Muito além da música, o cantor baiano também teve papel fundamental na política brasileira.
No dia 26 de junho de 2023, o cantor baiano Gilberto Passos Gil Moreira completa 81 anos. Primeiro filho do casal Claudina Passos Gil Moreira e José Gil Moreira, o artista por trás das músicas Drão e Aquele Abraço entrou em contato com o mundo musical logo na infância: aos dez anos de idade ingressou na Academia de Acordeom Regina, seguindo os passos de seu ídolo Luiz Gonzaga.
O início da carreira
Em 1959, com 17 anos, Gil passou a fazer parte do conjunto instrumental Os Desafinados como acordeonista. As apresentações, realizadas em festas e colégios, contaram com a presença do artista até 1961, ano no qual ingressou na Universidade da Bahia para cursar administração de empresas. Ainda neste mesmo ano, foi presenteado por sua mãe com um violão, o que o incentivou a escrever suas primeiras músicas – as bossas. Gilberto também compunha jingles nesse primeiro momento, que eram exibidos em um programa musical na televisão e deram início a suas aparições na mídia.
A primeira gravação de uma música de sua autoria aconteceu em 1962, com o lançamento de Bem devagar pelo conjunto musical feminino As Três Baianas (grupo que deu origem ao Quarteto em Cy). Sua primeira gravação cantando de fato ocorreu com a interpretação da marcha Coça, coça, lacerdinha, através da gravadora JS Discos.
Gil foi apresentado a Caetano Veloso, Maria Bethânia, Gal Costa e Tom Zé e juntos produziram o show “Nós, por exemplo…”, que inaugurou o Teatro Vila Velha em 1964 e também a carreira musical dos artistas. Aos 22 anos, Gil fez seu primeiro show individual, nomeado “Inventário”, que foi dirigido pelo amigo Caetano na cidade de Salvador.
Compositor da MPB
Através do programa “O fino da Bossa”, apresentado por Elis Regina na TV Record durante a década de 60, Gilberto começou a se destacar e foi contratado pela empresa Philips para produzir seu primeiro LP — Louvação (1967). Nesse período, o artista passou a viver apenas da música e se mudou para o Rio de Janeiro para a gravação do álbum.
O sucesso alcançado com as obras levou Gil a concorrer na categoria de compositor no Primeiro Festival Internacional da Canção, com a música Minha Senhora, e também no Segundo Festival de Música Popular Brasileira, por Ensaio Geral.
Em 1967 aconteceu o Terceiro Festival de Música Popular Brasileira, também conhecido como “Festival da Virada”. O cantor se apresentou ao lado do grupo “Os Mutantes” com a música Domingo no Parque e terminaram classificados em segundo lugar. A obra foi uma das principais precursoras da Tropicália, consolidando as bases sonoras do movimento a partir do uso de instrumentos inusitados como guitarra, berimbau e, inclusive, uma orquestra.
A genialidade de Gil se revela a partir da construção de uma narrativa completa através da música, considerada uma “canção cinematográfica”, com uma trilha sonora acompanhando o ritmo dos acontecimentos cantados. Para o jornalista Tárik de Souza, “foi uma coisa totalmente nova, completamente diferente do que vinha sendo apresentada pela Jovem Guarda”.
“Foi no parque
Que ele avistou
Juliana
Foi que ele viu
Foi que ele viu Juliana na roda com João
Uma rosa e um sorvete na mão
Juliana seu sonho, uma ilusão
Juliana e o amigo João”
Domingo no Parque, Gilberto Gil
O Tropicalismo de Gil
Em 1968 foi lançado o disco-manifesto Tropicália ou Panis et Circense (1968), que representou o auge do movimento do Tropicalismo. O álbum reuniu, além de Gil, artistas como Caetano, Os Mutantes, Tom Zé, Nara Leão e Gal Costa.
