Equilibrando-se na linha tênue entre entretenimento e ética, a espetacularização da violência em programas policiais distorce a visão da sociedade brasileira sobre o crime e a justiça, perdurando feridas históricas no país.
Após 16 anos, a emissora de televisão Rede Globo decide trazer novamente às telas o programa Linha Direta, narrando em seu primeiro episódio, o caso Eloá. Durante a quase uma hora de programa, somos expostos a um desfile de brutalidades que, ao mesclar o crime com o entretenimento, levanta uma série de questionamentos sobre a ética nos meios de comunicação. Longe de ser um caso isolado, a Rede Globo apenas acompanha o que têm se visto aos muitos na televisão brasileira há décadas: os programas policiais. Compostos por grandes nomes como “Cidade Alerta”, “Brasil Urgente” e o antigo “Cadeia sem Censura”, esse tipo de produção, como aponta a professora do departamento de serviço social da PUC Rio, Nilza Rogéria Nunes, “é marcada pelo descompromisso com a verdade, tratando das questões penais e criminais do país de maneira irresponsável”. Longas horas de cadáveres, incriminações sem precedentes, linchamentos públicos e violência policial são expostas todos os dias por programas do gênero, enquanto parte da população, diante desta grande ode à barbárie, perde a chance de discutir, com a seriedade devida, o crime no Brasil.
Engana-se, entretanto, quem acredita que tal fenômeno se deve somente a uma simples demanda de mercado. Apesar do público desses programas ser extremamente vasto e gerar considerável renda para a emissora, é importante compreender que a sua existência é reflexo de um panorama de desigualdades muito maior.
“Nós saímos de um modelo de escravidão, com o avanço do capitalismo, do liberalismo e do neoliberalismo. Então, eu penso que essa herança da dominação, do colonialismo branco, do patriarcado, das relações precarizadas de trabalho, elas são fundamentais hoje no que a gente vê refletir na desigualdade social brasileira.”, acrescenta a professora Nilza.
Assim, com raízes históricas no racismo, na estrutura de classes e na cultura de armamentismo e militarização, os programas de cunho policialesco refletem a fragilidade da democracia brasileira e a ausência da ação prática dos direitos humanos no país, demonstrando que para além do puro entretenimento, esses cumprem papel essencial na manutenção da histórica e devastadora dinâmica entre oprimido e opressor.
De onde vieram?
Falar da origem exata dos programas policiais em território nacional é uma tarefa complicada, uma vez que o crime e o entretenimento sempre andaram muito próximos com perpassar da história, não havendo um momento exato que define quando isso tudo começou. Entretanto, podemos estabelecer um marco que definiu a roupagem de tal fenômeno como o conhecemos hoje: os anos de ditadura militar e, mais especificamente, o período de redemocratização do Brasil, na década de 80.
Sob o controle dos militares, a pauta da criminalidade e da vigilância ganhou muita força não só no jogo político brasileiro, mas também entre a população. Assim, os grandes veículos de informação, alinhados aos ideais do governo e buscando aumentar seu público consumidor, passaram a produzir cada vez mais conteúdos voltados ao tema, dando origem a icônicos programas do chamado “mundo cão”, durante as décadas de 60 e 70. Um exemplo desses é o “Homem do Sapato Branco”, que inspirado nos quadros de rádio sobre a criminalidade, passou a ser exibido na televisão pela Rede Globo, em 1966, e logo foi interrompido por problemas com os militares. Ali, o apresentador Jacinto Figueira Júnior, abandona o simples debate em relação ao assunto e transforma as notícias sobre o macabro em verdadeiras narrativas, quase cinematográficas. Crimes reais eram contados como histórias de terror, com direito a trilhas sonoras de suspense e uma fotografia para lá de dramática.
Todavia, apesar de haver um discurso irresponsável nestas produções, que promovia o aspecto mítico do terror associado a histórias reais, ele ainda não era como hoje o conhecemos. A grande problemática dos programas do gênero na época era bem mais marcada pela insensibilidade ao tratar dos crimes, e não pela incitação clara do ódio ao criminoso e negação aos direitos fundamentais, que costumamos ver nos programas policiais da atualidade. Diferente do que muitos imaginam, na verdade, debates sobre o papel dos direitos humanos para presos políticos aconteciam no Brasil, durante o início da década de 60 – ainda que na prática, a repressão fosse a grande marca política da época. Nesse sentido, o pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, Gustavo Higa, afirma:
“Muitos políticos, intelectuais, parte da igreja e clero, iam discutir quais os limites e potencialidades dos Direitos Humanos (…) Olha que curioso. Anteriormente, na ditadura, bem no seu início, não era um problema falar de direitos humanos. Inclusive os Generais presidentes em algum momento, como podemos acompanhar em arquivos e documentos dos seus pronunciamentos, falaram que respeitavam os direitos humanos, pois violá-los na época era uma coisa vista como de comunistas, com toda a questão da Guerra Fria”.
