Conhecida como “a mulher que redefiniu o homem”, a cientista mudou para sempre a relação do ser humano com outros primatas.
A frase “o homem evoluiu do macaco”, apesar de muito comum, é incorreta. Mesmo que nem sempre seja lembrado, os seres humanos fazem parte da ordem dos primatas, compartilhando essa categoria taxonômica com outros animais como gorilas, orangotangos e chimpanzés. Esse último, por ser o grupo a compartilhar conosco o ancestral comum mais recente conhecido, possui diversas similaridades com a espécie humana, mais do que qualquer um podia pensar até a segunda metade do século 20.
As bases da primatologia foram completamente alteradas a partir desse período por conta de uma jovem e ambiciosa mulher que, indo contra valores e expectativas da sua época, dirigiu-se às florestas da Tanzânia para estudar os chimpanzés selvagens. Os resultados disso não podem ser descritos menos que revolucionários para a ciência.
Nesta matéria do Laboratório, você irá compreender melhor quem é a primatóloga Jane Goodall e sua trajetória de vida como uma cientista que modificou a visão que temos hoje dos chimpanzés e também dos próprios seres humanos.
A garota com o sonho de ir à África
Valerie Jane Morris-Goodall nasceu no dia 3 de abril de 1934 em Londres. Desde pequena, já era fascinada por animais e pela natureza selvagem das florestas africanas. Aficionada pelas histórias de Tarzan e tendo como um dos bens mais queridos um chimpanzé de pelúcia apelidado de Jubilee, Jane passou sua infância e juventude na região de Bournemouth, sul da Inglaterra, sonhando em um dia conhecer e trabalhar no continente africano.
Como a família de Jane não podia arcar com os custos de pagar uma universidade, algo que, na época, era fundamental para realização de pesquisas científicas, a garota fez um curso de secretariado para conseguir emprego. Ao mesmo tempo, trabalhava como garçonete para complementar seu salário e juntar dinheiro para poder algum dia viajar para a África.
Aos 23 anos, Jane finalmente conseguiu comprar uma passagem de navio para o Quênia, onde visitou um amigo da família. Durante essa viagem, o interesse da jovem pela vida selvagem africana a colocou no caminho de Louis Leakey, notável arqueólogo e paleoantropólogo que tinha como áreas de estudo a origem e evolução do ser humano. A primeiro momento, tendo contratado Jane para ser sua secretária, Leakey percebeu o potencial da garota e passou a envolvê-la em seus projetos.
Descobertas nas florestas do Gombe
Louis Leakey e sua esposa pesquisavam sobre primatas na atual Tanzânia desde a década de 1930. Eles acreditavam que estudar a espécie ainda viva que é geneticamente mais próxima do ser humano forneceria novas visões sobre o comportamento dos antepassados dos humanos modernos. Por conta disso, Leakey conseguiu uma bolsa para Jane estudar os chimpanzés selvagens da região do Gombe por um período de seis meses.
Desconfiado dos métodos tradicionais de pesquisa da comunidade científica serem enviesados, o pesquisador selecionou uma jovem sem treinamento ou graduação na área para ser uma das pioneiras nos estudos de chimpanzés na natureza. Jane aceitou o desafio e em 1960 partiu para a então chamada Gombe Stream Game Reserve (atual Parque Nacional Gombe Stream), onde montou seu acampamento nas proximidades do lago Tanganica.
Na época, não era permitido que mulheres viajassem sozinhas para as florestas da Tanzânia e, por conta disso, Jane precisou escolher um acompanhante. “Minha mãe se ofereceu para vir comigo. Ela apoiou meu amor por animais. Ela nunca disse: ‘você é só uma menina, não pode fazer isso. Por que não sonha com algo que pode fazer?’. Era o que todos diziam”, afirma a primatóloga no documentário Jane: A Mãe dos Chimpanzés (2017).
