O jeitinho brasileiro de fazer música britânica

Música eletrônica, rimas e festas expandem a cultura musical de um país diverso.

Bombando Brinque, do DVD Xuxa Só Para Baixinhos Vol. 6 (2005), a música Adoleta (2003) da Kelly Key e Cidadão Comum Refém (2002) de Chorão e MV Bill. O que essa seleção tão específica — e a primeira vista até desconexa — tem de especial?  Além do fato de serem faixas familiares para muitas pessoas, as três são exemplos de diferentes sonoridades que vieram de um mesmo lugar do outro lado do oceano: O Reino Unido. A música eletrônica, apesar de também abarcar gêneros de diferentes países ao redor do globo, tem como uma grande incubadora de estilos musicais essa região do mundo. Ritmos como o JungleDrum ‘N’ BassUK Garage e Grime são grandes exemplos de como a dance music se desenvolveu e se ramificou. Mas como essas frequências viajaram para o Brasil? Quem as levou para os britânicos, quem as trouxe para o nosso país e por quê? Para responder essas e outras perguntas, é preciso voltar alguns anos na história.

Jamaica: O berço de tudo

Tudo começa na pequena ilha do Caribe que influencia a criação de música no mundo até hoje: a Jamaica. Durante os anos 1950, no período pós Segunda Guerra Mundial, um grande fluxo de imigrantes vindos da Jamaica, ainda colônia na época, desembarcava na Inglaterra buscando oportunidades, influenciados pelo próprio governo inglês que carecia de mão de obra. Mencionados muitas vezes como a “geração Windrush” — nome do navio que levou mais de 500 moradores de Kingston oceano afora — os imigrantes jamaicanos se estabeleceram em comunidades isoladas, se relacionando majoritariamente entre si, pois Londres ainda não tinha comunidades negras consistentes como nos Estados Unidos (EUA). 

Nesse contexto, uma das formas que os trabalhadores encontraram para manter contato com sua cultura foi por meio da música, e não demorou muito para que os chamados Sound Systems  paredões de amplificadores que animavam as festas de rua — começassem  a aparecer pelos guetos de Londres. A cultura do sistema de som é a grande mãe dos demais gêneros como o reggae, o rap e o baile funk. É com ela, por exemplo, que surge o Toaster, ou o que hoje conhecemos como MC.

A popularização do ska na Jamaica, em 1960, e do reggae, já no final da década, superou a barreira da distância e fazia sucesso entre os imigrantes no Reino Unido, que também consumiam música dos discos que vinham dos EUA. Foi dessa união de influências que começaram a surgir experimentações cada vez mais ambiciosas. O caráter político ativista das letras de reggae abria novas visões e possibilidades para quem pensava em fazer música, e quase como uma consequência direta dessa energia que acelerava os corações dos ingleses, os ritmos também se aceleraram cada vez mais, chegando, anos depois, ao Jungle.

Jungle: O som selvagem que encanta

Pode-se dizer que o Jungle, também chamado de Drum ‘N’ Bass, é o filho do ragga jamaicano com o Acid House, que nasceu em Chicago, mas era a febre dos anos 80 nos clubes do Reino Unido. Um som acelerado, na casa dos 160-180 BPM, com a bateria muito mais marcada e frenética que a de outros gêneros. Não há um consenso sobre a diferença entre o Jungle e o Drum ‘N’ Bass ou sequer sobre a existência de alguma diferença. Alguns argumentam com diferenças históricas, mas na prática, ambos são nomes utilizados para caracterizar músicas com esse mesmo padrão de breaks de bateria acelerados e graves pesados. Uma referência da cultura pop que pode ajudar a entender do que se trata essa sonoridade é a música de abertura do desenho As Meninas Super Poderosas. 

O gênero surge quando DJs de Brixton começam a tocar as faixas de Acid House a 45 rotações por minuto, ao invés das costumeiras 33. “Aquilo causava um frenesi nas raves e os caras pensaram em ir para o estúdio, aumentar o tempo da música e já produzir ela rápida“, conta DJ Patife, em entrevista para a Jornalismo Júnior.

