se comparado com as estatísticas de 2014. Em números, passaram de 85 para 186 candidaturas, representando um salto de 0,32% para 0,64%. E quanto às mulheres indígenas? Ao cruzar os dados, o TSE informa que as candidaturas femininas e indígenas somam apenas 85, o que corresponde a 0,86% no país todo.
Em entrevista à Agência Câmara, a ex-deputada Joenia Wapichana (Rede-RR) avaliou que o aumento do interesse dos indígenas em se candidatar reflete a necessidade destes povos defenderem seus próprios interesses e necessidades.
Política indígena X Política indigenista
Um panorama de lutas
Tatiane Klein, pesquisadora discente junto ao Centro de Estudos Ameríndios da USP (CEstA) e atuante junto aos povos guaranis, explicou em entrevista à Jornalismo Júnior que a política indigena tem como foco o protagonismo dos próprios indígenas enquanto agentes de política. Em contrapartida, a política indigenista tem essas populações como objeto de políticas públicas.
Segundo ela, porém, o amadurecimento progressivo do movimento indigena desde a década de 70 e o crescimento no número e diversidade de organizações nativas, dirigidas pelos próprios indígenas, sugerem uma mudança no significado das expressões (indígena e indigenista) para encaixar no quadro complexo atual.
De acordo com a Organização Povos Indígenas no Brasil (PIB), a expressão “política indigenista” foi utilizada por muito tempo como sinônimo de toda e qualquer ação política governamental que tivesse as populações indígenas como objeto.
Essas políticas remontam ao Brasil Colônia, sendo inauguradas em 1755 com a criação do Diretório dos Índios. Este documento foi o principal no que tange o tratamento e visão dos colonizadores perante os povos originários.
As diretrizes do documento objetivavam aplicar uma ética disciplinadora e moralizante por meio da construção de aldeamentos coletivos e do trabalho exploratório. A discente entrevistada sugere que isso significou um projeto “civilizatório” que deixou profundas marcas de morticínio no coração das culturas tradicionais.
Na época, o índigena era visto como um “habitante da selva”, “bárbaro”, que não conhecia as leis nem a civilização. Tatiane explica: “O pensamento colonial acreditava na integração do indígena como um ser submisso, de maneira que receberia, por meio da tutela, da ética religiosa e do trabalho, os valores da civilização ocidental”.
Essa ética eurocêntrica não foi recebida passivamente pelos indígenas, e uma das pioneiras no processo de resistência feminina foi a indígena Clara Camarão.
Ainda que as informações historiográficas sobre a indígena sejam escassas, a Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro produziu artigos, exaltando sua participação e de outras mulheres na Batalha de Tejucupapo, ocorrida no século XVII, e ainda hoje é lembrada no imaginário popular dos moradores de Goiana – Pernambuco.
Com seu nome presente no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria desde 2017, a indígena Clara Felipe Camarão viveu a maior parte de sua vida na capitania de Pernambuco, em meados do século XVII. Batizada por jesuítas, por quem recebeu seu nome, foi importante liderança nas guerras contra os holandeses.
Sua participação nas guerras de restauração pernambucana ajudou a construir a memória heróica indígena. Clara teria formado um pelotão feminino para lutar na Batalha dos Guararapes, em 1648, onde nativos e portugueses aliaram-se contra as tropas holandesas invasoras. Devido a seus feitos de coragem, Clara obteve o título de “Dona” (exclusividade da elite de senhoras brancas).
Guerreiras como a Clara se utilizaram das trincheiras como estratégia para se esconder e surpreender seus inimigos. Exemplo disso é que misturavam água com pimenta para alvejar os olhos dos que os atacavam. Desorientados, eram abatidos pelas mulheres até sua derrota.
Essas figuras históricas influenciam de muitas formas a sociedade até os dias atuais. Desde 1993, encenações da Batalha de Tejucupapo são realizadas no último domingo de abril, no povoado de Tejucupapo, em Goiana, como uma maneira de homenagear essas mulheres.
