“Tenho medo de sofrer punição do IFood”: relatos da uberização no Brasil

Fenômeno da uberização do trabalho ocorre em meio à tríade terceirização, informalidade e flexibilidade.

A precarização do trabalho é um tema que vem sendo cada vez mais pautado no Brasil. De entregadores a pensadores da academia, a voz de socorro daqueles que convivem com as mazelas da uberização e da violência urbana é latente. Enquanto isso, o silêncio do poder público frente à precarização do trabalho ecoa de norte a sul do país.

O QUE É A UBERIZAÇÃO DO TRABALHO

De acordo com o sociólogo Ricardo Antunes, “a uberização é um processo no qual as relações de trabalho são crescentemente individualizadas e invisibilizadas, assumindo, assim, a aparência de ‘prestação de serviços’ e obliterando as relações de assalariamento”.

A tríade “terceirização, informalidade e flexibilidade”, combinada à plataformização não regulamentada do trabalho, formam, portanto, a amálgama da uberização, resultando em condições de trabalho que rememoram a protoforma do capitalismo. Ou seja, não há nenhum tipo de direito ou proteção social aos trabalhadores. 

“Portanto, a uberização combina o uso de novas tecnologias da informação com um regime de trabalho intermitente, remunerado normalmente por serviço e não por tempo, onde as empresas não reconhecem esses trabalhadores e trabalhadoras como força de trabalho, e sim como parceiro e, portanto, se eximem de garantir os direitos conquistados pela classe trabalhadora, principalmente ao longo do século 19”, explica o estudioso no tema, Marco Gonsales.

A PERSPECTIVA SOCIAL DO TRABALHO

Nas palavras de Rafael Grohmann, pesquisador da Universidade de Cambridge, “as tecnologias são práticas sociomateriais que comunicam modos de existência a partir dos valores contidos em suas arquiteturas e estão inseridas tanto nas interações cotidianas quanto no modo de produção capitalista”. Nesse ínterim, faz-se necessário abandonar o viés simplista de leitura da precarização do trabalho como uma nova face do capitalismo, ancorando-se no contorno da divisão de classe, racial e étnica do trabalho, principalmente no que diz respeito aos entregadores informais. 

De acordo com o Cebrap, em 2016 eram 33 mil o número de entregadores informais. Em 2022, esse número saltou para 383 mil, sendo em sua maioria, jovens negros e periféricos, que juntos somam 68% da massa de entregadores do Brasil.

A falta de suporte em períodos de afastamento por comorbidades, o rebaixamento do valor pago à força de trabalho, ano após ano, os lucros acima da média e o desfrute de uma força de trabalho informal mediante estratégias de sucateamento das condições de trabalho por parte dos contratantes são apenas alguns dos tentáculos das práticas materiais que aparelham a exploração do trabalhador na fase mais recente do capitalismo.

modus operandi da uberização combina a tecnologia da informação à comunicação, e demonstra-se um mecanismo falho de acumulação de capital para seus subalternos. Os dados falam por si só: de acordo com o Ipea, a média salarial de entregadores informais é de menos de dois salários mínimos.

Esse modelo não traz muitos benefícios aos entregadores: eles estão expostos aos perigos urbanos a todo momento e, caso contraiam qualquer tipo de enfermidade proveniente de seus ambientes de trabalho – as ruas, o mais óbvio acontece: não recebem nenhum tipo de auxílio das plataformas. Muito pelo contrário –  quanto mais tempo sem trabalhar, por qualquer que seja o motivo, menos trabalho lhes é oferecido.

O crescimento do número de entregadores acompanhou o aumento do número de acidentes: em 2013, foram registrados 88 mil acidentes por motocicleta. Já em 2022, foram 122 mil.

A REGULAMENTAÇÃO DO TRABALHO INFORMAL

Infelizmente, o número de conquistas dessa classe não acompanha o seu tamanho: apesar da positividade para uma regulamentação agora, no governo Lula, a carência de sindicatos segue sendo um percalço. Isso porque, além de serem calados e reprimidos pelo Estado, muitos entregadores têm medo do boicote dos aplicativos, que acontece sempre que um colaborador se envolve na luta pelos seus direitos, causando muito pânico. O efeito panóptico das grandes plataformas digitais não poderia ser mais avassalador.

De acordo com o entregador Ederson Lima Artilheiro, de 19 anos, “Não [participei de paralisações dos aplicativos de entrega] e nem quero participar. Tenho medo de sofrer punição do IFood. E também sei que é muito difícil mudar alguma coisa dentro do aplicativo”.

Daí surge mais uma pedra no sapato: como disserta Ricardo Antunes em suas obras, quanto mais protelar a luta pelo desmantelamento desse modo de trabalho, mais ele se consolidará como um elemento central do sistema de metabolismo do capital, tanto no setor de serviços, quanto em outras parcelas do mundo industrial.

Como postula Marx em O Capital, “a tecnologia desvela a atitude ativa do homem em relação à natureza, o processo imediato de produção de sua vida e, com isso, também de suas condições sociais de vida” (p. 446). 

Nas palavras de Marco Gonsales, “quem determina como e quanto eles [entregadores] vão trabalhar, e quanto eles vão receber são as empresas. Então, é evidente que há uma subordinação. Na verdade, são trabalhadores assalariados camuflados , são os falsos autônomos. E interessa muito às empresas vender essa ideia, para que elas possam se eximir dos direitos que a classe trabalhadora conquistou ao longo do século 20”.

Falar sobre a regularização do trabalho informal ainda é um assunto delicado, há dificuldade e, muitas das vezes, negligência, em reconhecer as relações de trabalho entre empresas-aplicativo e trabalhadores. A informalização do trabalho e a visão de que entregadores são seus próprios gerentes permeia o ideal de grande parte dos brasileiros. De acordo com Ludmila Costhek, doutora em Ciências Sociais pela UNICAMP, “a figura do trabalhador just-in-time desafia as categorias do que é e do que não é tempo e trabalho”.

Por mais que a regulamentação do trabalho informal seja uma das principais pautas do Ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, é muito complexa a ideia dessa regulamentação, já que tanto aos olhos do Estado, quanto das plataformas, essa massa de trabalhadores não são considerados trabalhadores de fato.

Apesar das diferenças materiais, históricas e dialéticas, cabe aqui rememorar o processo de estandardização dos entregadores da União Europeia. Em 2021, o Supremo Tribunal Inglês estabeleceu que serviços de aplicativo tenham direitos trabalhistas como o estabelecimento de vínculo empregatício, garantindo salário mínimo, férias remuneradas, auxílio doença e seguro-desemprego.

Atualmente, Lula diz que a regulamentação do trabalho por aplicativo será prioridade no governo. Luiz Marinho explicita a necessidade de os aplicativos oferecerem proteção social e previdenciária aos trabalhadores e melhores salários. No entanto, descartou a contratação CLT como obrigatória nos casos. Entretanto, ainda não formou-se uma jurisprudência no sentido de tirar esses planos do subterfúgio discursivo, e inserir os trabalhadores informais em circunstâncias de trabalho favoráveis.

Autores: Felipe de Paula, Gabriel Bertoli, João Gabriel Menezes Serpa, José Guilherme Romero e Mariana Baiter.

Fonte: Cásper Líbero.