Equipada de apenas ferramentas simples, como um binóculos e um caderno de anotações, a jovem deu início a um projeto pioneiro de pesquisa que duraria mais de 60 anos. Porém, o início não foi fácil. As primeiras observações não trouxeram grandes resultados: os chimpanzés sempre fugiam de Jane ou eram apenas observados de muito longe, o que dificultava o estudo dos seus hábitos. E o tempo estava se esgotando.
Só após cinco meses no Gombe, numa manhã frustrada de observações, Jane conseguiu o primeiro contato com um chimpanzé que viria a ser chamado David Greybeard, identificado por possuir pelos brancos no queixo. Foi a partir dessa interação que, aos poucos, ela foi se inserindo cada vez mais na organização social dos chimpanzés, utilizando-se de métodos não tradicionais em seu trabalho de campo para isso.
“A Jane não tinha uma visão acadêmica, mas um feeling naturalista muito forte. Ela tinha essa característica de observar a sutileza das coisas, mas não tinha uma formação, e, por isso, não tinha um viés”, diz Raiane Guidi, bióloga mestre em Psicobiologia e integrante da Sociedade Latinoamericana de Primatologia (SLAPrim).
Por meio dessa abordagem, a pesquisadora pôde observar comportamentos até então desconhecidos. Um dos primeiros foi o de chimpanzés serem onívoros. Na época, acreditava-se que primatas não ingeriam carne, mas foi graças às observações de Jane que essa crença foi desmentida.
Outra peculiaridade do trabalho de Goodall foi compreender os animais não como simples objetos de estudo, mas sim indivíduos únicos entre si. Flo, Fifi e McGregor são outros chimpanzés apelidados pela primatóloga que contribuíram para o entendimento de que esses seres são mais parecidos com o ser humano do que se pensava.
“Os animais eram vistos como meras máquinas instintivas. Então não havia essa noção de seres empáticos, que têm emoções ou personalidades. Tudo isso vem com a Jane”, continua Raiane.
“Por trás dos olhos dos chimpanzés, vi pensamentos, raciocínios e personalidades me olhando de volta.”Jane: a Mãe dos Chimpanzés (Brett Morgen, 2017)
Porém, uma das maiores descobertas ainda estava por vir. Em certo momento dos seus estudos, Jane observou o chimpanzé David Greybeard utilizar galhos de plantas para vasculhar e conseguir alimento dentro de cupinzeiros. Esse é considerado o primeiro registro de um ser não-humano construir e utilizar ferramentas.
Pelo fato dessa característica ter sido usada durante muito tempo para diferenciar o ser humano dos outros animais, a relação entre o homem e outros primatas diante disso foi completamente mudada, tornando a descoberta de Jane uma das mais importantes do século 20.
Ao comunicar sobre a extraordinária observação para Leakey, a jovem teve como resposta o seguinte telegrama: “Agora precisamos redefinir a ferramenta. Redefinir o homem. Ou aceitar os chimpanzés como seres humanos”.
A partir da relevância das descobertas, os seis meses de vivência entre os símios se tornaram quinze, mas por indicação e insistência do antropólogo, Jane fez uma pausa em sua pesquisa para obter uma formação acadêmica. Em 1962, ela foi aceita no programa de doutorado da Universidade de Cambridge para se formar em etologia, área da biologia que estuda o comportamento animal. Até hoje, Jane é uma das poucas pessoas a fazer pós-graduação em Cambridge sem ter um diploma de graduação.
Após a conclusão do doutorado, ela retornou à Tanzânia para dedicar a maior parte dos seus anos de profissão estudando o comportamento dos primatas. “Jane se envolveu e explorou as complexas estruturas sociais dos chimpanzés”, diz Larissa Ávila, médica veterinária e 2ª secretária na Sociedade Brasileira de Primatologia (SBPr).