Jungle no Brasil

Atualmente residindo em Portugal, Patife é um dos nomes da cena de Drum ‘N’ Bass no Brasil, e traz um panorama sobre a música eletrônica por aqui: 

“A gente vem de uma escola onde nós ouvimos de tudo um pouco. A minha base, que me levou ao mundo dos DJs, foi o Hip Hop. Eu tive grupo de rap, vi toda essa turma nascer: Thaíde, DJ Hum, Racionais, Xis. A gente ia para os mesmos campeonatos de DJ, para os mesmos bailes de equipe de som da Chic Show, Zimbabwe, Black Mad… e era tudo muito rico sonoramente, então a gente ouvia sons daquela época áurea do Jorge Ben Jor, Trio Mocotó, Marco Ribas… Originais do Samba, Bebeto, Bezerra da Silva… e ao mesmo tempo tocava Public EnemyN.W.AWhodini, Run DMC, os pais do Rap. E depois tocava um pouco de dance music, um pouco de disco music… Tocavam as músicas lentas que a gente dançava agarradinho…” ele comenta rindo. 

Flyer do baile Chic Show, responsável por fomentar a música negra no Brasil entre as décadas de 70 e 90 [Imagem: Reprodução/Twitter/@Eucardim]

“Então a nossa escola vem de uma mistura muito eclética de sons da black music. Quando o Jungle começa a aparecer em São Paulo e Rio de Janeiro nas primeiras lojas de disco, todos nós que viemos dessa escola nos apaixonamos de cara pela versatilidade desse tempo rápido e ao mesmo tempo lento”. 

Patife explica que os 170 BPM, na prática, são 85 BPM, pois o ritmo se mantém ao ser reduzido pela metade, fazendo com que qualquer música entre 80 BPM e 100 BPM funcione bem quando combinada com o Jungle, tanto na produção como na discotecagem. 

“Só dentro de 80 BPM a gente já tem de cara o próprio reggae, que é a base do Drum ‘N’ Bass, do Dubstep, a base do Grime, do UK Garage. Tudo está no reggae. E o Jungle mexeu muito com a nossa cabeça, porque ele contém tudo que a gente ama. Aquela pressão baixa, aqueles 30 hertz, aquelas linhas de baixo que tremem o chão… Esse é o resumo, a síntese, o porquê do Jungle. A versatilidade dessa música e o que ela carrega em si mesma é simplesmente absurdo… depois a gente veio com o samba, com toda essa coisa brasileira da bossa. É isso. Eu não tenho muito o que explicar, foi amor à primeira vista.”

Aqui no Brasil, devido a essa versatilidade que encantou Patife, o Drum ‘N’ Bass se misturou com os ritmos mais lentos, o que rendeu colaborações com artistas nacionais de fora da música eletrônica. Graças a produtores como Marcelinho da Lua, Ramilson Maia, XRS e o próprio DJ Patife, é possível ouvir hoje faixas de Jungle vocalizadas por Seu Jorge e Mart’nália, por exemplo. Dois expoentes notáveis dessa onda foram o projeto Kaleidoscopio, de Ramilson Maia, Janaína Lima e Gui Boratto, além de Sambassim (2002), música de Fernanda Porto remixada por DJ Patife e XRS.

Em 1997, alguns anos antes do grande boom do Drum ‘N’ Bass no Brasil, os dois amigos DJs, Patife e Marky, fizeram sua primeira viagem a Londres, que quase não aconteceu. Isso porque Patife reservou as duas passagens em maio para viajar em agosto, mas a dois dias do prazo de pagamento ainda não tinha conseguido o dinheiro para a sua. Foi somente quando Ricardo Coppini, DJ premiado e reconhecido no mundo da discotecagem, apareceu na loja de discos que Patife trabalhava, o encontrou triste e se desdobrou para realizar o sonho do amigo. 

