Mergulhe nas origens dos medos e nos principais arquétipos de mulheres nos filmes de terror.
Uma anatomia do terror
O fenômeno do terror é explorado em A Filosofia do Horror ou Paradoxos do Coração, de Noël Carroll. Conforme o filósofo, o gênero é definido pelas emoções que causa no espectador ou leitor, sobretudo o medo e a repulsa. A figura central do horror é o monstro, que reúne em si características e ações assustadoras e repulsivas. No entanto, isso leva a um questionamento: como um gênero que necessariamente causa sensações desagradáveis é tão popular? Essa pergunta é denominada por Carroll como o “paradoxo do horror”, que pode ser explorado por diversos ângulos.
Sob o ponto de vista da psicanálise, o terror explora desejos reprimidos e medos primitivos do espectador. A repulsa pelos monstros pode ter como origem um desejo reprimido de realizar ou experienciar as suas atitudes monstruosas. Por outro lado, a atratividade do horror pode também ter como raiz uma fobia muito mais profunda, ligada às ameaças primitivas e da infância. Há, no monstro, na forma e na narrativa do horror, um espelho do próprio desenvolvimento psíquico do espectador.
A psicologia analítica, por sua vez, vê como grande atrativo do terror a expressão da sombra pessoal e da sombra coletiva. “Todo mundo tem tudo dentro de si. O bom e o ruim, o moral e o amoral. O que vai variar é aquilo que se escolhe a nível consciente, portanto, como você vai se identificar. Isso é o que o ego enxerga como parte de si. Há, também, as características que ele rejeita”, conta Paula Guimarães, professora de psicologia analítica na PUC SP e analista de promotoria no Ministério Público de São Paulo. Tais características suprimidas são a sombra, que pode ser referente à psique pessoal ou ao inconsciente coletivo. Guimarães completa: “De alguma maneira, a gente consegue projetar isso no filme e, por isso, acaba virando um símbolo”.
O Abençoado Guillaume de Toulouse Atormentado por Demônios, (1957, Ambroise Fredeau). [Imagem: Guérin Nicolas/Wikimedia Commons].
Outro ângulo que pode ser explorado quanto ao paradoxo do horror é o da antropologia visual. “O filme, como mito, fala sobre estruturas da sociedade, de questões que não podem ser resolvidas dentro dela. A partir dessa repetição cíclica [de narrativas], uma questão tenta ser resolvida. A atratividade se dá pelo fato de ser uma questão não resolvida”, afirma Isabel Wittmann, doutoranda em antropologia social na Universidade de São Paulo e pesquisadora sobre gênero em ficção científica no Grupo de Antropologia Visual (GRAVI) da USP. Há, no horror, a reflexão de grandes aflições e medos que uma sociedade passa, aparentemente impossíveis de resolver. Com isso, explorá-las esteticamente permite uma tentativa em resolvê-las.
Parte de O Juízo Final (1431, Fra Angelico) [Imagem: Domínio público/Wikimedia Commons].
Além do medo e da repulsa, outra característica determinante do terror enquanto gênero é a presença de um monstro. Conforme Carroll, ele é um ser ameaçador e repugnante em nível físico e moral. Esse efeito é gerado tanto por ações violentas desse ser, quanto pelo caráter categoricamente impuro dele. As noções de pureza e impureza foram amplamente estudadas pela antropóloga inglesa Mary Douglas. De acordo com ela, são puros os entes e ações que se encaixam em referenciais normativos de uma sociedade.
Já aqueles que se encontram marginalizados da norma, são impuros, poluídos e, consequentemente, perigosos. No que tange a monstros, a impureza pode ser criada por junções ou fissões anti-naturais, por exemplo, pessoas possuídas e seres metade homem e metade animal. Ela também pode ser gerada pela hipérbole ou associação de entes naturais que já são considerados indesejáveis, como aranhas gigantes ou uma pessoa que vive em uma casa cheia de carne putrefata.