O passado no presente
A discriminação é expressa desde os tempos antigos. Exemplo disso pode ser observado com a progressão da visão discriminatória no artigo 73 do regulamento de 1854 sobre a Lei de Terras (Lei 601, de 18/09/1850), que determinava a medição das terras da província “onde existirem hordas selvagens“, termo utilizado para se referir aos coletivos indígenas.
Essa mediação, segundo a pesquisadora Tatiana Klein, deveria valer por meio de ações violentas, imobilizando as terras para o aldeamento civilizatório. “As reservas foram sempre justificadas como a favor da proteção aos indígenas. Mas o legado disso foi espúrio territorial, confinamento, aglomerações forçadas, que, mais tarde, foram reconhecidas como violações dos direitos humanos”.
A Proclamação da República deu continuidade à visão integracionista do período imperial. A cultura e territórios dos povos indígenas permaneciam sendo afetados agora pelo avanço dos valores da civilização industrial. Tatiane afirma que as elites e o Estado brasileiro consideravam o índigena como “a negação do progresso e do desenvolvimento, um sinal de atraso para a nação”.
Segundo alguns estudos antropológicos expostos no 30° Simpósio Nacional de História, a construção da estrada de ferro Noroeste do Brasil, no Estado de São Paulo, no início do século, o grupo Kaingang quase foi levado ao extermínio. “A violência foi tal que um relato da época noticiava que o divertimento dos trabalhadores da estrada aos domingos era passarinhar índio”.
Os Kaingang hoje vivem em mais de 30 terras indígenas, que representam uma pequena parcela de seus territórios tradicionais. Por estarem distribuídos em quatro estados (Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo), a situação das comunidades apresenta as mais variadas condições. Contudo, apesar de séculos de invasões a suas terras, escravização e massacres, sua estrutura social, língua e princípios cosmológicos continuam vigorando.
Azelene Kaingang é representante dessa resistência. Indígena do povo Kaingang da metade Kamé, nasceu na Terra Indígena Carreteiro, no estado do Rio Grande do Sul em 1965. Possui formação em sociologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná e mestrado em dinâmicas sociais e políticas regionais da Universidade de Chapecó.
Entre 2003 e 2007, participou da redação e aprovação da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, sendo a representante dos indígenas brasileiros. Em razão dessa atuação e de outros movimentos, Azelene recebeu, em 2006, o Prêmio Nacional de Direitos Humanos e, quatro anos depois, recebeu a Comenda da Ordem do Mérito Cultural 2010.
As lutas dos Kaingang com os trabalhadores da construção da ferrovia foram responsáveis pela criação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e da organização de expedições de pacificação em 1910. Esse órgão não oferecia proteção, mas deu continuidade à política integracionista do indigena à sociedade nacional.
No período republicano, prosperaram as ideias de uma sociedade industrial fundamentada numa matriz racial branca de origem europeia. “O ideal de branqueamento da população nacional, essencial ao positivismo cientificista, não admitia qualquer diversidade que fizesse questionar o conceito de unidade nacional”, comenta a pesquisadora.
O Estado brasileiro prolongava a cultura de massacre das populações étnicas. “O desenvolvimentismo via a Amazônia e os interiores como um vazio que precisava ser tomado para o avanço da nação”. Tatiane esclarece que houve um contínuo processo de liberação das terras indígenas para a criação de colônias agrícolas: “Os indígenas eram considerados ‘inimigos internos’, termo registrado no relatório da Comissão da Verdade”.
Em meio às acusações de corrupção e inação, o órgão foi extinto e, em 1966, substituído pela Fundação Nacional do Índio (Funai), que manteve a política indigenista no século XX.
Na prática, Tatiane conclui que “as políticas indigenistas significaram um paradoxo entre o reconhecimento dos direitos formais e seu desrespeito sistemático e a destruição da cultura indígena, justificada através de uma teoria de cristianização, progresso da civilização e integração”.
