Profissionais e amadores do skate discutem os reais efeitos da inserção do esporte nas olimpíadas, além do futuro da modalidade nas ruas.
Os Jogos Olímpicos de Tóquio 2020, que na realidade ocorreram em 2021 por conta da pandemia de covid-19, trouxeram consigo alguns esportes novos, entre eles o skateboard, ou mais popularmente conhecido como Skate. Essa exposição midiática traz benesses para atletas e estilos mais famosos, relegando a um papel secundário outros menos afamados, além de até certa mágoa e sentimento de desprezo por praticantes que levam o esporte como estilo de vida.
Não é novidade que as Olimpíadas sempre provocam uma comoção mundial com os esportes, os atletas, as histórias e o tal do espírito olímpico. Cada novo esporte que integra a competição desperta no público uma ânsia e curiosidade em entender sua origem, suas regras e a sua essência. Com o Skate isso não foi diferente.
A participação do Skate nos Jogos suscitou debates – uma vez que muitos skatistas não queriam que o esporte fosse para as Olimpíadas -, promoveu à modalidade a visibilidade de novos públicos e, no caso do Brasil, também trouxe uma série de repercussões principalmente pela conquista de três medalhas de prata.
UMA HISTORIOGRAFIA DO SKATE
Os primórdios da ideia do que hoje conhecemos como Skate decorrem dos anos de 1900 a 1940 e apresentam uma forte conexão inicial com o Surf. Entretanto, com o decorrer do tempo, o Skate assume uma personalidade própria, e incorpora contornos muito característicos de uma cultura e estilo de vida que vão além do esporte em si. A linha do tempo abaixo elucida de forma mais objetiva a trajetória do Skate no mundo e os principais marcos para o Brasil:
O Skate passou por alguns ciclos até se estabilizar a partir dos anos 1990. Em entrevista, Fabio Bolota, que anda de skate desde 1978, participou de algumas revistas voltadas para o esporte e atualmente apresenta o programa Let’s Go Skate Radio, comenta:
“O Skate passou por muitos altos e baixos por causa da moda. Do final dos anos 90 para cá, o Skate tomou uma dinâmica mais profissional e aí perdeu um pouco esse estigma de moda”.
Inclusive, essa fase do esporte até a estabilização ficou conhecida pelos skatistas como “ciclo dos 10 anos”, no qual o Skate alcançava seu auge por uma questão mais voltada para tendência, só que por algum motivo logo entrava em crise e declínio. Ainda em relação a esse histórico, Bolota afirma:
“O Skate é um esporte novo. Particularmente, desde os anos 80, a gente nunca quis encarar o Skate como esporte assim, em uma categoria esportiva cheia de critérios e regulamentos, porque o Skate sempre foi muito mais um estilo de vida, agregado a competições”.
Dentro desses movimentos ligados à moda, nos anos 1980 a cultura punk chegou a influenciar o skate, mas essa influência passou a ser substituída pela cultura urbana e em especial pelo Hip Hop, que predomina até hoje no cenário do esporte. Vale acrescentar que as influências desses movimentos culturais levaram o Skate a diversos estigmas e preconceitos, chegando até mesmo a uma proibição da circulação de skates pela cidade de São Paulo em 1988 por Jânio Quadros.
Referente a essa mudança que os anos 1990 trouxe, além da profissionalização do esporte, Bolota também acrescenta que “a nova geração que chegou, nos anos 90, era mais nova e competitiva. A geração dos anos 80 era mais pelo lazer, pela diversão, para encontrar os amigos”. Nesse momento os skatistas brasileiros começam a andar em um nível mais alto e ganham campeonatos, levando o esporte a ser visto de maneira mais profissional, o que contribui com as mudanças em sua trajetória.
