As atletas olímpicas Mayra Aguiar e Rafaela Zanelatto falam sobre os obstáculos enfrentados por mulheres no esporte e sua luta para superá-los.
“No início, senti na pele o que foi a falta de investimento e o preconceito com o judô feminino.” Quem afirma é Mayra Aguiar, primeira brasileira a ser três vezes medalhista olímpica. Mayra começou sua trajetória no judô aos seis anos e aos 14 já se dedicava dia e noite ao esporte. Até hoje ela se lembra de ouvir muitos dizerem que “o judô feminino não chegaria a lugar nenhum”. Em entrevista exclusiva à Factual 900, a judoca mostra como homens e mulheres ainda têm tratamentos desiguais nos esportes de alto rendimento. Ela e a jogadora de rubgy Rafaela De Conti Zanellato, que também falou com a reportagem, revelam as dificuldades das atletas em conquistar um espaço ainda nos dias de hoje.
Mayra afirma que os investimentos no judô masculino e feminino são iguais, mas, quando ela começou, a verba ainda era menor para as mulheres. Outro obstáculo que todos os atletas enfrentam são as lesões. “Tu tem que tirar muita força para passar por isso, eu já tenho sete cirurgias. Felizmente me recupero muito bem e sempre acho que volto mais forte, tanto fisicamente quanto mentalmente”, comenta Mayra. A sétima cirurgia da atleta foi no final de 2020, às vésperas da Olimpíada que foi adiada para 2021.
Mayra acredita que suas medalhas são boas para o judô feminino, mas “infelizmente ainda há mais atletas homens do que mulheres no judô”. Essa realidade tende a melhorar com o tempo, mas as mudanças ainda são lentas e tem muito caminho a ser percorrido para uma igualdade no judô.
O MACHISMO COM MULHERES NO ESPORTE
“Já escutei que o que eu fazia era um esporte de homens e depois escutei que meu corpo não era feminino o bastante, que eu era muito forte para uma mulher.”
Essas foram as palavras da judoca três vezes medalhista olímpica Mayra Aguiar, bronze em Tóquio. Mesmo com as críticas e pressão ao longo da carreira, a atleta se orgulha da profissão e se sente feliz por ter ignorado as pessoas que diziam que o judô feminino não chegaria a lugar nenhum. Essa é a realidade de diversas atletas que lutam para alcançar espaço no esporte.
Durante muito tempo, a atuação feminina nas Olimpíadas foi vista como inapropriada, inclusive, pelo idealizador do evento, Pierre de Coubertin, que as proibiu de participar nos primeiros jogos. Mas já na segunda edição, em 1990 na França, elas participaram e nunca mais pararam. Isso não significou uma jornada fácil. Discriminação, assédio, sexualização, estas foram muitas das barreiras que tiveram de ser ultrapassadas.
A atleta olímpica e técnica do time de rugby feminino da Faculdade Cásper Líbero, Rafaela De Conti Zanellato, também sofreu preconceito quando decidiu que queria se dedicar ao rugby. Comentários sobre ser delicada, mocinha demais e até sobre sua orientação sexual foram feitos.
“Eu falei que uma coisa não tem nada a ver com a outra, mas, de primeira mão, parece que muita gente que não conhece, que não se identifica e que não tem essa noção pensa isso mesmo. As pessoas ainda não entendem esse mundo que é o rugby, onde você pode ser quem você é, independente da sua ‘opção’ sexual ou de qualquer outra coisa. O rugby é um esporte como qualquer outro, que independente de ter um contato ou não, ele não interfere em outras partes da nossa vida.”
INVESTIMENTO PARA MULHERES NO ESPORTE
Na maioria dos esportes, o investimento na categoria feminina é bem mais baixo quando comparado à masculina, principalmente em modalidades consideradas “para homens”. “No início, eu senti na pele o que foi a falta de investimento no judô feminino”, diz Mayra Aguiar. A medalhista olímpica vê evolução na discussão: “Hoje, o investimento é igual. Participamos de treinamentos e competições no exterior da mesma forma que a equipe masculina”.
Rafaela Zanellato conta que, por anos, o piso de diferença entre mulheres e homens com salário A (destinado aos jogadores que mais se destacavam) era superior a R$ 10 mil. “Nós não tínhamos patrocínio para o feminino. Existia um investimento para o masculino e, teoricamente, o que recebíamos era um desvio de verba que direcionávamos para algumas coisas. No começo, era até conseguirmos as classificações. Quando nos classificamos, não precisamos mais do dinheiro que vem do recurso do masculino; conseguimos captar verba através do Comitê Olímpico Brasileiro (COB)”, afirma a medalhista. “Eles se tornaram a nossa base e a nossa estrutura. Mesmo assim, não tínhamos um patrocínio nosso, o COB nos dava grana porque estávamos convocadas. Se não estivéssemos, também não haveria mais dinheiro.”
No futebol, um levantamento realizado em 2019 pelo jornal Extra indicou que menos de 1% dos orçamentos anuais dos clubes da Série A era destinado ao time feminino, com exceção do Santos, que investia 1,02%.
Na esfera mundial, a Fifa, entidade que cuida do futebol profissional, pretende investir US$ 500 milhões no futebol feminino e, na Copa do Mundo Feminina de 2023, aumentar o número de seleções para 32 e dobrar a premiação para US$ 60 milhões.
Essas mudanças parecem um grande avanço. Porém, com o aumento na premiação do Mundial masculino, a disparidade não só é mantida, como também, ampliada: o abismo entre os gêneros vale US$ 380 milhões.