Em entrevista à Jornalismo Júnior, Luiz Tatit, músico e professor de linguística da USP, diz que “o Tropicalismo veio para conseguir liberdade para esses artistas comporem e ao mesmo tempo apresentarem as músicas com aquelas mudanças de costume. Eles queriam que a música tivesse uma certa universalidade; precisava ser um movimento que aceitasse também a música internacional”. Acrescenta, ainda, que Gil pode ser considerado o grande músico da Tropicália: “Ele tem uma maneira exuberante de tocar violão, que supera todos os outros.”.
Celso Favaretto, professor de Filosofia na USP e autor do livro Tropicália: Alegoria, Alegria (Ateliê Editorial, 1979), explica que o movimento repensou a canção popular no Brasil, levando em conta também as novas realidades sócio-políticas da época.“Em termos musicais, a Tropicália representou uma voz muito grande por não negar a tradição cultural brasileira, mas sim por encontrar nela pontos vertebrais muito importantes ligados a outras manifestações populares”, afirma o entrevistado. Acrescenta, ainda, que “o tropicalismo trabalha com ambivalência; ao mesmo tempo em que coloca os elementos da tradição, coloca outros novos e um não supera o outro, porque trata-se de uma convivência díspar de elementos.” Para o pesquisador, a música Geléia Geral, de Gil e Torquato Neto, é um claro exemplo dessa ambivalência, justamente por apresentar as contradições da sociedade brasileira sem privilegiar uma e nem outra.
“É a mesma dança na sala
No Canecão, na TV
E quem não dança não fala
Assiste a tudo e se cala
Não vê no meio da sala
As relíquias do Brasil
Doce mulata malvada
Um LP de Sinatra
Maracujá, mês de Brasil”
Geléia Geral, Gilberto Gil e Torquato Neto
Exílio e censura(s)
No dia 27 de dezembro de 1968, Gilberto Gil foi preso ao lado de Caetano Veloso. A prisão dos dois ocorreu devido à promulgação do AI-5 (Ato Institucional n°5 da ditadura militar), que reprimiu os direitos e liberdades artísticas através de perseguições políticas. Segundo Celso, as músicas feitas pelos dois eram também “uma forma de se representar o político num momento de ditadura militar, já que queriam colocar uma voz contra a repressão social”. Os pais do tropicalismo foram condenados sob justificativa de “profanação do hino nacional”, além de terem decorado o palco com uma bandeira da obra Seja marginal, Seja herói (1969, Hélio Oiticica) durante espetáculo feito na boate Sucata. A obra foi considerada polêmica pelo regime militar por representar uma “transgressão” dos valores burgueses e incitar a desobediência dos civis contra militares.
Foram soltos depois de dois meses na quarta-feira de cinzas do ano seguinte e partiram para o exílio na cidade de Londres, onde ficaram até 1972. Já na Inglaterra, Gil lançou um compacto com Aquele Abraço, considerado um dos maiores sambas do Brasil. Representando sua ida para o exílio, a música é um símbolo de resistência e luta contra a ditadura: “Finalmente eu ia poder ir embora do país e tinha que dizer ‘bye bye’, sumarizar o episódio todo que estava vivendo, e o que ele representava, numa catarse. Que outra coisa para um compositor fazer uma catarse senão numa canção?”, explica Gil em sua página oficial.
Durante os anos de exílio, Gil realizou uma série de shows pela Europa ao lado de Caetano, inclusive no Royal Festival Hall. Em 1971 lançou um álbum com músicas apenas em inglês, mostrando, mais uma vez, sua pluralidade como artista. Após retornar ao Brasil, se apresentou com Veloso no Teatro Municipal do Rio de Janeiro e pouco tempo depois lançou o álbum Expresso 2222 (1972), considerado pela revista Rolling Stone Brasil um dos cem maiores discos da música brasileira. O título chegou inclusive a dar nome a um dos trios elétricos mais famosos da Bahia.
No ano de 1973, Gilberto foi novamente vítima de censura, dessa vez ao lado de Chico Buarque. Os dois foram impedidos de cantar a música Cálice durante uma apresentação no festival Phono 73 e tiveram seus microfones desligados por fiscais da ditadura. A canção seguiu proibida durante todo o regime militar.