Mulheres monstruosas
O Pesadelo (1781, Johann Heinrich Füssli). [Imagem: Domínio público/ Wikimedia Commons].
Se monstros podem ser seres anti-naturais, ameaçadores, hiperbólicos e aversos à normativa, como são os principais arquétipos de mulheres-monstro? Conforme o artigo Um Regimento de Mulheres Monstruosas: Arquétipos do Terror Feminino e Teoria da História de Vida, de Robert King, tradicionalmente, as mulheres passam por quatro grandes fases sexuais no ciclo de vida: puberdade, seleção sexual, maternidade e menopausa. Em cada uma delas, há perigos e desafios específicos à integridade física tanto da mulher, quanto das pessoas que ela ama. A partir dessa tese, o artigo define alguns arquétipos importantes de monstros femininos no terror.
Na puberdade, homens adultos predatórios representam o maior perigo a uma garota, enquanto a menstruação é um desafio psicológico e, muitas vezes, social. Há uma discordância entre a formação da mulher e a criança que habita nela, uma fase comumente associada a conflitos com a família e dificuldades na socialização. As “garotinhas assustadoras” são o principal arquétipo de monstro ligado à puberdade, com temas recorrentes como a possessão demoníaca, a fuga de homens predatórios e o sangue menstrual.
A seleção sexual também tem como grande perigo homens predatórios, porém, o maior desafio desse período é, justamente, encontrar um parceiro ou parceira sexual. É um fenômeno confuso e arriscado. Afinal, em um mesmo contexto, é possível encontrar tanto um predador, que pode praticar um ato de violência sexual, quanto uma pessoa desejável. Associado a essa fase, o principal arquétipo monstruoso feminino é a “mulher predatória”. Sua agressividade pode se manifestar de forma a buscar eliminar a competição ou a castrar seus parceiros. Também é comum esse tipo de monstro agir com base em vingança, especialmente em reação a um estupro.
Se tornar uma mãe necessariamente envolve uma outra pessoa, seu filho. Essa presença abre novas possibilidades de riscos e desafios. Uma criança pode ser indesejada e negligenciada pela mãe, o que por si só gera traumas em ambas as partes. Pode ser criada uma relação de zelo extremo, que pode levar à formação de uma mãe super protetora e um filho socialmente inepto. O próprio ambiente externo à relação mãe e filho cria riscos: uma criança pode facilmente ser vítima de um acidente ou um ato de violência. Como uma das fases mais desafiadoras do ciclo de vida, a maternidade é explorada no terror por meio de dois grandes arquétipos, as “mães possuídas” e as “mães vingativas”. Esse tipo de monstro pode representar um risco ao filho, como no infanticídio, ou às pessoas vistas como ameaça ao herdeiro. É comum o tema de psicose nesses dois arquétipos, o que eleva a tragédia de várias dessas personagens.
A Voz Silenciosa (1898, Gerald Moira) [Imagem: 雨宮鏡心 / Wikimedia Commons].
A menopausa representa, para muitas mulheres, o fim de sua utilidade nas estruturas patriarcais. Há um desespero em se ver deixada de lado por parceiros sexuais e pelos filhos, já adultos. Nessa fase, muitas mulheres se tornam amargas ou superprotetoras quanto aos netos e podem desempenhar um papel de matriarca de uma estrutura familiar complexa. É uma posição relativamente assexuada na sociedade patriarcal, representada no horror pela “senhora pós-menopausal manipuladora”. Esse tipo de monstro tem como temas recorrentes a infertilidade, a inveja, a interferência na reprodução de mulheres mais jovens e vingança contra pessoas que ameacem sua família. Muitas personagens desse arquétipo têm poderes mágicos, que podem ser usados para amaldiçoar suas vítimas.