Em relação à repressão por parte do Estado em relação aos movimentos sociais e políticos no Brasil, durante os anos de 1970, não impossibilitou que o movimento indígena buscasse a organização e a articulação apesar das lideranças estarem sob constante vigilância e disciplinamento político.
O início da protagonização indígena
Os anos de 1970 marcaram a época em que os grupos indígenas passavam a se reconhecer politicamente dentro do contexto sociocultural brasileiro. Houve o florescimento das organizações indígenas em grandes assembleias, num senso de solidariedade “pan-indígena”, ou seja, entendendo que os problemas eram enfrentados por todos os povos mesmo em seus diferentes contextos étnicos.
As assembleias eram organizadas por agentes externos, como entidades de defesa dos direitos indígenas e organizações religiosas. Tatiane esclarece que o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) teve um papel fundamental no processo de articulação e politização dos diferentes povos em todo território nacional.
Segundo a pesquisadora, o panorama dos anos 1980 na política do Brasil era marcado por inúmeras manifestações e as lutas políticas que desencadearam profundas mudanças no contexto nacional, que se estenderam ao movimento indígena. “As mobilizações sociais contra a ditadura e a favor da redemocratização possibilitaram a ação dos líderes indígenas em questões políticas e jurídicas perante o Estado e à sociedade brasileira”, explica
Esse processo resultou na criação, em 1980, da União das Nações Indígenas (UNI), organização de defesa dos direitos dos povos originários de caráter nacional. A discente ainda complementa que, diante da tutela do órgão indigenista Funai, “Foram constantes os relatos de perseguição, prisões arbitrárias, ameaças e intimidações direcionadas principalmente aos líderes defensores como Marçal Guarani”.
Marçal de Souza, ou Tupã-Y, liderança do povo Guarani Ñandeva, é uma das figuras de maior destaque na resistência indígena. Seu assassinato completa esse ano 40 anos sem encontrar os mandatários.
José Laerte Cecílio Tetila, político e historiador que pesquisou a vida de Marçal de Souza, descreve um pouco da vida do indígena. “Em Tey Kuê, onde morava, Marçal se depara com atos de corrupção praticados por agentes da Funai. Nessa área, ele denuncia a venda indevida de madeira, de erva-mate, de gado e a venda temporária de meninas indígenas, em idade entre 12 e 15, para serem exploradas sexualmente”, explica.
Em 1980, o Papa João Paulo II, em visita ao Brasil, escolheu Marçal de Souza para falar em nome dos povos indígenas, devido ao destaque que suas denúncias tinham ganhado.
Em uma assembleia de preparação, as lideranças indígenas se recusaram a dançar para o sumo pontífice, alegando que não havia motivo para dançar, mas para “chorar os nossos mortos”. “Este é o país que nos foi tomado. Dizem que o Brasil foi descoberto, o Brasil não foi descoberto, não, Santo Padre, o Brasil foi invadido e tomado dos indígenas. Esta é a verdadeira história”, disse ao Papa.
Além do discurso, entregou ao pontífice uma carta com os nomes de políticos e autoridades consideradas inimigos dos indígenas no Brasil. A amplitude gerada pelas acusações e denúncias do Guarani fez com que as ameaças e perseguições a ele aumentassem significativamente.
O assassinato da liderança Guarani já era alertada pelo próprio. Durante um debate no Rio de Janeiro, em setembro de 1983, junto com os então ministros Darcy Ribeiro e Dom Tomás Balduíno, Marçal afirmou: “Eu sou uma pessoa marcada para morrer. Mas por uma causa justa a gente morre!”.
Menos de um mês depois, em 25 de novembro, dois homens foram até a casa de Tupã-Y pedir remédio contra malária. No entanto, o objetivo deles era outro: o líder foi assassinado em sua própria casa, na aldeia Campestre. Conforme apontou sua filha, Édina de Souza, foram “cinco tiros, um primeiro na boca, e quando ele já estava caído no chão, deram mais dois tiros, um em cada rim”.