“Testemunhou conflitos entre grupos, mostrando comportamentos territoriais e agressivos pela primeira vez. Observou uma variedade de comportamentos em vida livre, como rituais de acasalamento e formas de comunicação, nem sempre vistos em cativeiro em toda sua complexidade”, complementa.
Celebridade da National Geographic
Com essas descobertas que abalaram a comunidade científica, Jane recebeu uma bolsa da National Geographic para continuar suas pesquisas no Gombe, contanto que um fotógrafo profissional fosse enviado para documentar seu trabalho para publicações do veículo na mídia. A primatóloga nem sempre concordava com a exposição, alegando que um estranho poderia afetar as interações com os chimpanzés. Mesmo assim, Jane passou a trabalhar com Hugo van Lawick, homem com quem mais tarde acabaria se casando e tendo um filho.
As publicações do trabalho de Jane em revistas, filmes e programas de TV feitas a partir de 1963 foram um grande sucesso. A pesquisadora se tornou um rosto presente nas produções da National Geographic e o seu reconhecimento mundial colaborou para a construção de um centro de pesquisa no Gombe, como também a introdução de mais estudantes no projeto.
Entretanto, o estrelato não veio desacompanhado de recepções negativas da comunidade científica conservadora. “A maioria das críticas se baseava na ausência de objetividade científica, na abordagem de temas não canônicos e na não adoção de métodos e técnicas dominantes”, afirma Eliane Sebeika Rapchan, antropóloga e pesquisadora do Laboratório de Arqueologia, Antropologia Ambiental e Evolutiva (LAAE) da Universidade de São Paulo (USP).
Na opinião da antropóloga, boa parte do estranhamento diante da pesquisa de Jane estava associado às suas formas etnográficas bem pouco ortodoxas de seleção e descrição dos fenômenos. A preferência de nomear os chimpanzés ao invés de enumerá-los consistia em um desses pontos criticados pela falta de rigor acadêmico.
Além disso, o fato dela ser uma jovem mulher era usado para desvalidar as suas observações.“Fui a capa da Geographic. Disseram que eu fiquei famosa por causa das minhas pernas. Quero dizer, isso era tão estúpido que não me incomodou”, disse Jane no seu documentário de 2017.
Num contexto histórico em que as mulheres ainda eram muito desestimuladas a seguir carreira científica, principalmente em áreas de atuação majoritariamente masculinas, a pesquisadora conseguiu se firmar como uma das mais importantes e revolucionárias profissionais da primatologia.
Ativismo ambiental e direitos dos animais
Na medida em que sua carreira de cientista se consolidava pelos anos de estudos dos chimpanzés, Jane passou a direcionar cada vez mais seus esforços para o ativismo ambiental. O crescente processo de desaparecimento de chimpanzés da África fez com que a primatóloga adotasse uma nova abordagem.
“Ela entendeu que, se não encontrarmos formas de ajudar as pessoas a se desenvolver sem degradar o meio ambiente, não conseguiremos salvar os chimpanzés, nem outros animais ou o próprio meio ambiente”, diz Larissa.
Em 1977, a cientista fundou o Jane Goodall Institute, organização que deu continuidade ao projeto de pesquisa com os chimpanzés selvagens e ampliou os horizontes da conservação ambiental e da proteção aos animais. Quatro anos mais tarde, também criou o programa Roots and Shoots, que possui iniciativas voltadas a incentivar crianças e jovens de comunidades locais a buscarem soluções de problemas humanitários e ambientais. “Se quisermos preservar os encantadores chimpanzés como são, temos que preservar seu ecossistema e as comunidades humanas nele inseridas”, completa a veterinária.
Além das inovações na proteção dos animais, a forma de interagir com eles foi repensada. O trabalho de campo realizado por Jane também foi importante para se compreender que não é mais apropriado manter contato físico com os chimpanzés selvagens. O primeiro motivo seria a influência nos hábitos dos animais.