A origem desses arquétipos femininos pode ser entendida também pela psicologia analítica. “É aí que surgem os monstros, porque tudo que você reprime muito – a sombra -, se torna um caráter negativo e carregado. É uma representação: se reprime tanto o feminino [na sociedade], que uma hora ele aparece no seu caráter negativo e inferior. Aí aparece como um monstro”, explica Guimarães. É necessário notar que, de acordo com a professora, “a sombra não é, em si, negativa. Mesmo que haja nela características convencionalmente ruins, elas são apenas inferiores, se não são bem desenvolvidas. A sombra é negativa enquanto nós não olharmos para ela e reconhecê-la como parte nossa”.
Os arquétipos de monstros femininos são uma representação simbólica dos aspectos associados à feminilidade mais reprimidos em diferentes partes da vida. Por exemplo, a maternidade gera uma figura santificada, de forma que a fuga dessa expectativa ao “falhar” como mãe é algo altamente reprimido, que se apresenta no terror por meio dos arquétipos de “mãe possuída” e “mãe vingativa”. Já na fase de busca por parceiros sexuais, é esperada a submissão da mulher e uma forma mais puritana de se portar, há a repressão do desejo sexual feminino. A partir dessa sombra coletiva, se forma o arquétipo das “predadoras sexuais”.
A Execução de Lady Jane Grey (1833, Paul Delaroche) [Imagem: Domínio público/Wikimedia Commons].
Apesar da aparente contradição entre a visão da psicologia analítica e a de Robert King, elas podem se somar para ampliar o entendimento de mulheres monstruosas, uma vez que os desafios que as mulheres passam em diferentes partes de seu ciclo sexual não são puramente naturais. A opressão e a repressão, ambos fenômenos sociais e psicológicos, são fonte de boa parte dos riscos, desafios e construção de sombra de uma mulher e de uma sociedade. A repressão patriarcal do feminino é internalizada por boa parte das mulheres, de forma que elas mesmas temem se tornar indesejáveis ou enfraquecidas. A opressão da ginecologia é, ao mesmo tempo, fonte de um motivo recorrente em filmes de terror e de anseios femininos.
O horror da beleza
Escultura de porcelana da artista Jessica Harrison [Imagem: Reprodução/Facebook/Jessica Harrison].
A visão clássica de beleza é marcada pela noção de harmonia e pureza. Para boa parte dos filósofos clássicos, a beleza também reflete a moralidade. Quanto mais belo, mais moral. No entanto, esse próprio ideal da beleza inclui aspectos repugnantes e assustadores. Desde a visceralidade da cirurgia plástica até o espiral de loucura que pode ocorrer por uma obsessão com a aparência, uma pessoa bela, muitas vezes, é capaz de ter nessa própria atratividade uma fonte de sofrimento, que tem a possibilidade de ser transfigurada em horror.
“Se a beleza for enxergada como pureza extrema, talvez, ela possa ser considerada assustadora, pois não pode ser tocada”, conta Marianna Knothe Sanfelicio, mestranda em antropologia social pela USP e parte do GRAVI. Em figuras esteticamente perfeitas, há um caráter intocável, que pode ser visto como menos humano e, portanto, assustador.
Psiquicamente, também há riscos em uma pessoa ser muito bela. “Entra um arquétipo que é o oposto da sombra, o arquétipo da persona, que é como uma pessoa se apresenta à sociedade. A demanda social tem influência nessa construção. Quando o ego se identifica com a persona, você não enxerga que aquilo é apenas um papel social”, afirma Paula Guimarães.
“A pessoa deixa de ser qualquer outra coisa que não esse papel. Ela precisa estar sempre arrumada, em evidência e admirada. Isso é patológico, porque você não olha as outras partes de si. Enrijece o ego ali, ele fica cristalizado naquela persona, o que obstrui o desenvolvimento psíquico. Essa ânsia por se manter nessa pessoa, que reprime todo o resto, cria um quadro patológico”. Esse fenômeno pode ser visto em muitos filmes de terror psicológico, nos quais a protagonista entra em um espiral de loucura ao não se enxergar mais como humana, mas sim como uma figura. Até mesmo na literatura gótica há essa temática, com destaque para O Retrato de Dorian Gray (1890), de Oscar Wilde.