A morte do Guarani teve repercussão internacional. Diversas figuras públicas, entidades e organizações exigiram a apuração rigorosa dos fatos e condenação dos culpados.
Um telegrama enviado de Darcy Ribeiro ao governador do Mato Grosso do Sul dizia que “o sangue do líder indígena, que foi o mais alto intelectual do Mato Grosso, emporcalhará sua memória se seus assassinos não forem descobertos e entregues à justiça”.
Na direção contrária, o governo do Estado tentava minimizar o crime. O chefe da Casa Civil da época, Plínio Soares da Rocha, divulgou nota apontando a primeira mulher de Marçal como mandante do crime, para caracterizá-lo como passional e não político. A mídia na época reforçou a versão, retratando o assassinato como uma ”briga entre índios”.
Em 2008 o crime prescreveu e ninguém foi responsabilizado pela morte de Tupã-Y. Postumamente, foi condecorado como Herói Nacional do Brasil.
Com a morte dessa liderança, os povos indígenas reforçam sua atuação, organizados como grupo de pressão social e política na pré-constituinte de 1987/88. Mesmo sem amparo jurídico – o movimento indígena sobrevivia a partir de uma “ilegalidade tácita” – foi um passo importante para que os líderes atuassem efetivamente na elaboração do Capítulo VIII, “Dos Índios”, da Constituição Federal de 1988.
Tatiane explicita que os artigos 231 e 232 significaram o reconhecimento das organizações indígenas como legalmente aceitas e pela primeira vez, podiam exercer sua voz ativa e defender eles mesmos seus interesses: “Os indígenas saem da chave de tutela e passam a ser reconhecidos como cidadãos brasileiros”;
Art.231. “São reconhecidos os índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre suas terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar os seus bens”.
Art. 232. “Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo”.
Em 1989, ocorreu em Altamira, o 1° Encontro dos Povos Indígenas do Xingu com o objetivo, por parte da Funai, de aumentar a participação dos povos indígenas na tomada de decisão de questões que os afetam diretamente. No encontro, estava o diretor da Eletronorte, José Antônio Muniz, que defendia os projetos econômicos da empresa na instalação da usina hidrelétrica sobre o rio Xingu.
Em ato de protesto, a indígena Tuíre Kayapó de 19 anos na época se dirigiu aos palestrantes e fala palavras indignadas primeiro batendo uma lâmina de facão contra a superfície da mesa, depois brandindo-o no alto em frente ao engenheiro da estatal.
Tuire, neste momento, pressiona a lâmina na face esquerda de Muniz, cuja cabeça cede ligeiramente para os lados sob a pressão do instrumento e então declara: “A eletricidade não vai nos dar a nossa comida. Precisamos que nossos rios fluam livremente. O nosso futuro depende disso. Nós não precisamos de sua represa”. Tão logo realiza seu ato, Tuíre vira as costas para a mesa e sai. Por trás da mesa, um bloco de corpos masculinos permanece estático enquanto tudo se desenrola: os homens não se mexem, nenhum braço se levanta.
Com o ato que realizou neste encontro, Tuíre se tornou mundialmente reconhecida graças ao registro fotográfico captado por Paulo Jares, que estampou revistas e jornais.
Essa fotografia colorida é a capa do número 1.925 da revista Manchete, de 11 de março de 1989. A legenda, em letras brancas de tamanho discreto no centro da página, conta que “A índia Tuíra, dos caiapós, ameaça com um facão o diretor da Eletronorte. Momento de tensão no encontro indígena de Altamira”.
O avanço do debate sobre os marcos regulatórios dos direitos indígenas na Constituição Federal de 1988 abriu espaço para a política de adoção de alguns documentos internacionais.
É o caso da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, aprovada pela ONU, em 2007, em que fica explícito a possibilidade dos povos originários viverem conforme suas tradições e costumes ancestrais, reforçando suas próprias instituições sociais e políticas. Assim, a Declaração estabelece no:
Artigo III – Os povos indígenas têm direito à autodeterminação. Em virtude desse direito determinam livremente sua condição política e buscam livremente seu desenvolvimento econômico.