“Ele me levou até a agência de viagens do primo dele em São Bernardo do Campo, pegou a reserva que eu tinha da outra agência e o primo fez algum esquema. O Ricardo passou o cartão dele em 18 parcelas de 111 reais, eu nunca vou esquecer esse número…”. Patife descreve essa viagem como uma virada em sua carreira, pois além de ter tido o contato com os artistas de Londres,  que são seus managers até hoje, assim que voltaram ao Brasil fecharam um contrato com a gravadora Trama, que foi responsável por muitos lançamentos dessa cena nesse período, entre eles o CD de Patife Sounds of Drum ‘N’ Bass (1999), o qual ele descreve com carinho. “Esse é meu filho, é aquele primeiro do coração”.

O gênero teve presença garantida nas rádios e canais de televisão, mas antes disso, dominava as pistas. “Assim como o rap, o rock, o samba, o jazz… tudo é abraçado pelo gueto em primeiro lugar, pelas pessoas com o poder aquisitivo muito baixo e que não podiam ir a shows, então se reuniam nos bailes da equipe de som grátis na rua […]” Patife comenta, reforçando que o Jungle era um estilo popular nas zonas periféricas.

Por esse motivo, o gênero sofreu repressão, chegando a ser proibido em alguns clubes e mal falado em veículos de mídia. “Quem frequenta os bailes de Jungle é o público que bebe água na pia do banheiro”, “Preto nunca vai tocar no meu club”, “O povo do Jungle da periferia não tá com nada” são alguns dos comentários e manchetes que o DJ cita para exemplificar o tratamento da época. 

“[…] foi muito feio, machucava a gente no âmago da alma. Mas vencemos tudo isso. Chegou no ponto em que as periferias estavam com casas cheias às sextas, sábados e domingos com 5 a 10 mil pessoas… eu tocava no [clube] Arena em São Paulo, Interlagos, eram 2.200 pessoas no domingo, numa matinê. Então as pessoas começaram a ligar para a rádio falando ‘Eu quero ouvir tal música’, e aí o mainstream teve que trazer isso para ele, não teve escolha”. 

Patife ainda ressalta que essa popularização foi responsável por fortalecer o turismo no Brasil de uma forma que nenhum outro movimento conseguiu. “Os caras da Embratur chegaram a nos contactar dizendo que muita gente estava vindo para o Brasil porque viram o Marky, Patife, Mau Mau, DJ Marlboro, Renato Lopes, Chico Science. Então, quando as passagens aéreas ficaram mais acessíveis, a música — e principalmente a música eletrônica — enriqueceu o turismo do Brasil de uma maneira absurda e ninguém fala disso… ninguém nunca escreveu sobre o quanto o trabalho do DJ enriquece as conexões, os intercâmbios. Porque quando a gente toca é diferente do inglês, do japonês, é diferente do norte-americano. A gente toca com outro approach, cantando, se expressando… Os caras amam a gente!”. 

Um exemplo dessa abordagem brasileira que se destaca na discotecagem são as performances de DJ Marky nos scratches, nas quais ele chega a virar o toca-discos de cabeça para baixo, movimento que virou sua marca registrada.

Enquanto o Drum ‘N’ Bass vivia seu momento por aqui e o jeito brasileiro de fazê-lo encantava ouvintes ao redor do mundo, Londres vivenciava o nascimento de uma nova faísca musical. A tendência de acelerar cada vez mais tinha perdido sua força entre os ingleses, que procuravam algo mais suave, melódico e com influências americanas. O som do momento era o Garage, que teve seu momento no Brasil tempos mais tarde. A onda melódica e suave, entretanto, começa a ser deixada de lado e ao mesmo tempo a cultura do MC é retomada. Quanto mais os produtores experimentavam essa nova vertente, aquilo se distanciava do que um dia foi Garage, e gradativamente se construiu um novo gênero nos guetos de Londres: entre 2000 e 2002, surge o Grime.