Em entrevista à Factual 900, a jornalista esportiva Denise Mirás, que cobre os Jogos Olimpícos desde 1980, afirmou: “As mulheres sempre tiveram premiação mais baixa. O torneio de tênis é o exemplo mais gritante. Agora, temos um movimento muito forte para igualar isso, estamos evoluindo, de passinho em passinho”.
Um dos movimentos mais populares que luta pela equidade de gênero nos esportes é o Go Equal, que conta com o apoio de diversas atletas. A embaixadora do movimento é a seis vezes premiada pela Fifa melhor futebolista do mundo, Marta. Inclusive, durante a Copa do Mundo Feminina de 2019 e as Olimpíadas de Tóquio 2020, a Rainha do Futebol utilizou um par de chuteiras com o símbolo do Go Equal.
Rafaela também reconhece que os times femininos têm conquistado mais espaço também no campo dos patrocínios: “A gente está tentando das formas que a gente consegue. Eu, em particular, agora tenho parceria com uma marca de materiais para medicina esportiva. Mas eles não dão verba, só materiais mesmo”.
VESTIMENTAS E SEXUALIZAÇÃO
Além da falta de investimento no esporte feminino, Denise Mirás acrescentou que, na época em que começou a cobrir eventos esportivos, a federação exigia um macacão similar ao da ginástica como uniforme de vôlei, o qual possuía até uma medida mínima. Ela citou ainda o exemplo das jogadoras de vôlei de praia Jacqueline Silva e Sandra Pires:
“Elas foram as primeiras brasileiras a conquistarem medalha olímpica e contam que quando foram subir no pódio, em Atlanta (1996), para receber suas medalhas, não deixaram elas colocarem os agasalhos, porque tinham que subir de biquíni.”
A jornalista concluiu dizendo que o próprio time deveria decidir suas vestimentas, do jeito que faz as atletas se sentirem melhor. Durante as Olimpíadas de Tóquio, um caso que ganhou muito destaque foi o do time alemão de ginástica artística. Em vez de usarem o tradicional collant, as alemãs optaram por um macacão que cobria as pernas também, afirmando que, desse jeito, elas se sentiam mais confortáveis.
Embora a vestimenta seja a mesma para os homens e para as mulheres (o judogui), dentro do judô, Mayra Aguiar também declarou já ter sofrido julgamentos em relação ao seu corpo. Ela comentou ter ouvido de pessoas que ele não era feminino o bastante. Apesar disso, hoje, ela comemora não ter dado ouvidos às opiniões alheias: “Hoje agradeço por não ter aceitado este falso ‘padrão social’. Me orgulho da profissão que escolhi e amo meu corpo, de todas as maneiras e com todas as cicatrizes”.
REPRESENTATIVIDADE E INSPIRAÇÃO
Apesar das dificuldades encontradas durante todo esse trajeto, a vitória das atletas é uma grande representatividade do espaço feminino dentro desse mundo e também serve de grande inspiração às mulheres e meninas que sonham em ter uma carreira no esporte algum dia.
Como disse Denise Mirás, “agora estamos naturalizando o segundo, terceiro e quarto lugar nas Olimpíadas porque a vitória de uma é a vitória de todas”. Um exemplo disso, ocorreu na competição do skate park feminino quando Misugu Okamoto, líder do ranking mundial, caiu em sua última volta, perdendo a chance de ganhar uma medalha e foi levantada e carregada pelos ombros de suas adversárias. Assim, pode-se concluir que o evento é apenas parte das conquistas das mulheres no esporte e a jornada – as vezes que elas se levantaram mais do que caíram – representam muito mais do que uma medalha de ouro.
Essas mulheres, tanto atletas como jornalistas, encaram uma realidade difícil para viver nesse meio. Logo, a empatia e companheirismo vistos entre elas nessas Olimpíadas são um marco da história do esporte. A melhor forma de ser inspiração a outras é justamente mostrando como juntas a diferença e a conquista podem ser maiores e ainda mais gratificantes.
PARIS 2024 E A IGUALDADE DE GÊNERO
A força feminina ganhou notoriedade durante as Olimpíadas de Tóquio: muitas medalhas, posicionamentos, reivindicações e protestos. Para Paris 2024, Thomas Bach, presidente do Comitê Olímpico Internacional (COI), declarou que, pela primeira vez, as Olimpíadas serão disputadas com 50% de atletas homens e 50% de atletas mulheres. Dessa forma, a inédita igualdade de gênero será alcançada.
Para tanto, haverá o aumento de competições mistas, como a vela, o tiro esportivo e o atletismo. No boxe, são 252 vagas a serem divididas igualmente entre os gêneros, algo que nunca ocorreu na história do esporte nas Olimpíadas. Outros esportes que alcançarão a igualdade são o atletismo e o ciclismo.
Foram levantadas discussões sobre os salários, patrocínios, vestimentas e a força das atletas mulheres. Com isso, como Mayra Aguiar afirmou, “cada vez mais sinto que a sociedade reconhece o lugar da mulher no esporte”.
Para saber mais sobre a história das Paralimpíadas, assista ao vídeo produzido pela Factual 900:
Autoras: Ana Clara Dias Ghiraldello, Beatriz Imagure, Bianca Queiroz, Camila Lutfi, Giovana Lins Barbosa, Giulia Howard e Mariana Torezan.
Fonte: Cásper Líbero.