Ghismunda (1650-1659, Bernardino Mei) [Imagem: Domínio público/Wikimedia Commons].
As próprias pressões estéticas impostas sobre mulheres podem ser fonte de horror. A cirurgia plástica e alguns distúrbios alimentares são uma consequência extrema dessas pressões. “Alguns filmes retratam as ansiedades que a gente tem em relação à estética. Pressão estética, padrões de beleza e a forma como as mulheres são cobradas são exigências diferentes em relação aos homens”, declara Wittmann. Essas aflições são conflitos na sociedade não resolvidos, que podem se tornar fonte de horror e narrativas repetidas.
Adicionalmente, na lógica patriarcal, uma mulher muito bonita pode ser interpretada como algo “bom demais para ser verdade”. Ao tomar-se uma mulher, não puritana, dotada de beleza extrema, muitos homens pensam que ela pode acabar com a vida deles. É uma tentação pecaminosa. Com isso em mente, há uma abundância de narrativas onde uma mulher bonita seduz alguém e se transforma em uma criatura horrível ou tem ações violentas. É um paradoxo cultural interessante, afinal, a beleza é cobrada de todas as mulheres, porém, beleza demais é tentação, que pode levar ao pecado.
Jael e Sísera (1620, Artemisia Gentileschi). [Imagem: Domínio público/Wikimedia Commons]
A partir dessas considerações, é possível pensar na pergunta “quem tem medo de garotas bonitas?” com mais nuance. A seguir, serão investigados alguns filmes importantes nos quais o monstro é uma garota bonita.
Carrie, A Estranha (Carrie, 1976)
Carrie e Tommy enquanto ela realiza um massacre no baile de formatura [Imagem: Divulgação/Fox Film].
No clássico de 1976, o horror é construído em volta dos tabus de ser mulher e da crueldade feminina. A primeira cena do filme retrata a reação da garota adolescente Carrie (Sissy Spacek) com horror a sua primeira menstruação. Ela esfrega o sangue em suas colegas e chora nos braços da professora, pois achou que estava morrendo. Em resposta, as garotas começam a zombar dela e jogar absorventes na garota nua encolhida no chão. Ao chegar em casa, ela ouve de sua mãe, maníaca religiosa, que é “impura” e que apenas mulheres pecadoras menstruam. Carrie é aterrorizada pelas garotas perfeitas da escola e pela sua mãe odiosa em casa, seu corpo é um ente estranho a ela mesma.
Conforme a narrativa progride, a adolescente desenvolve poderes telecinéticos, juntamente com um senso de rebeldia contra a sua mãe. Há uma parte do filme quando Carrie parece estar desabrochando, ela cria um laço com Tommy (William Katt) e é tratada com carinho por sua professora, senhora Snell (Betty Buckley). Apesar desses momentos tenros, o filme cria uma atmosfera de tragédia, que se concretiza em seu baile de formatura, quando uma garota joga um balde de sangue de porco em Carrie durante sua coroação como rainha do baile. A cena célebre é o clímax do filme. Com seus poderes de telecinese, Carrie tranca as portas do ginásio e começa um incêndio. Suas feições não mudam durante a sequência, a garota está concentrada em matar todos os que ela acredita que a enganaram. A rejeição que ela sente é gigante, todos os medos sociais de uma garota adolescente se tornam realidade nessa sequência. Nesse momento, a menina atormentada se torna um monstro. Ao chegar em casa após o massacre, Carrie sofre uma tentativa de assassinato por sua mãe, que a considera um demônio pecaminoso. Em autodefesa, a jovem faz com que facas crucifiquem sua mãe, matando-a.