Grime: o primo caçula do Rap

À primeira vista, o Grime pode ser confundido com um subgênero do rap, mas é, em essência, um gênero da música eletrônica. Sua marca mais característica é a cadência de 140 BPM —  um intermediário entre os 160 do Jungle e os 130 do Garage — mas é difícil defini-lo para além disso. O gênero é experimental e tem uma fonte enorme de influências. O jeito que os MCs rimam é acelerado, com uma métrica própria, diferente do rap. Os instrumentais passeiam pelo Garage e Drum ‘N’ Bass e são pouco uniformes entre os diferentes produtores. Clubes e rádios piratas de Londres foram então tomados por jovens MCs rimando energicamente, se reunindo para gravar suas faixas e escrever suas rimas, em uma atmosfera de competição que também é característica marcante do gênero.

Na mesma época, MV Bill, nome consagrado do hip-hop brasileiro, se depara com faixas de um dos pioneiros do Grime londrino.

O sotaque britânico e as rimas rápidas logo chamaram a atenção do rapper carioca que guardou aquilo em sua memória e, junto ao eterno Chorão e ao produtor DJ Luciano, compôs algum tempo depois a faixa Cidadão Comum Refém (2002), considerada o primeiro Grime do Brasil

Existem outros registros de nomes do hip-hop nacional se aventurando em beats de Grime, como o grupo Z’África e a cantora Flora Matos. No entanto, após o clássico do álbum Declaração de Guerra (2002), de MV Bill, o gênero encontrou terreno fértil novamente em suas raízes jamaicanas. Em 2005, o grupo 7 Velas Crew, composto por artistas de ragga e dancehall, lança o álbum Crew Du Fya, com algumas faixas que exploravam a sonoridade do Grime. O grupo era composto pelos MCs Jimmy Luv, Arcanjo, Xandão, Jota e pela MC Suppa Flá. 

No ano seguinte, algumas das faixas foram remixadas por Bruno Belluomini, um DJ e produtor da cena de música eletrônica de São Paulo que disseminava gêneros da UK Music por meio da festa Tranqueira. Bruno é, inclusive, um dos envolvidos em uma mixtape de Grime que Emicida quase fez em 2004. A parceria não demorou a se firmar entre Jimmy Luv e Bruno, resultando na faixa Vou Keimah! (2006), que tocou em rádios de Londres. 

Ainda nessa época, a centenas de quilômetros de distância, os artistas envolvidos com o reggae em Salvador – importante cidade para o Grime no Brasil – também iniciaram movimentações como essa. Uma sessão do DJ Lord Breu com os MCs Russo Passapusso (atual vocalista do Baiana System), Fael Primeiro e Vandal contém o primeiro registro brasileiro conhecido de Grime em um DJ set

De volta a São Paulo, por volta de 2007, o produtor e DJ Yescal, também de São Paulo, fazia festas em sua casa para seus amigos, fugindo da lógica da balada, tocando estilos variados de música eletrônica. Dentre os frequentadores, estava a jovem Peroli, hoje DJ e principal ponte entre os artistas das cenas brasileira e londrina.

“Não eram festas que viravam a noite, eu era menor de idade, nem todo mundo que colava bebia nem usava nada. O negócio era mais a música mesmo, então era muito mais suave. Isso foi em meados de 2007 e 2009, em São Bernardo” Peroli conta. 

Quando perguntada sobre as faixas que tocavam na época, a DJ relata que saber sobre isso sequer era uma preocupação: “Naquela época não tínhamos nem celular, então era muito difícil eu anotar nome. Só sabia que eram músicas que eu gostava, mas eu nunca me apeguei a saber nome de produtor, de DJ, de MC… Hoje eu sei que a gente ouvia os clássicos, tipo Rebound X, mas só fui saber muito depois”. 

O clássico citado por Peroli se trata da música Rhythm ‘N’ Gash (2006), uma das faixas mais emblemáticas quando se fala em Grime, produzida por Rebound X, que sequer registrou a música e desapareceu da internet pouco antes de seu sucesso. O instrumental já foi base para inúmeras participações de MCs em sets e programas de rádio, não só em UK, como no vídeo abaixo, mas também no Brasil.