Artigo V – Os povos indígenas têm o direito de conservar e reforçar suas próprias instituições políticas, jurídicas, econômicas, sociais e culturais, mantendo ao mesmo tempo seu direito de participar plenamente, caso o desejem, da vida política, econômica, social e cultural do Estado.
Artigo X – Os povos não serão removidos à força de suas terras ou territórios. Nenhum translado se realizará sem o consenƟ mento livre, prévio e informado dos povos indígenas interessados e sem um acordo prévio sobre uma indenização justa e equitativa e, sempre que possível, com a opção do regresso.
Na contramão dos artigos da ONU, o Brasil começa a debater a tese do Marco Temporal. Apresentado pelo então deputado federal Homero Pereira, o projeto de lei 490/07 determina que os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras se estivessem em sua posse antes do dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal.
O Marco Temporal: reconstrução e continuação da luta que nunca acabou
A tese do Marco Temporal surgiu em 2007 e sempre foi permeada por debates sobre sua constitucionalidade ou não. Mas foi no dia 30 de maio de 2023, que a Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei sobre o marco temporal da ocupação de terras por povos indígenas.
Em entrevista a Jornalismo Júnior, Chirley Pankará, doutoranda em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo e ativista indigena do povo Pankará, afirma: “É uma ideia ilegal e inconsticional, porque viola os direitos fundamentais dos povos indígenas previstos no artigo 231 da Constituição Federal, em que todos o territorios indígenas ocupados devam ser respeitados.”
Além disso, uma comissão mista, integrada por deputados e senadores, também aprovou o texto da Medida Provisória 1154, que retira a competência da demarcação de terras indígenas do Ministério dos Povos Indígenas (MPI).
Segundo Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas (Apib), o PL 490 e a Medida Provisória (MP) representam um retrocesso para os direitos dos povos indígenas e para a preservação dos biomas brasileiros, inviabilizando as demarcações de terras indígenas.
A nota técnica Nº05/2023 do departamento jurídico da Apib aponta, além do marco temporal, outras ameaças aos indígenas brasileiros apresentadas no PL 490. Segundo o documento, o projeto de lei propõe a liberação de construções de rodovias, hidrelétricas e outras obras em terras indígenas sem consulta livre, prévia e informada das comunidades afetadas, violando tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário como a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
O PL também autoriza qualquer pessoa a questionar procedimentos demarcatórios em todas as fases do processo (inclusive os territórios já homologados), flexibiliza a política indigenista do não contato com os povos indígenas em situação de isolamento voluntário e reformula conceitos constitucionais da política indigenista, como a tradicionalidade da ocupação, o direito originário e o usufruto exclusivo.
Em uma entrevista ao UOL, a deputada federal Célia Xakriabá (Psol-MG) afirma: “É um genocídio legislado, é usando a estrutura do governo, a estrutura do Estado brasileiro, com uma caneta, para assassinar os povos indígenas”.
A Ministra dos Povos Indígenas Sônia Guajajara também se pronunciou em suas redes sociais no mesmo dia que foi aprovado em caráter de urgência:
Chirley explica que a tese do marco temporal nasceu praticamente encomendada pelo setor ruralista, que com grande influência econômica conseguiu ao longo dos anos aumentar sua bancada no Congresso Nacional e assumir um papel anti-direitos quanto à demarcação de terras indígenas e quilombolas: O que preservamos dentro das nossas terras é revertido em mercadoria e lucro lá fora”
Segundo a Apib, grande parte da mobilização a favor do Marco Temporal afirma que a demarcação das terras indígenas interfere em direitos individuais e em questões relacionadas com a política de segurança nacional na faixa de fronteiras, política ambiental e assuntos de interesse dos Estados da Federação e outros relacionados com a exploração de recursos hídricos e minerais.
Com o Marco Temporal aprovado, todas as terras indígenas, independentemente da situação e da região em que se encontram, serão avaliadas de acordo com a tese, colocando 1393 terras indígenas sob ameaça direta.
