Projeto Quixote para crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social age entregando kits de arte a cestas básicas.
“Mudar o mundo, amigo Sancho, não é nem utopia nem loucura, é justiça”
Dom Quixote, Miguel de Cervantes, 1605
Não muito longe daqui, um quixotinho parou em uma estalagem colorida. Estava com fome, não comia há dois dias. Fez sua refeição e pegou outros dois pães para viagem. Não era o único no estabelecimento, logo avistou outros dois quixotinhos. Eles também queriam comer, mas precisavam aguardar a próxima fornada. O quixotinho de antes não pensou duas vezes. Entregou seu pão para os outros quixotinhos. O dono da estalagem insistiu que isso não era necessário, logo a nova fornada sairia. Mas o primeiro quixotinho não deu ouvidos, afinal já tinha comido. E saiu. Deixando um exemplo de altruísmo para todos os aldeões.
Mesmo que a história tenha ares de cavalaria, ela não se passa na Idade Média. Se passa em 2021, segundo ano da pandemia do coronavírus. O quixotinho é um menino real, que mora nas ruas de São Paulo. E a estalagem colorida fica na Vila Mariana, é o Projeto Quixote, OSCIP (Organização da sociedade civil de interesse público) voltada a crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social. Na história da iniciativa, faltam espadas, cavalos e dragões, mas sobram desafios.
Para Graziela Bedoian, psicóloga e fundadora do Projeto, o cerne do trabalho é o convívio. “Todo o espaço do Quixote é desenhado para o grupo, afeto, contato, encontro e o brincar. E a pandemia tira exatamente isso’’, afirma ela. Para conseguir manter a alma do Projeto, a alma quixotesca, a iniciativa social adaptou as oficinas para o online e passou a atender em grupos menores.
Os dragões enfrentados pelo Projeto durante a pandemia são muitos, mas a batalha contra a fome ganhou destaque. “Está todo mundo muito solidário nessa questão e a gente entrou nessa também’’, conta Bedoian. Uma das medidas adotadas foi aumentar a distribuição de cestas básicas. Além de reverter a verba do lanche para a compra das cestas, também buscaram aliados no povoado de São Paulo, fizeram campanha e receberam muitas doações. “É muito comum na área social as pessoas falarem que não vão dar nada, porque isso vira uma coisa assistencialista, mas a gente tá em outra configuração. De guerra mesmo”, completa Graziela
Mesmo antes da pandemia, o Quixote estava armado, mas sempre de arte. Lá, Frederico Mendonça é oficineiro de arte. Tem 42 anos, 18 deles dedicados ao Projeto. No início, a adaptação foi “um choque de realidade”, conta. Em 2020, precisou adaptar os trabalhos para o online, tendo em mente o público com poucos recursos que eles atendem, muitos não têm celular ou uma boa internet: “Tem criança que não tem papel e lápis em casa. Então nós montamos kits de arte. A família vinha buscar a cesta básica e já levava o kit”. O conjunto é completo para os pequenos artistas, incluindo desde lápis aquareláveis até folhas coloridas. “A ideia é que eles explorem os materiais’’.
Mudar o mundo, para Dom Quixote, não é utopia ou loucura, mas uma questão de justiça. E para quem está no Projeto também. A primeira faísca do que iria se tornar o Projeto Quixote apareceu quando Graziela trabalhava no ambulatório do Hospital São Paulo. A psicóloga e Auro Danny Lescher, também fundador do Quixote, perceberam que o ambiente não era o mais adequado para tratar as crianças e adolescentes que ali chegavam “A gente começou a pensar em criar uma nova forma, algo que pudesse ser um pouquinho diferente’’, explica.
Desde sua fundação em 1996, o Projeto mudou, cresceu, e a visão da fundadora sobre ele amadureceu também: “De começo, a gente imaginava que nós éramos os quixotescos porque saímos em luta para defender os vulneráveis. Mas depois que você começa a conhecer a criançada, você percebe que eles são os verdadeiros quixotinhos. Eles que enfrentam muitos dragões”.
O Projeto Quixote se organiza em cinco frentes: pedagógico, clínico, atenção à família, atenção ao mundo do trabalho e o programa Refugiados Urbanos, o último voltado a crianças em situação de rua. São mais de 60 pessoas na equipe, que vão de oficineiros a fonoaudiólogos. “É uma equipe de múltiplas formações e múltiplos olhares”, explica Bedoian.
Com um violão em uma mão e jogo de tabuleiro na outra, Daniel Matos integra o time da organização. Segundo ele, o dia a dia do Quixote deixa qualquer ficção no chinelo: “Acontecem coisas lá que o coração vai pra boca, tanto pro bem quanto pro mal”. E explica como trabalham com os quixotinhos que ali chegam: “O apoio é dado conforme cada um vai abrindo as portas. Sempre usamos a arte e o lúdico para ganhar a confiança e aí ter um papo mais sério’’.
Foi Daniel quem presenciou a história do quixotinho que levou os pães para viagem. Para ele, são momentos assim que fazem o trabalho ser difícil, mas que também o fazem valer a pena. Sua relação com projetos sociais começou cedo. Ainda na adolescência, ele fez um trabalho voluntário na Fundação Casa, que na época ainda era chamada de Febem. “Pra mim não é uma alternativa, eu me sinto gente enquanto eu fizer alguma coisa por alguém”, conta.
Já faz 6 anos que Daniel está no Quixote. Lá, começou na música, mas criou também uma nova oficina, a de jogos de tabuleiro. E, durante a pandemia, não só ele, mas toda a equipe, tiveram de se reinventar: “Alguns atendidos a gente liga por telefone, fala por áudio ou manda mensagem e ele vai respondendo quando consegue. Dependendo da situação, a gente faz uma visita domiciliar. Passamos a optar por grupos menores, de no máximo três, afastando mais de um metro um do outro e priorizando atividades ao ar livre. A gente teve que adaptar todas as nossas oficinas que eram pensadas em grupos grandes para atendimentos menores ou até individuais’’.
Pelo empirismo, o Projeto foi buscando formas de continuar suas oficinas, mas não só isso. O trabalho primordial era se manter próximo dos quixotinhos. Frederico comenta: “A gente precisou fazer um grande investimento para manter o contato com as crianças, o mínimo já é alguma coisa. Assim, a gente pôde manter o vínculo que tínhamos com elas. Muitas crianças que vão ao Quixote lidam com questões de abandono, então a gente não queria sumir por causa da pandemia”, completa.
Para Daniel, essas mudanças só foram possíveis porque a alma do Projeto se manteve invicta nesse período. “A pandemia transformou quase tudo, menos a alma quixotesca. Ela foi o grande fio de miçanga para a gente ir trocando as pedras”. Ele acrescenta: “A gente mudou, contanto que não mudasse o nosso jeito de trabalhar. Sendo online ou presencial, entregando uma cesta básica, perguntando ‘como que tá?’ por ligação, uma visita domiciliar ou abordando uma pessoa na rua. A alma quixotesca foi o grande alicerce para a gente poder fazer todas essas mudanças”.
Mas o que é a alma quixotesca? Para Frederico, “alma quixotesca é não desistir, é acreditar, é lutar contra os moinhos como Dom Quixote. É seguir em frente’’.
Autora: Vitória Prates.
Fonte: Cásper Líbero.