Entre idas e vindas, é somente em 2019 que o Grime tem sua ascensão no país. O surgimento do Brasil Grime Show, inspirado nos programas de rádio de Londres, atrai o público do rap para o gênero. O projeto consiste na realização de sets com MCs convidados que rimam suas letras em beats selecionados pelo DJ que comanda o episódio. Atualmente com sete  temporadas completas, o programa já recebeu atrações internacionais e uma variedade de artistas de diferentes vertentes e lugares do país.

ANTCONSTANTINO, nome artístico de Antônio Constantino, é DJ, produtor e movimentador cultural do Grime no Brasil, além de ser idealizador do selo Leigo Records. De Duque de Caxias, o jovem artista era um dos DJs residentes no Brasil Grime Show – projeto do qual já não faz parte desde a 4ª temporada – e em entrevista à Jornalismo Júnior, comenta um pouco sobre o desenvolvimento do Grime no país.

“O que tinha na internet na época em relação a Grime não era igual hoje em dia, então a única pessoa que eu tinha para conversar era o diniBoy, e a gente ficava trocando muita figurinha sobre isso. Foi assim que veio a ideia do BGS”, ele conta. 

Mencionando sua relação com o rock e como isso influenciou seu gosto pelo gênero londrino, ANTCONSTANTINO também diz que o Grime foi uma forma que ele encontrou de expressar a energia caótica de que sentia falta. “O rolê de rock meio que morreu, então eu quis trazer comigo essa galera que ficou órfã. No meu set tem muita energia de show de rock, a galera se joga muito, e eu sabia que o pessoal [do rock] que fosse ia curtir. Na maioria dos episódios do BGS eu ia com camiseta de banda que eu curtia, casaco de straight-edge… Acabou que funcionou, porque depois de vários anos ainda chega gente falando que começou a ouvir a parada porque me via com a camisa do Ratos de Porão”. O DJ ainda acrescenta que ele não foi o único que migrou da cena de rock para o Grime, citando o produtor Toncali, ex-baterista da banda DPR.

Fora do eixo

Até então, as movimentações já citadas se concentraram principalmente entre Rio de Janeiro e São Paulo, com poucas exceções. Entretanto, as particularidades musicais das demais regiões do país propiciaram o surgimento de movimentos em outros estados. 

A relação entre Jamaica e Bahia foi uma facilitadora da assimilação do Grime no local. Já em 2013, a capital Salvador se conectou com Londres através do evento Bass Culture Clash, que trouxe para o Brasil a veterana do grime Lady Chann, dentre outros artistas ingleses. Mais tarde, em 2015, o artista Vandal também contribui para esse movimento com a música que dá nome à mixtape TIPOLAZVEGAZH (2015).

No entanto, é somente a partir de 2021 que começa a se perceber uma cena organizada e numerosa na Bahia. ANTCONSTANTINO e a equipe da Leigo Records saíram em uma turnê que passava por Salvador e puderam presenciar e registrar os artistas locais em atividade. 

“Aquele set é uma das coisas mais doidas que eu já vi, porque foi bem no começo [da cena] e ali ninguém nunca tinha cantado em set. Tem MC ali com uns flows muito fora da curva e que não tem música lançada até hoje”. O set citado se trata de uma gravação feita em Acupe de Brotas, em que MCs baianos – majoritariamente membros do coletivo 4° Sujo – rimam em beats de Grime mixados pelo DJ carioca. 

Originalmente, o acontecimento tinha sido registrado em imagens pelo cinegrafista Wander Scheeffër, mas os arquivos das gravações foram perdidos, restando apenas o áudio que pode ser encontrado no canal do Youtube de ANTCONSTANTINO. 