Gil, Caetano, Gal Costa e Maria Bethânia formaram o grupo Doces Bárbaros em 1976, como forma de celebração dos dez anos de carreira dos cantores. Se reuniram em apresentações por diversas cidades do país e chegaram a dar origem ao filme Os Doces Bárbaros (1976), de Jom Tob Azulay. Durante uma das viagens do grupo, Gilberto foi preso em Florianópolis por porte de maconha. A rigidez das políticas governamentais da época levaram Gil a ser internado em um Instituto Psiquiátrico por mais de uma semana e depois submetido a tratamentos em um sanatório no Rio.
O Gil político
Gilberto Gil integrou, em 1979, o Conselho de Cultura do Estado da Bahia, como o primeiro negro a ocupar o cargo. Maria Bethânia também passou a fazer parte do conselho e juntos criaram a Câmara de Música. Dois anos depois, foi homenageado pela Câmara Municipal de São Paulo com a “Medalha Anchieta Diploma de Gratidão da Cidade de São Paulo”, considerada a maior honraria da cidade.
Em 1986, foi convidado especial do evento “SOS Racismo”, que ocorreu na Praça da Bastilha, na França. Também tomou posse na presidência da Fundação Gregório de Matos (FGM) – organização que atua de forma semelhante à Secretaria Municipal da Cultura de Salvador. Gil intensificou as relações socioculturais entre Bahia e África durante sua gestão, com a abertura dos espaços culturais “Casa da Bahia”, no Benin, e “Casa de Benin” em Salvador.
Poético e político, Gil foi eleito vereador na Câmara Municipal de Salvador em 1988, pelo PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro). Durante seu mandato, atuou como presidente da Comissão de Defesa do Meio Ambiente e criou o movimento Onda Azul pela defesa das águas dos mares e rios do Brasil. Também presidiu o Centro de Referência Negro-Mestiça, conhecido como Cerne.
Em 1990, filiou-se ao Partido Verde e foi convidado pelo centro Woodrow Wilson, em Washington, para a realização de debates acerca da criação de políticas ambientais na América Latina. Nesse mesmo ano, recebeu o título de cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras pelo ministro da Cultura da França. Gil também representou oficialmente a Câmara Municipal de Salvador no Congresso Mundial de Governos Locais para um Futuro Sustentável, promovido pelo programa de meio ambiente da ONU.
Em 2002, Gil foi convidado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva para ser Ministro da Cultura. Iniciou sua gestão com uma série de reformas no Ministério, na Biblioteca Nacional, na Fundação Palmares e na Funarte e começou a trabalhar em projetos destinados à criação de uma casa de cultura em cada município do Brasil.
Em 2008, após cinco anos de gestão, Gil pediu demissão do cargo de ministro. Sua atuação foi de extrema importância para o desenvolvimento e expansão da cultura brasileira, além da luta pela inclusão social na arte, como é o caso do Museu da Maré — inaugurado por ele como o primeiro museu em favela do Brasil.
Família Gil
Cadeira número 20 da Academia Brasileira de Letras, vencedor de nove Grammys e único brasileiro a ter vencido o “Nobel da música popular”, Gilberto Gil é um dos principais ícones da história da MPB. Carrega consigo um legado que se estende por gerações, inclusive entre a extensa família.
Com oito filhos, 12 netos e uma bisneta, a família Gil também faz história na música brasileira. A banda Gilsons, formada por seu filho José e seus netos Francisco e João, é um dos nomes mais relevantes da Nova MPB. Gil reuniu grande parte da família para a realização da turnê “Nós, A gente”, com uma série de shows realizados pela Europa em 2022. A tour foi anunciada também no Brasil, com datas já agendadas para o ano de 2023, juntamente com o lançamento do seriado “Viajando com os Gil”, divulgado pelo Instagram do cantor.
Autora: Beatriz Haddad Ferreira.
Fonte: Jornalismo Júnior/USP.