“Nós, povos indígenas, preservamos a maior parte da biodiversidade. É dentro de nossos territórios que está garantida a proteção da Mãe-terra, é lá que está garantido os rios limpos, nossa fauna e flora, a memória de nossos ancestrais. Se o Marco Temporal passar, tudo isso é destruído”, afirma Chirley.
Em um documento elaborado em parceria com o Núcleo de Justiça Racial e Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e a Comissão Arns e com o apoio do Instituto Clima e Sociedade (ICS), os especialistas ressaltam que a tese do marco temporal coloca em risco não só os povos indígenas, mas também os serviços ambientais gerados por suas terras e terá efeitos de longo prazo no aumento da emissão de gases de efeito estufa:
“[…] as terras indígenas são responsáveis por resfriar o planeta. Elas compõem o ciclo hídrico global – suas árvores transpiram 5,2 bilhões de toneladas de água diariamente, contribuindo com as chuvas das regiões Sul e Sudeste por meio dos rios voadores. A importância desses territórios preservados é tamanha que, caso fossem substituídos por pastagens ou por culturas agrícolas, a temperatura da região aumentaria, respectivamente, em 6,4ºC e 4,2ºC”, diz um trecho do documento.
Dados da Organização das Nações Unidas (ONU) também apontam que os territórios tradicionais indígenas abrangem 28% da superfície terrestre do mundo, mas abrigam 80% de toda a biodiversidade planetária. Segundo Pankará, isso comprova que atentar contra os direitos dos povos originários é atentar à preservação do meio ambiente. “Quando lutamos contra o marco temporal, estamos lutando por nós, povos indígenas, pelo meio ambiente e pela nação”.
A ativista nota um aspecto peculiar na luta que ressurgiu: a presença de mulheres na vanguarda política. Nomes como Joenia Wapichana, Sonia Guajajara e Célia Xakriabá são constantemente citados na grande mídia como linha de frente: “Essas mulheres são a cura da terra. São mulheres do cocar, do maracá e da caneta. São mulheres que sabem a importância de preservar o território, de demarcar nossas terras e a importância de resistir contra o Marco Temporal”.
Joenia Wapichana é uma mulher dos ‘primeiros’. Isso porque foi a primeira mulher indígena a se formar em direito no Brasil, em 1997, pela Universidade Federal de Roraima (UFRR). Posteriormente, conquistou o título inédito de mestre pela Universidade do Arizona, nos Estados Unidos.
No Supremo Tribunal Federal (STF), a indígena também protagonizou um marco ao ser a primeira advogada indígena da história a realizar uma sustentação oral durante o julgamento que definiu a demarcação da TI Raposa Serra do Sol (RR).
Em 2018, Joênia Wapichana (Rede) recebeu 8.491 votos e foi eleita Deputada Federal pelo estado de Roraima. A ativista também é a primeira mulher indígena a assumir a Presidência da Funai, em mais de 50 anos de história do órgão.
Sonia Guajajara é graduada em Letras e Enfermagem pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) e pós-graduada em Educação Especial e destacou-se por sua luta em defesa dos direitos dos povos indígenas, seus territórios e por sua luta pelas causas socioambientais.
Internacionalmente reconhecida, recebeu o Prêmio Packard concedido pela União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN), em reconhecimento à sua coragem e determinação na defesa do meio ambiente e dos direitos humanos. Também foi eleita uma das 100 pessoas mais influentes de 2022 pela revista TIME.
Sônia Guajajara representou os povos indígenas do Brasil em várias conferências internacionais sobre meio ambiente e mudanças climáticas, incluindo a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP-27), destacando a importância da preservação das florestas, do conhecimento tradicional e dos seus territorios, denúnciando invasões, desmatamento e exploração ilegal nas terras indígenas
Sonia também fez parte da Coordenação das Organizações e Articulações dos Povos Indígenas do Maranhão (Coapima), da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e atuou como coordenadora executiva da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil).