Tour Caruru, Queijo e Poluição concluiu o processo de criação do EP Ameaça Detectada de Bruno Kroz [Imagem: Reprodução/Instagram/@leigorecords]

O produtor caxiense também adiciona que “[…] as influências do bairro e da cidade ajudam o MC a se desenvolver. Eu visitei o [Bruno] Kroz e lá os vizinhos ouvem reggae e dancehall o dia todo. Como o Grime tem referência de reggae também, acaba que o pagode [baiano] é muito grime no jeito que os caras fazem as batidas, tudo lá tem essa referência.”

“Em Salvador, a galera consegue ter uma identidade mais forte do que em São Paulo, por exemplo. Ser tão marcante a ponto de você ouvir e saber quem é na hora é algo que acontece quando você ouve o Bertho, ou até o Rocky, irmão do Kroz. Ele é muito sinistro, é um moleque que dá pra reconhecer desde o timbre de voz, a métrica, tudo. Pra mim não faz sentido um cara desse não ter dinheiro. Mas infelizmente o ‘rolê’ não é tão justo”, completa o produtor, destacando que, apesar da riqueza artística, os investimentos ainda se concentram na região sudeste.

Além da Bahia, o Grime também tem sido feito em Recife, com influências da música local. Os EPs Arrecife (2023), de Rotciv, e Vvivence (2021)de Lucas Sang, ambos produzidos pelo DJ e produtor Zoe Beats, são exemplos do que está sendo produzido na cena pernambucana. Zoe ainda conduz o projeto Destalado, que começou como um programa com MCs e hoje também promove festas para fomentar o gênero.

No Rio Grande do Sul, Gau Beats e Jay-Gueto levam adiante o ritmo de UK. O casal de beatmakers produz outros artistas da região sob o selo da Gueto Anonimato Records, além de trazer visibilidade à cena local através do programa Grime Station, que já está em sua segunda temporada.

Quando o Funk encontra o Grime

Durante o desenvolvimento do Grime, o funk foi um dos gêneros da música brasileira que se misturou a ele e deu uma identidade nova ao estilo. Ao ser questionada pela Jornalismo Júnior sobre a presença do funk em seus sets, Peroli responde: “O papel do DJ sempre é o de educar o público e eu tento muito fazer isso. Comecei a tocar praticamente junto com o movimento da criação da Perifa [No Toque], que era uma festa com a proposta de tocar funk, mas eu nunca fui DJ de funk e nem ouvia muito. Quando eu comecei eu tocava muito trap e música norte americana, tipo Anderson .Paak, GoldLink, músicas mais suaves, porque eu sempre abria a festa. Quando começaram a me mudar de horário eu pensava que precisava ter um pezinho ali [no funk] porque eu estou introduzindo o público para o que vai acontecer depois.” 

Mesmo com a demanda pelo ritmo brasileiro, Peroli só pensava em ouvir Grime e nada além disso. “Eu estava numa fixação que, se eu não ouvisse [Grime], meu rolê não era bom. E aí foi meio que uma fórmula que eu encontrei, porque para quem não conhece é um som meio agressivo, que incomoda. Você não conhece a letra, é um sotaque diferente, uma métrica diferente… mas ele encaixa perfeitamente com o funk, então eu comecei a fazer essa combinação.” 

Ainda na temática, a artista descreve o mix do funk com o Grime como um ato “[…] pensado para ganhar o público, mas também para introduzir o gênero para essas pessoas. A intenção era que elas gostassem e soubessem que tem muito mais semelhanças com o que a gente está acostumado a ouvir do que diferenças. E funcionou, pelo menos ninguém nunca falou que não gostava”.

Sobre semelhanças da cena brasileira com Londres, Peroli diz que “[…] especialmente no Rio a fonética deu muito certo. Não é questão de ser melhor ou pior, mas eu acho que fica mais fluido o Grime feito pelo carioca. Mas se você pegar como exemplo o AKA AFK, que é paulista, ele faz isso muito bem também. Ele constrói as rimas dele como um MC de funk num beat de Grime e fica perfeito. Tem esse lance da agressividade na voz que tem lá e aqui também. Tem até gíria carioca que é muito parecida com gíria inglesa”. A DJ, que é também professora de inglês, comenta que essa relação entre as duas línguas é algo que ainda gostaria de estudar a fundo. 