“A partir do momento em que você se insere demais, você deixa de ser indiferente a eles. É uma proteção para predadores e outras séries de vantagens eles terem a gente, mas isso altera o comportamento deles”, diz Raiane. A bióloga explica que, ao fazer observações interagindo com o animal, a amostra de estudo é afetada, não tendo mais uma fidelidade nos dados e atrapalhando a pesquisa.
Outra razão seria visar a própria segurança e conservação dos chimpanzés. “Atualmente, o critério adotado para a aproximação com os primatas e, consequentemente, a definição de perguntas de pesquisa e escolha das estratégias metodológicas, respeita as condições de vivência de cada população e os graus de contato”, comenta Eliane.
Para a antropóloga, evitar esse contato na primatologia também está relacionado aos riscos de habituação que podem favorecer o contato entre primatas e qualquer humano, inclusive caçadores e traficantes.
“Hoje nós sabemos disso. A Jane não sabia na época, não tinha essa concepção. Então para ela, até mesmo o fato desses animais quererem se relacionar foi uma descoberta. Mas a ciência evolui. Estamos em outro patamar hoje e sabemos que esse tipo de relação não é necessária”, ressalta Raiane.
A primatóloga, agora com 90 anos, trabalha viajando pelo mundo como uma influente defensora das pautas ambientais. Apesar de não participar ativamente em estudos no Gombe, a região atua como uma estação de pesquisa até os dias de hoje. O estudo sobre os chimpanzés iniciado por Jane permanece sendo o estudo contínuo mais longo sobre um animal em habitat natural da história.
Legado e influências da Mãe dos Chimpanzés
Desde a primeira vez que Jane Goodall partiu para a África para estudar os chimpanzés do Gombe, novos horizontes passaram a ser vislumbrados para mulheres no ramo da primatologia. Os seus estudos não apenas revelaram fatos completamente desconhecidos ou trouxeram novas formas de compreender os animais, mas também abriram oportunidades para que mais mulheres pudessem se profissionalizar na ciência.
“Ao ousar produzir uma narrativa em que os detalhes do contato com os chimpanzés são centrais, num texto em que reações físicas, comportamentais e emocionais descritas minuciosamente estão articuladas às dúvidas, medos, angústias, emoções e sentimentos da pesquisadora, Goodall expandiu o horizonte do que chamamos de alteridade”, declara Eliane.
Na primatologia brasileira, o cenário é composto por mais mulheres do que homens. Larissa diz que isso é muito positivo, pois mostra o quanto a área é atraente para jovens cientistas. No entanto, em posições de poder, a dominação masculina ainda é visível, e há um longo caminho a ser percorrido para uma área mais igualitária.
“A história de Jane e a forma com que venceu os obstáculos de sua trajetória me levam a entender que embora a carreira de conservacionista, cientista e primatóloga seja desafiadora, ela também é brilhante e recompensadora, se você não desistir nunca”, diz Larissa.
Tanto ela quanto Raiane fazem parte do Mulheres pela Primatologia, coletivo que busca dar espaço e apoio a mulheres cientistas, principalmente na primatologia, como também produzir e divulgar ciência nesse ramo de forma mais responsável. O movimento é a única iniciativa brasileira até então filiada ao programa Roots and Shoots, um legado deixado por Jane que busca maneiras alternativas de se pensar e estudar ciência.
“Somos formadas para sermos alienadas a tudo o que a gente ama. A não ter uma escrita apaixonada, nem ser sentimental com aquilo que fazemos. E ela foi sentimental desde o primeiro momento que entrou na mata, viu os chimpanzés e ficou loucamente seguindo-os até que eles aceitassem a aproximação”, fala Raiane.“Isso é bonito de se ver na escrita dela, por que isso se manteve. Mesmo depois de se submeter à ciência, ela conseguiu manter sua paixão viva ao defender seu modo de pensar”.
Autora: Fernanda Zibordi.
Fonte: Jornalismo Júnior/USP.