Quanto à visão do Skate como um estilo de vida e de comportamento, ela ainda é muito presente no esporte em si, de maneira que há uma forte indústria de marcas de roupas e tênis voltada para esse estilo, além de que a forma como se encara o esporte acaba sendo distinta do olhar que se tem sobre outros esportes mais populares, como o futebol, sob a ótica brasileira. Isso ficou bem ilustrado nas Olimpíadas, pelo fato de que muitas pessoas, por não conhecer a essência do Skate, se comovem e não entendem muito bem a falta de uma lógica mais competitiva entre os atletas. Bolota analisa:
“Teve o ‘boom’ da Olimpíada com esse aspecto da amizade. Isso impressionou a todo mundo. Ninguém entendeu como que o japonês ia abraçar a brasileira, e a brasileira ia chorar junto com a australiana. Ficou aquele clima de ‘mas tá todo mundo torcendo para todo mundo?’”
O CONTRAPONTO
Essa lógica da competição mais acentuada que as Olimpíadas agregam aos esportes foi um grande ponto de crítica por parte da comunidade do Skate, sendo que muitos skatistas inclusive não queriam que o esporte integrasse os Jogos Olímpicos, como Bolota confirma:
“Está provado, definitivamente, sobre as Olimpíadas, que 60% da comunidade do Skate era contra, ou até mais”.
Ele acrescenta que, até então, o Skate havia atravessado as décadas sobrevivendo em seu próprio mundo, com marcas mundialmente conhecidas e faturando bem, com uma indústria robusta. Então, não havia um interesse em adentrar esse mundo dos esportes olímpicos, de forma que não existia sequer uma entidade mundial do Skate para regulamentar o esporte nos Jogos. Por isso, o Skate inicialmente iria entrar nas Olimpíadas e ser gerenciado pela federação de patins, considerado um esporte mais próximo.
“Foi formada uma entidade mundial (do Skate) para debater com o Comitê Olímpico para conseguir contornar essa situação. Então se formou uma entidade mundial específica para isso. Para você ver como o Skate nunca se importou com isso. Até no momento que era para ser um esporte mais profissional como organização, o Skate não era, porque nunca se preocupou com isso.”
Eduardo, 25 anos, que anda desde os 15, fez questão de ressaltar a popularização da imagem do skate:
“Eu sempre andei na rua, né, mas no meu ponto de vista eu reparei num pessoal novo nas ruas, mas por causa das Olimpíadas, também, o pessoal vem andando mais nas pistas de skate, algo que a Olimpíada deu uma melhorada”.
Da parte dos atletas, o que se percebe é a concentração dos patrocínios e contratos publicitários em nomes famosos, que normalmente moram no exterior e não ajudam a promover o esporte no cotidiano do Brasil. A esse sentimento soma-se a concentração de atenção em somente duas modalidades, deixando de fora dessa atenção e cobertura outras, como Downhill. Cauã, 24 anos, operador de telemarketing, avalia:
“O pessoal da minha modalidade está lutando pra ter mais reconhecimento, além de tentar ser melhor remunerado. A gente tem uns campeonatos mas, assim, não se compara ao patrocínio do street e do park”.
Quanto aos praticantes não esportistas, o skate está ligado à contra-cultura, ao punk rock e Hip Hop, parte da cultura de pessoas marginalizadas. Esse excesso de exposição só serviu para encarecer os equipamentos de skate. O sentimento parece um misto de uma invasão numa prática tão íntima dessas pessoas, aliado a um desrespeito com a forma que essa cobertura é feita, como se a prática fosse “roubada” dos praticantes e eles permanecessem marginalizados, sem seu Skate, sem seu reconhecimento.
Entretanto, mesmo com todas essas questões, o Skate integrou como novo esporte as Olimpíadas de Tóquio 2020. Além disso, o Skate brasileiro se saiu muito bem nos Jogos, com a conquista de três medalhas de prata, por Kelvin Hoefler e Rayssa Leal, ambos na modalidade street, e Pedro Barros, na modalidade park.
Ainda, para o público brasileiro, o sucesso do Skate nos Jogos Olímpicos ultrapassou a conquista das medalhas e cativou a população como um esporte em que predominou um espírito de coletividade e solidariedade entre todos os atletas. Além disso, tivemos também a figura de Rayssa Leal, que ganhou uma visibilidade ainda maior pelos Jogos, tornando-se um fenômeno brasileiro pela pouca idade, habilidade e carisma.
