Estudos explicam o motivo de assistentes virtuais de voz como Alexa, Siri e Cortana serem do gênero feminino.
Quem nunca conversou com uma assistente virtual do celular ou computador para perguntar qual a previsão do tempo, pedir para tocar uma música ou dizer que horas são? A utilização dessa inteligência artificial é muito comum no dia-a-dia e serve para trazer informações práticas e de forma rápida aos seus usuários. O que pode passar despercebido, no entanto, é que grande parte dessas IA possuem nomes e vozes femininas.
A Siri, funcionalidade da Apple, possui um nome nórdico que significa “mulher bonita que leva você à vitória”. A Cortana, da Microsoft, tem a designação de uma personagem do videogame Halo, que é representada de forma sensual no jogo. A nomeação da Alexa foi inspirada em uma biblioteca em Alexandria e, por fim, a Google Assistant da Google possui um nome relativo à empresa, mas a sua voz é do gênero feminino. Como justificativa à atribuição de nomes e vozes femininas a essas tecnologias, empresas como Amazon e Apple citam trabalhos acadêmicos que demonstram que as pessoas preferem uma voz feminina a uma voz masculina.
A preferência, no entanto, pode estar relacionada a estereótipos de gênero, como explica a socióloga Kathia Castilho: “A voz feminina é a primeira que você escuta, é mais materna. É uma voz mais receptiva, amorosa, carinhosa e remete a esses significados que a mulher socialmente tem. A mulher dá muito mais impacto afetivo do que o homem na posição social, na questão da vibração sonora, da voz, do acolhimento do som. Mas pode ser algo restritivo também, nesse sentido de dar às mulheres sempre a mesma função”.
Historicamente, vozes femininas eram utilizadas em dispositivos de navegação durante a Segunda Guerra Mundial, em cockpits de avião e, tradicionalmente, operadoras de telefone sempre foram mulheres, o que associa vozes do gênero feminino à ideia de ajuda e prestação de serviço.
De acordo com a publicação da Unesco “I´d Blush If I Could”, tanto homens quanto mulheres tendem a caracterizar vozes femininas como mais prestativas e cooperativas, enquanto vozes masculinas são associadas à autoridade. Apesar de ter sido divulgada em 2019, a pesquisa mostra questões atuais, como a disparidade da atuação de mulheres e homens no mercado tecnológico, além de discutir como nomes e vozes femininas em inteligências artificiais podem contribuir para a desigualdade de gênero.
O estudo sugere que “os consumidores preferem vozes femininas para assistentes digitais porque queremos que os dispositivos digitais nos apoiem, mas também queremos ser os chefes deles. Essa linha de raciocínio parece ser corroborada pelos adjetivos usados para descrever as personalidades dos principais assistentes de voz por representantes das empresas. As duas palavras mais comumente usadas foram ‘prestativa’ e ‘humilde’, ambas características estereotipadas associadas às mulheres. Em resumo, a preferência das pessoas por vozes femininas, se essa preferência realmente existir, parece ter menos a ver com som e tom, mas com uma associação à assistência”.
Apesar das características das IAs, as empresas que as criaram reforçam que essas tecnologias não possuem gênero específico. Algumas respostas dadas pelas assistentes quando questionadas se são mulheres variam de “Eu não tenho um gênero”, da Siri ou “Eu sou totalmente inclusivo(a)”, da Google Assistant, até a Alexa, que realmente afirma ser do gênero feminino.
O estudo da Unesco expõe também que a existência das vozes femininas nas assistentes pode ser explicada pelo fato de que elas são produzidas majoritariamente por homens. Dados da Revelo, plataforma de recursos humanos, mostram que, em 2020, 83,3% do mercado de tecnologia era composto por homens, enquanto as mulheres respondiam por 12,3% dessa área. Informações divulgadas pelo LinkedIn revelam que em 2022 esse mercado foi ocupado por 36% de mulheres, enquanto apenas 23% possuiam cargos de liderança. O setor tecnológico é formado majoritariamente pelo sexo masculino, o que, de acordo com o relatório “I´d Blush If I Could”, fortalece ainda mais a iniquidade entre os gêneros: “À medida que os homens continuam a dominar esse espaço, a disparidade apenas serve para perpetuar e agravar as desigualdades de gênero, já que preconceitos não reconhecidos são replicados e incorporados aos algoritmos e à inteligência artificial”, trecho da publicação.
Essa desigualdade não aparece apenas no mercado de trabalho, mas também nas assistentes virtuais de voz. O questionamento acerca das consequências de inteligências artificiais projetadas com nomes e vozes femininas é atual, e o Samuel de Jesus Monteiro Barros, doutor em Administração e especialista em tecnologia, explica que tudo depende do uso que a sociedade der às aplicações de IA e a forma que elas forem ensinadas: “Hoje o usuário avalia a resposta da IA e pode ir corrigindo o comportamento dela por meio de reforço positivo. A IA não tem pensamento próprio ou vida própria para incentivar ou compactuar , ela é um reflexo dos seus criadores, base de dados e usuários”.
“As bases de modelagem de IA têm viés e a partir dessas bases a tecnologia acaba representando o que já existe na sociedade. Nós temos vários problemas. Nesse sentido não é um problema da IA e sim da base de dados”, contextualiza Frank Ned, formado em análise de sistemas e mestre em Ciência da Computação.
A base de dados é criada por pessoas, que possuem intenções na escolha de determinadas vozes para seus aparelhos de IA. Assim como as assistentes virtuais de voz, pesquisas mostram que muitas empresas usam vozes masculinas quando a intenção é garantir segurança e certeza, mas utilizam vozes femininas quando a situação exige alguma ajuda ou o fornecimento de informações. No Japão, centrais de atendimento de corretoras usam vozes femininas automatizadas para fornecer cotações de ações, mas empregam uma voz masculina para facilitar e confirmar transações.
Samuel ainda traz possíveis mudanças para esse quadro: “Considero essencial a participação das empresas de tecnologia na promoção da igualdade de gênero, seja na criação de mecanismos não tendenciosos, seja na contratação de profissionais mulheres em diversos níveis hierárquicos. Em termos de aplicações de assistentes virtuais, a criação de modelos customizáveis e com arquétipos diferentes é um caminho”.
São os desenvolvedores dessas tecnologias que podem favorecer desigualdades por meio das inteligências artificiais, normalizando a ideia de que objetos inanimados que representam personagens femininos devem obedecer ordens e comandos. “Quanto mais a cultura ensinar as pessoas a equiparar mulheres a assistentes, mais mulheres reais serão vistas como assistentes e penalizadas por não serem como assistentes”, afirma trecho do relatório da Unesco.
Autora: Maria Clara Castilho Wunderlich.
Fonte: Cásper Líbero.