O horror do filme é multidirecional. Apesar de Carrie ser o principal monstro, afinal, ela mata dezenas de pessoas e tem poderes sobrenaturais, a sociedade ao seu redor e sua mãe fizeram da vida dela um inferno. É difícil desgostar da garota após ver as violências sofridas por ela, que não são apenas uma backstory de criação de monstro, mas também fonte de horror no filme.
A Bruxa (The Witch, 2015)
Em A Bruxa, uma família maníaca religiosa é aterrorizada por uma bruxa e uma entidade satânica, que lentamente matam seus membros de formas horríveis. É chocante a cena onde o bebê da família é macerado e passado no corpo da bruxa da floresta como parte de um feitiço. No entanto, a grande tensão se constrói nas relações familiares, sobretudo entre a filha mais velha, Thomassin (Anya Taylor Joy), e sua mãe, Katherine. De forma parecida com Carrie, A Bruxa explora o ódio que uma mãe pode ter de sua filha, o que culmina, também, em um matricídio de autodefesa.
O horror que pode permear a relação de mãe e filha é um tema rico para narrativas desse tipo, além do pano de fundo da atividade demoníaca. Thomassin é expulsa lentamente de seu núcleo familiar, em parte por ser considerada a principal suspeita de ser a bruxa, mas principalmente por sua mãe considerá-la promíscua e uma tentação: tudo o que a garota faz é considerado um ato de sedução dos homens da família. Ela se encaixa na visão social de mulheres bonitas como Lilith, figuras pecaminosas e promíscuas por natureza. Ao final da narrativa, após perder toda sua família, Thomassin decide que não há mais nada a perder. Ao invés de voltar para sua vila natal e se casar, seguindo a norma, ela escolhe fazer um pacto com o diabo e se tornar uma bruxa igual a que atormentou sua família.
Thomassin é um monstro interessante, pois, assim como Carrie, durante boa parte do filme é apenas vítima do fanatismo religioso e de ameaças externas. O espectador médio não a considera um monstro, pois o único assassinato que comete é em autodefesa. Porém, a lógica interna da narrativa a constrói como mulher monstruosa. Sua própria existência é pecaminosa, ela é a única poupada pelo demônio, pois era perfeita para se tornar uma nova bruxa. No final de tudo, é possível inferir que Thomassin fará com outras famílias o que ocorreu com a dela. Dentro da mentalidade de seu contexto, ela se torna o pior monstro possível, pois escolheu o diabo.
Feliz Aniversário para Mim (Happy Birthday To Me, 1981)
Lisa e suas vítimas em sua festa de aniversário macabra [Imagem: Divulgação/Columbia Pictures Corporation].
Feliz Aniversário para Mim é um terror do gênero giallo que acompanha um grupo de amigos adolescentes chamado “top 10”. Eles são os alunos mais bem sucedidos de uma escola privada, mas se tornam alvo de um serial killer. Apesar da estrutura narrativa e temáticas aderentes ao gênero giallo, o filme pode também ser categorizado como slasher. Afinal, a matança em série, feita de formas notavelmente criativas, é parte integral do filme.
A protagonista é a jovem Lisa, parte do “top 10”: uma garota bonita, inteligente e bem relacionada. Ao longo da narrativa, é revelado que ela sofre de graves distúrbios psíquicos, relacionados a um procedimento médico. A adolescente sofre de surtos de amnésia, nos quais uma outra personalidade assume seu corpo. Conforme o montante de corpos aumenta, é lentamente revelado que Lisa, durante seus episódios de amnésia, é a grande assassina. Apesar da matança em si já ser fonte de horror, a flutuação do estado mental da protagonista e a incerteza enfrentada por ela são igualmente assustadoras.