O “EFEITO FADINHA”
O Brasil sempre encontrou no Skate cenários interessantes, ligados à contra-cultura do punk, ao Hip Hop, até o impacto advindo da estreia do esporte nas Olimpíadas e o bom desempenho de brasileiros, dando destaque a Rayssa Leal, a “fadinha do skate”, criança de 13 anos que conquistou o mundo e uma medalha olímpica de prata. O questionamento que fica é: o que o “efeito fadinha” causou na cena do skate nacional?
Rayssa Leal já era famosa antes das Olimpíadas. Com 7 anos de idade, usando uma fantasia de fada, ela pula uma escada fazendo a manobra heelflip com um pouso muito bom, tudo filmado pela mãe. O vídeo viralizou na internet, chegando até Tony Hawk, o mais famoso dos skatistas, que fez questão de entrar em contato com a menina, incentivando-a a progredir no esporte.
O primeiro campeonato internacional ganho por ela foi em 2019, no Street League Skateboarding (SLS) etapa Los Angeles (EUA). Após a pausa forçada durante a pandemia de covid-19, a “fadinha” voltou aos campeonatos em 2021, e iniciou a temporada com uma prata nas Olimpíadas de Tóquio, seguida por mais pódios ao redor do mundo, como o Campeonato Mundial de Skate em Roma (bronze), SLS Salt Lake City (campeã) e SLS Flórida (campeã), os dois últimos nos Estados Unidos.
Essa sequência de vitórias só fez crescer sua fama, além da lista de empresas interessadas em patrocinar a nova estrela do esporte. Claro, com tantas medalhas, a mídia nacional sempre esteve atenta a sua carreira, servindo como uma grande propaganda do Skate como esporte e quebrando a visão de prática marginal que o levou até a ser proibido em São Paulo.
Em entrevista, Eugenio Amaral, mais conhecido como Geninho, ex-skatista profissional que começou sua carreira em 1985 e comentarista de Skate no SporTV, compartilha um pouco de suas percepções sobre esse cenário:
“Eu só fui me dar conta de que as Olimpíadas foram muito legais para o esporte a partir do momento que começou a ter uma grande influência do Skate feminino, porque na minha época o Skate sempre foi muito machista”.
Outra questão levantada em relação ao pós-Olimpíada foi se as próximas gerações de skatistas não perderiam um pouco dessa raiz da coletividade presente no estilo de vida do Skate, de forma que o esporte deixaria sua essência de lado e se tornaria mais competitivo como os demais esportes olímpicos.
“Agora nós temos treinadores da Confederação, então eu acredito que vai mudar um pouco isso, mas o Skate verdadeiro não vai ser perdido. Mas, na competição, principalmente olímpica, eu acho que a gente tem que aproveitar Paris e Los Angeles, que nós ainda vamos ter essa essência, depois disso já é uma incógnita.”
PATROCÍNIOS E ESTILO DE VIDA
Outro ponto que as Olimpíadas acentuaram no Skate foi o viés do patrocínio em torno dos campeonatos. Geninho comenta que nos anos 1990 havia uma atenção muito maior de patrocinadores aos skatistas populares, com mais estilo e que representavam “a cara do Skate”, mesmo que estes não fossem necessariamente os maiores vencedores de campeonatos.
“Já aconteceu comigo várias vezes. Eu fui para o campeonato, decidi não fazer a linha inteira, mas ficar em uma manobra muito difícil que ninguém acertava, e eu acertei, só que eu fiquei em último no campeonato. Só que na semana seguinte ninguém falou sobre quem ganhou o campeonato, eles falaram da manobra que eu acertei. A marca vendia mais isso do que o campeão.”
Mas, segundo Geninho, as Olimpíadas mudam essa lógica. Os Jogos envolvem muito dinheiro e os atletas não precisam mais “vender tênis”, porque eles passam a integrar a Confederação Brasileira e ganhar patrocínio por suas vitórias. Ainda assim, existem skatistas que vão continuar surfando nessa onda da popularidade e das marcas voltadas para o Skate, abraçando esse estilo mais tradicional característico do Skate como lifestyle.