“Além disso, tem todas as questões sociais, mesmo estando em um outro país e outro contexto. A parte pobre de lá sofre tanto quanto a parte pobre daqui, só que em proporções diferentes. Eles [os MCs] colocam isso muito bem nos versos e eu acho que isso também é uma similaridade. E por fim a estética. Por mais que lá seja frio e aqui mais quente, a gente tem um pouco desse estilo [de se vestir] que também está muito ligado ao funk” ela conclui.

Tantas semelhanças inspiraram a produção do EP Brime (2020), do DJ e produtor CESRV em colaboração com os MCs paulistas Febem e Fleezus. O trabalho mescla samples clássicos do Grime londrino com timbres e linhas de bateria do funk paulista, e assim se consolidou como um EP que representa a união dos dois ritmos. Em entrevista ao Rap TV, em 2020, CESRV conta que a ideia surgiu de seu próprio interesse de dar uma cara nova ao ritmo que ele já consumia e gostava. Segundo ele, a boa recepção do disco evidencia uma carência do público por referências não-americanas. “A gente foi buscar [influências] na África, na Europa e esqueceu um pouco os Estados Unidos” Fleezus comenta, ao que Febem logo completa “E muito Brasil”. 

Em 2022, o funk também se misturou ao Grime na obra de Puterrier, MC do Rio de Janeiro. O subgênero que o próprio artista denomina como Atabagrime foi o estilo escolhido para compor o EP de mesmo nome, lançado em outubro do último ano. Se trata de uma junção do funk 150 BPM carioca com o ritmo londrino. “O que o Puterrier faz eu acho até mais frito do que o Brime” comenta ANTCONSTANTINO, usando um termo que costuma ser atribuído a músicas que tocam em raves.

Outros exemplos do cruzamento do funk com o Grime são o álbum 40º.40 (2020) de SD9, o EP Brasa no Mapa (2021), do produtor Toncali em colaboração com o MC AKA AFK, além de participações de diferentes MCs de funk em episódios do Brasil Grime Show.

Garage: o refresco urbano

Como já mencionado, o Garage foi o gênero transitório entre o Jungle e o Grime no Reino Unido. Porém, no Brasil a coisa se inverteu. Com exceção de lançamentos isolados como Adoleta (2003) de Kelly Key ou o remix de Filhos da Rua (1990) do Sampa Crew, o Garage só se consolida como um movimento no Brasil depois da popularização do Grime. “Na época que eu já estava fazendo minhas curadorias de Drill, eu conheci um grupo lá no Espírito Santo que fazia basicamente o que o ruadois faz hoje.  E aí eles desistiram de fazer e apagaram as coisas, mas era um produto muito bom de Garage com rap igual a gente faz”, conta DJ Akila, nome artístico de Camila Alda, em entrevista à Jornalismo Júnior

A DJ é integrante do grupo belorizontino ruadois, citado na fala, do qual também fazem parte Well e Mirral ONE, MCs mineiros de rap que já tinham se aventurado em gêneros ingleses como o Grime e o Drill – inclusive, no caso de Well, em uma parceria com Djonga em 2017. Além dos três, os produtores Gabriel Duarte e George Luqas,  anteriormente focados em produzir versões indie de outras músicas no projeto qnipe, também integram o coletivo. A junção dessas influências trouxe ao mundo o primeiro volume do projeto Proibido Estacionar (2021), que pouco tempo após seu lançamento foi transformado oficialmente no primeiro álbum do grupo. O trabalho exemplifica a mistura do rap com o Garage no qual consiste a proposta do ruadois. Recentemente, a iniciativa em formato live set ganhou seu segundo volume, com faixas inéditas, poucos dias após uma apresentação exclusiva no Prêmio Rap Brasil, ao qual foram indicados na categoria “Melhor Performance Ao Vivo”.