Há uma ênfase significativa na psique de Lisa em Feliz Aniversário para Mim. Apesar de sua personalidade usual, tranquila e gentil, a sombra pessoal da garota se expõe durante os episódios de amnésia e sequências de lembranças traumáticas. A partir dessas, é apresentado o passado trágico da protagonista. Filha de uma mulher rechaçada pela cidade e de um pai ausente, Lisa era excluída socialmente, ao ponto que a única pessoa que apareceu na sua festa de aniversário foi sua mãe. Revoltada, a mulher dirigiu com a filha até uma casa onde estavam os “top 10”, que sua filha havia convidado à festa, e brigou com um dos empregados. Na volta para a casa, o carro onde estavam mãe e filha caiu de uma ponte, o que levou a mãe à morte e a filha ao estado grave de saúde. Esse acidente foi o responsável pelos problemas neurológicos de Lisa, além de representar o dia mais traumático de sua vida.
Essa memória é reproduzida no fim do filme, quanto Lisa recria sua festa de aniversário com os corpos dos “top 10” e de sua mãe. A cena macabra fica mais mortal ainda quando ela assassina seu pai, ausente na época em que a mãe dela estava viva. É, ao mesmo tempo, uma vingança contra a tragédia pessoal de Lisa e uma repetição cíclica de seus traumas. Apesar de um plot twist incoerente nos últimos cinco minutos do filme, que inocentaria Lisa, ela ainda é o grande monstro do filme, mesmo que esse não seja seu desejo consciente. Descobrir a si mesma como um monstro contra a própria vontade é horrorizante.
Helter Skelter (2012)
Lilico em uma overdose de suas “pílulas de beleza”. [Imagem: Divulgação/Asmik Ace Entertainment]
Visual e narrativamente, Helter Skelter tem, na beleza, a própria fonte de terror. O filme, dirigido pela fotógrafa Mika Ninagawa, acompanha Lilico (Erika Sawajiri), uma top model do Japão, ídola de garotas adolescentes e desejada por todos os homens. O horror do filme é construído, sobretudo, por meio do body horror e do espiral de loucura da protagonista. O primeiro, é feito por meio de um tema central do filme: a cirurgia plástica. Realizados por uma clínica clandestina, os procedimentos geram, nas garotas que passam por eles, dependência de pílulas, hematomas gigantes e morte, com Lilico como uma das pacientes. Durante o filme, é possível ver o corpo da modelo cada vez mais manchado e frágil.
Enquanto sua saúde se torna mais debilitada, o posto de ídola de Lilico é lentamente tomado por uma new face, Kosue (Kiko Mizuhara). A protagonista passou pelo processo patológico de identificação do ego com a persona, ou seja, Lilico é apenas capaz de existir e viver se for amada e admirada por todos. Sua aparência é um fetiche para ela mesma, seu status simbólico é como ela mesma se vê. Lilico não sabe ser uma pessoa sem ser deslumbrante, sua própria personalidade é extremamente deficitária. A modelo bate em seus empregados, cospe em suas caras, dá drogas para eles, manda desfigurar a noiva de um homem em quem ela tem interesse e cria uma gangue pessoal. Seu comportamento apenas piora quando ela se sente fragilizada. Para o espectador, é difícil decidir entre a pena ou o ódio por Lilico, pois, apesar de seu passado complicado e psique profundamente comprometida que a faz sofrer, ela ainda tem ações reprováveis e malevolentes. Ela é um monstro complexo, que, ao final da narrativa, pode ser considerada redimida ou insana.
O filme é visualmente deslumbrante, o que gera uma desconexão entre sua beleza estética e horror narrativo, que remete ao próprio caráter sombrio da beleza. Na cena clímax, onde Lilico cega seu próprio olho com uma faca durante uma coletiva de imprensa, Ninagawa utiliza recursos estilísticos para expressar o desespero da personagem e as deformidades geradas por procedimentos estéticos feitos nela e em outras modelos. O filme é construído por ambiguidades: beleza e horror, fragilidade e crueldade.