Por último, em relação ao efeito dos Jogos Olímpicos no âmbito do patrocínio aos atletas, Geninho também discorre:
“No Brasil, eu acho que as Olimpíadas foram maravilhosas. A Confederação antes tinha apoio das marcas de Skate que queriam fazer campeonatos, as premiações eram muito baixas, era muito difícil. A partir do momento que entrou nas Olimpíadas e estruturamos a Confederação, para nós melhorou muito. A gente tem um caixa muito bom que está ajudando muitos skatistas, principalmente do feminino. Muitos skatistas estão conseguindo andar de skate graças a essa estrutura da Confederação Brasileira de Skate”.
Já em entrevistas com atletas menos badalados e com praticantes “amadores”, “comuns”, a tônica é de certa divisão, quase uma tristeza ou “traição”.
O PROJETO NOVA GERAÇÃO SKATE
Emanuel Bueno, 35 anos, é um educador físico natural de Pelotas (RS) que é apaixonado por Skate desde 1998, quando tinha 11 anos. Em entrevista, ele contou sua história e deu sua visão sobre o atual cenário. Emanuel achou no skate um esporte de que ele gostava por ser individual, mas não abria mão de praticar com seus amigos.
“O skate me encantou por ser uma atividade que ao mesmo tempo é individual, é coletiva. Andar de skate com meus amigos é muito mais legal do que andar sozinho.”
Emanuel costumava andar na Pista Pública de Pelotas (PPP), onde, com o tempo, passou a ser reconhecido. A PPP passou a ser frequentada por crianças, que tinham o sonho de aprender a andar de skate.
“Um certo dia uma mãe me abordou na pista me pedindo para ensinar o filho dela a andar de skate. Comecei ajudando uma criança e quando me dei conta já estava ensinando várias crianças a andar. Daí comecei a dar aulas de Skate. Vi nessas aulas a possibilidade de divulgar o Skate e criar um espaço para que todos pudessem andar, independente da faixa etária.”
O tempo passou e por razões adversas Emanuel se mudou para Florianópolis, onde percebeu que só teria a possibilidade de se profissionalizar no Skate se tivesse currículo. Na faculdade de Educação Física, todos os seus estudos foram voltados e desenvolvidos para o Skate e hoje Emanuel é um ativista do Skate muito prestigiado em sua área.
Com a estreia do Skate nas Olimpíadas de Tóquio, em 2021, Emanuel comenta o aumento da demanda pelo esporte:
“As Olimpíadas impactaram positivamente o nosso esporte. A demanda por pessoas que passaram a frequentar as pistas cresceu depois do ‘efeito fadinha’. Quem sempre andou e gostou de skate não parou de andar, mas o que eu vejo é que muitas das pessoas que chegaram nas pistas com vontade de aprender, depois que as Olimpíadas passaram e esse ‘boom’ do skate passou para segundo plano, acabaram largando o esporte”.
Emanuel comenta também a importância que esse grande evento teve na vida dos profissionais skaters:
“O pessoal que queria viver do esporte sempre encontrou muitas dificuldades não só na inserção do mundo do Skate como também para se manter dentro do esporte. Os equipamentos são muito caros e é difícil achar uma marca ou uma empresa que tenha disposição de nos patrocinar. Com essa divulgação de marcas que as Olimpíadas proporcionaram, vários profissionais skaters e skatistas tiveram as portas abertas”.
UM BALANÇO FINAL SOBRE O SKATE
O Skate nasceu como uma brincadeira ou uma atividade de lazer, passou a ser incorporado como um estilo de vida e agregou a faceta de esporte competitivo, uma verdadeira profissão. Esporte que já foi proibido e estigmatizado por uma parcela da população, agora acolhido pelas Olimpíadas e por um novo público que admira as medalhas e sua essência. Mas, em suma, o que isso significa?
No final das contas, parece que ainda estamos vivendo em um momento de euforia muito grande em relação ao Skate e aos reflexos das Olimpíadas. Temos diversas visões sobre o futuro do esporte, as quais, ao que parece, só ficarão mais claras com o passar do tempo. Por enquanto, o Brasil fica com as medalhas, e com a admiração ao novo esporte olímpico e seus atletas.
Autores: Francisco Stefanelli, Júlia Tuma, Paola Costa e Pedro Penteado.
Fonte: Cásper Líbero.