Akila diz que a assimilação dos gêneros da UK Music no Brasil acontece muito devido a uma questão nostálgica. “A Kelly Key fazia, tocava [Drum ‘N’ Bass] na rádio, na novela… O Brasil viveu momentos em que todo mundo sabia esse estilo musical e isso passou pra nossa geração. São lugares na nossa cabeça que tem essa memória lá de 2000, de uma coisa que simplesmente evaporou e ressurgiu agora quase 20 anos depois”.

“Nós nunca deixamos de entender esses ritmos, acho que a gente só não sabia nomeá-los.”
DJ Akila

A DJ também relata que antes de começar sua pesquisa no Garage, ainda tocava muito House, que é um dos principais precursores do gênero inglês, e ressalta sua importância histórica. “Eu tava numa parada mais neo-soulKaytranada, SG Lewis. Era uma pesquisa mais preta, fazendo esse resgate, porque a música eletrônica foi considerada por muito tempo uma música meio elitista, com classe e cor, mas sempre veio de nós, pessoas de quebrada”. 

Quando questionada sobre a influência da música mineira no trabalho do ruadois, Akila conta que a motivação maior foi a falta de coisas novas, em especial no rap. “Minas Gerais é um berço de muita música, são gerações e gerações produzindo coisas boas e diversas. Acho que nunca ninguém ficou batendo na mesma tecla por muito tempo aqui. É só ver o Milton, Lô Borges… eles mudaram sonoramente. Já no rap, a gente estava caminhando numa época de trap, então acabou ficando uma coisa muito estática. Aqui em Minas Gerais, eu acho que todo mundo percebeu essa falta de buscar outras formas de conseguir trazer o rap com sonoridade diferente, então a ideia foi fugir do ponto comum que todo mundo estava esperando”. Ela ainda acrescenta que lançamentos como Baile (2021), álbum de FBC e VHOOR, e faixas da dupla Ogoin e Linguini – que fazem Drill numa estética mais melódica e diferente do comum para o gênero – são frutos dessa busca pela inovação.

Além de Belo Horizonte, São Paulo também marcou sua presença na história do Garage brasileiro. O já mencionado Brime contém a faixa Terceiro Mundo representando o gênero, mas foi quando os MCs paulistas PLK e Ruas se juntaram ao produtor André Miquelotti que surgiu o projeto Picaretas de Fachada (2022), um EP completamente dedicado ao UK Garage. O segundo volume do trabalho já foi confirmado recentemente por André, via Twitter.

Assim como foi no caso do Grime, o nordeste não ficou de fora desse movimento. A junção de samples do funk à cadência do gênero londrino nos trouxe o EP Favela Garage Beats (2020), do maranhense Brunoso, e o single Me Pega Assim (2022) do cearense Wavezim, ambos os produtores citados por DJ Akila como representantes da região no Garage.

UK Music veio para ficar

Os ritmos eletrônicos do Reino Unido conquistaram no Brasil seus próprios admiradores empenhados em produzí-los. Uma nova geração inova em trabalhos dedicados ao Jungle, resgatando o que era popular nos anos 2000, como é o caso do EP TUNNELRUNNING (2022) do produtor Chediak. Beatmakers de diferentes locais do Brasil experimentam cada vez mais nas produções de grime, a exemplo do piauiense Viana e do londrinense Meio Feel. Além disso, artistas do rap como Alt Niss, Budah e Luccas Carlos, na busca por novos estilos, têm encontrado no garage uma forma de mudar a estética.

Dessa forma, a incorporação dos diferentes gêneros da UK Music se mostra algo cada vez mais promissor, se descentralizando e incluindo pessoas guiadas pelo mesmo motivador primordial: a música.

“Se a música fosse uma religião ela seria a que uniria a população do mundo.”
DJ Patife

Autor: Pedro Malta.

Fonte: Jornalismo Júnior/USP.