Perfect Blue (1997)
Mima durante o ápice de seu espiral na loucura. [Imagem: Divulgação/Mad House Ltd]
Perfect Blue gera o medo a partir da incerteza. A própria forma que o filme se apresenta estética e narrativamente simula um episódio de psicose, não há como distinguir exatamente a realidade de sonhos ou alucinações. Ao espelhar a psique da protagonista, Mima, a obra é permeada por um conflito entre personas, buscando dominar uma mesma pessoa. A versão idol de Mima, seu fã obcecado e violento, sua empresária Rumi e os homens para quem ela trabalha são todos parte do espiral de loucura em que ela entra.
De forma semelhante com Lilico de Helter Skelter, Mima tem sua persona cristalizada como seu ego. Ela apenas consegue se entender a partir do tipo de trabalho que realiza, o que faz sua transição de artista pop inocente para atriz madura ser uma cisão completa na psique da garota. Afinal, se apenas a imagem pública de uma pessoa é relevante para a sua personalidade, uma mudança de imagem gera um descompasso radical entre visões de si mesma. Isso é agravado pela forma com que os holofotes tratam Mima: ao redor dela, há diversos pervertidos. Desde a obsessão que Rumi nutre pela imagem da garota, que passa por uma sessão de fotos sensuais exploratórias e culmina em um estupro por seu fã obcecado, não é apenas Mima que se vê como objeto.
O filme é outro caso de terror multidirecional, mas também sua própria surrealidade faz com que qualquer um presente possa ser visto como monstro. O mais óbvio é o deformado e violento fã, que além de assassinatos e um estupro, também vigia Mima e tem um site onde finge ser ela. Outro possível monstro é Rumi, que, no clímax e resolução do filme, aparenta acreditar que ela própria é Mima, esfaqueia a garota e luta com ela nas ruas. No entanto, o descolamento claro da protagonista da realidade faz com que ela mesma seja sua maior inimiga. A versão idol de Mima a atormenta por boa parte do filme, sendo implicado, por vezes, que ela mesma cometeu os crimes atribuídos ao fã. Na cena de luta do clímax, apesar de se transfigurar em Rumi, a principal pessoa tentando assassinar a Mima atriz é a Mima cantora. Em uma parte do filme, é criada a possibilidade de que a própria fama dela foi gerada por alucinações concebidas por traumas.
A dúvida de quem, de fato, é Mima, não apenas é o cerne do conflito psicológico de Perfect Blue, mas também pode definir o monstro do filme. Por isso, ela é um monstro hipotético para a lógica da narrativa, mas é a fonte das piores aflições passadas pela protagonista.
Audition (Ôdishon, 1999)
Asami enquanto tortura Aoyama com uma corda de piano [Imagem: Divulgação/Omega Project].
Audition começa como um drama romântico, onde o viúvo Aoyama (Ryo Ishibashi) decide usar seu trabalho como produtor de cinema para encontrar uma nova esposa. Ele realiza audições com diferentes atrizes para um papel coadjuvante em um filme, como pretexto para selecionar uma mulher. Antes de começar, ele recebe fichas com os currículos e fotos das garotas e tem a sua atenção cativada imediatamente pela belíssima Asami (Eihi Shiina). Em seu texto expositivo, ela diz ter sido uma bailarina profissional, mas que um acidente a obrigou a deixar de fazer o que mais amava. A vulnerabilidade e beleza de Asami continuam a encantar Aoyama durante a audição cara a cara que ele tem com ela.
O terror do filme é introduzido em doses homeopáticas, porém, a primeira cena de caráter macabro é marcante. Asami está de cócoras no chão de um cômodo vazio com apenas um grande saco de tecido e um telefone. Quando ele toca, com uma ligação de Aoyama, o saco se move, sendo possível perceber que há uma pessoa presa dentro dele. Depois dessa cena, o filme volta a apresentar o casal sob uma lente romântica normal. Asami é extremamente doce e delicada, seus trejeitos são inocentes, o que faz o plot twist do filme ser surpreendente.