Nas eleições de outubro de 2022, a líder indígena teve mais de 150 mil votos válidos e foi eleita deputada federal por São Paulo. Além disso, é a primeira indígena escolhida pelo presidente diplomado para assumir o Ministério dos Povos Indígenas, pasta criada pelo novo governo.
Rosto da representatividade política incentiva a juventude e os seniores a promoverem a cultura indígena
Célia Xakriabá (PSOL) tem sido uma voz ativa na luta dos povos indígenas no Brasil. Doutora em antropologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e líder indígena, foi a primeira indígena eleita deputada federal por Minas Gerais com 101.154 votos.
Também foi a primeira liderança indígena a assumir a presidência de um colegiado no Congresso Nacional, a recém-criada Comissão da Amazônia e Povos Originários da Câmara dos Deputados (CPOVOS).
Ela tem inspirado muitas pessoas por continuar a denunciar a violência, a discriminação e a negligência enfrentadas pelos povos indígenas, além de defender a preservação de suas terras e a valorização de sua cultura e conhecimentos tradicionais.
Com o incentivo à mobilização social e a união entre diferentes etnias indígenas, ela se tornou a face da representatividade não só para a juventude, mas também para as mulheres indígenas que foram e são apagadas pela História: as que desconhecem sua descendência.
A história oficializada apenas no coração de uma indígena
Era 1° de janeiro de 2023 quando Dona Geraci ligou a televisão para ver a cerimônia de posse do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT). O que não esperava ver, além do chefe do Executivo, era o que considera seu povo: um líder indígena vestindo um cocar e subindo a rampa do Planalto. Ela conta que sorriu aquele dia. “Ver minha família na televisão, ao lado do presidente, me encheu de felicidade”.
“Carrego a cultura no meu coração. Ela é minha”, afirma a senhora. [Imagem: Reprodução/Arquivo pessoal]
Nascida no interior de São Paulo, Geraci é uma das muitas descendentes dos povos originários que não conhece seu tronco familiar, mas que se identifica como indígena. Em conversa à Jornalismo Júnior, a dona de casa conta um pouco mais sobre sua árvore genealógica: “Minha bisavó era indígena. Ela foi roubada da sua família pelo meu bisavô, um português”.
Ela não teve a oportunidade de conhecer sua bisavó, mas recorda que sua mãe contava muitas histórias sobre a bisa. “Ela não falava português, se recusava. Ou ela ficava calada ou falava na sua língua. Também nunca deixou para trás suas raízes: mesmo forçada a usar as roupas ‘normais’”, ela vestia os adereços, colares e o cocar”.
Ela afirma que a bisa comia com as mãos e adorava cantarolar suas músicas. “Ela sentia orgulho de quem era. Eu também sinto orgulho de quem sou”. Segundo Geraci, é importante haver mulheres indígenas na política: “O Brasil começou pelas ‘índias’, então tem que respeitar nossas terras”.
Quando viu Célia Xakriabá, pela primeira vez, discursando sobre a destruição do meio ambiente e em defesa da demarcação das terras indígenas, afirma que algo se iluminou dentro dela. “Deixei de me sentir sozinha e percebi que existem muitos de nós (indígenas) lutando”.
A história dessa senhora de 76 anos é uma das muitas que ilustra a importância da representatividade indígena na política. Fora dos microfones, câmeras e entrevistas para a imprensa, existem milhares de indígenas como ela, que, mesmo desconhecendo sua descendência, se identificam, sentem orgulho da sua ancestralidade e se enxergam nas indígenas “da televisão”, como diz Geraci.
Para Chirley Pankará, essas mulheres que clamam sua luta e reivindicam a narrativa honram a memória: “lutam para que possamos ter nossas crianças, nossos jovens e nossos mais velhos com alimentação, saúde, educação, cultura e com a ancestralidade. Elas são a manutenção da cultura, é saber que nossa existência vai permanecer”.
Autora: Yasmin Andrade.
Fonte: Jornalismo Júnior/USP.