A monstruosidade de Asami se dá por suas ações e pelo seu disfarce. Antes de chegar na famosa cena gráfica de tortura com Aoyama, há uma longa sequência surrealista, onde é possível ver suas outras vítimas. Uma delas é o homem que vive dentro do saco de tecido visto previamente. Asami amputou três dedos, ambos os pés e uma orelha dele, além de alimentá-lo com o vômito dela. Outra vítima é seu tutor de seu antigo estúdio de ballet, que a torturou quando criança. A mulher o decapita com uma das cordas do piano que ele tocava durante as aulas. Asami também mata o cachorro de Aoyama logo antes de começar a torturá-lo. Uma das partes mais assustadoras da cena de morte do protagonista é o jeito que Asami fala, com a voz fina: “Fundo, fundo, fundo”, enquanto enfia longas agulhas no abdômen e rosto do homem. Ao sorrir e acenar com a cabeça, ela amputa o pé de Aoyama com uma corda de piano.
Apesar de se encaixar no arquétipo de “predadora sexual”, Asami seduz por meio da doçura, não por meio de demonstrações de sua sexualidade. Ver uma mulher que aparenta ser puritana e submissa se tornar uma torturadora feroz é uma subversão do arquétipo predatório.
Perspectivas: como desafiar normas estabelecidas
É importante notar que a maior parte das personagens femininas monstruosas não são monstros inatos, mas sim foram vítimas de violências hediondas ou foram possuídas por uma entidade. De certa forma, há sempre um caráter reativo ou de incapacidade de ação nesses arquétipos, que reflete a forma como muitas sociedades patriarcais enxergam mulheres. Uma forma possível de se romper com essa reprodução de inatividade e incapacidade seriam monstros femininos com pleno controle de sua monstruosidade, que aceitam suas próprias ações imorais como tal, sem lógica interna. Desde cedo, mulheres são ensinadas a se explicar por tudo o que fazem, algo que é espelhado na presença de uma moral, em relação a monstros masculinos, nas vilãs.
Herodias com a Cabeça de João Batista (Elisabetta Sirani) [Imagem: Domínio público/Wikimedia Commons].
Outra maneira em que a feminilidade pode ser explorada no terror é a partir da mudança da forma que se tratam mulheres transgênero. Durante o texto inteiro, foram mencionadas características ginecológicas e personagens femininas cisgênero. O motivo desse recorte específico não é a negligência pela feminilidade transgênero, mas a própria forma desconexa com o status de mulher que a maior parte do cinema de terror representa mulheres trans. Isso é um fenômeno transfóbico, fato agravado pela forma com que o próprio ato de não aderir ao gênero e sexo associadoa à genitália com que uma pessoa nasceu é visto como uma anormalidade monstruosa por si só. Personagens como Norman Bates, de Psicose (Psycho, 1960), e Bufallo Bill, de O Silêncio dos Inocentes (The Silence of the Lambs, 1991), têm como grande momento de revelação como monstro o fato de se identificarem, de certa forma, como mulheres, ao invés dos atos violentos que elas cometeram. Quebrar com esse arquétipo e incluir a transgeneridade nas narrativas de mulheres monstruosas, ao invés de uma categoria própria de monstro intersticial, é outra perspectiva interessante que pode ser explorada.
Timoclea Mata o Capitão Trácio (1659, Elisabetta Sirani) [Imagem: Domínio público/Wikimedia Commons].
“O absurdo ajuda a construir uma visão mais familiar”, afirma Sanfelicio. Essa ideia também apresenta um possível horizonte para o gênero do terror. Abraçar narrativas mais absurdas, personagens mais hiperbólicas e uma estética mais saturada são ações que podem subverter o padrão do horror em reproduzir partes anormalizadas da sociedade e da natureza. Ainda é possível criar uma obra assustadora sem necessariamente imprimir um julgamento sobre os referenciais da vida real usados como monstros.
Capa: A Cabeça de Medusa (1617-1618, Peter Paul Rubens) [Imagem: Reprodução/ Wikimedia Commons].
Autora: Paloma Lazzaro.
Fonte: Jornalismo Júnior/USP.