Assim, a premissa da extrema direita brasileira na mídia começa a transitar para o formato antagônico aos direitos da pessoa humana somente algum tempo depois do início da ditadura, com a instauração dos atos institucionais – fator que transbordou de forma objetiva a violência dos quartéis, para as ruas. Dessa forma, os discursos de ódio aos chamados vadios e marginais crescem e ganham espaço no debate público, chegando a seu auge na década de 80, durante o período de redemocratização.
Com as instabilidades econômicas e políticas do período marcando a imprensa, surge em grande parcela da sociedade certa incerteza do que seria, afinal, o Brasil dali para frente. Esse panorama de inconstâncias quanto ao que estruturaria o sistema democrático no país possibilitou, dentre outras coisas, uma retomada ao debate dos direitos humanos, mas dessa vez, não só para presos políticos, como nas décadas de 60 e 70. Agora, a aplicação desses era debatida também para os chamados “presos comuns”.
“Os direitos humanos eram vistos, por exemplo, como parte do setor político, como um problema. Começou a haver uma disputa em torno dos Direitos Humanos nesse processo de transição. Essas políticas democratizantes e de direitos humanos passam por um problema moral, porque há nelas uma inversão de valores.”, afirma Higa
Nesse contexto, as oposições ao tema começaram a ficar cada vez mais sistematizadas. Não se falava mais somente sobre os direitos do homem, mas sobre para quem esses deveriam ser destinados, dando origem ao embrião do discurso de “direitos humanos para humanos direitos” no país.
Militar agredindo civis durante o regime ditatorial brasileiro. [Imagem: Arquivo naciona/ Domínio Público]
Os programas sobre crimes, assim, abandonam a simples abordagem cinematográfica para traçarem críticas e emitirem opiniões sobre o acontecido. “Na rádio Record, Gil Gomes considerava os defensores dos direitos humanos coniventes com o crime. Na rádio Capital, Afanásio Jazadji enaltecia a pena de morte, a justiça pelas próprias mãos, e repudiava a política de humanização. Ambos os programas tinham grande audiência”, afirma Higa, no artigo Humanização das prisões e pânicos morais: notas sobre as “Serpentes Negras”.
A pobreza como crime
Quando se pensa nas prisões brasileiras, há uma imagem muito clara de quem está por trás das grades: pessoas pobres, marginalizadas e, na maioria esmagadora dos casos, de fenótipo preto ou pardo. Longe de ser uma simples coincidência, o lamentável cenário é fruto de um processo histórico de desumanização das classes economicamente desfavorecidas no país, marcado por gentrificação, violência policial e julgamentos injustos nos tribunais da nação.
“O Brasil é o terceiro país do mundo que mais encarcera pessoas e isso está iminentemente ligado a nossa política de segurança pública e ao nosso sistema penal. Nós temos um judiciário composto majoritariamente por pessoas brancas, ricas e do sexo masculino, que julga pessoas pobres e pretas como descartáveis, evidenciando que a noção de direito, ela é pra alguns, e não pra todos.”, afirma Nilza.
Cadeia brasileira superlotada. [Imagem: Arquivo Agência Brasil]
Com alicerces no sistema escravista e de concentração fundiária que compunha a organização social do Brasil colônia, a criminalização da pobreza se tornou mais sistematizada, para além da escravidão, a partir da vinda da corte portuguesa a território nacional, em 1808. Na época, negros escravizados e povos desprovidos de terras produtivas compunham mais da metade da população do brasileira. Com medo de uma possível revolta contra as elites e à coroa portuguesa, o Príncipe Regente Dom João cria a chamada Divisão Militar da Guarda Real de Polícia, que tinha como principal objetivo reprimir as classes desfavorecidas e sufocar qualquer tipo de levante popular que pudesse surgir através delas.
Assim, através desse embrião do que hoje conhecemos por polícia militar, o Estado começava a institucionalizar cada vez mais a violência contra o povo pobre e racializado do país, deixando feridas que se propagam até os dias atuais. Dentre as diversas atrocidades cometidas pela classe dominante no período, destaca-se a cultura punições públicas, que com intuito não só de entreter a população através da violência extrema, tinha papel fundamental na demonstração de poder de um grupo sobre outro.
“O expediente do “castigo” foi usado no período colonial associado ao trabalho. O uso do chicote, da violência associada ao trabalho, estava inserido no coração do sistema escravista (…) Era um sistema sádico, de torturas públicas, com penas de 100 chibatadas que levavam à morte instantânea”, afirma o professor da UFRRJ, Manoel de Barros Motta, em entrevista para a IHU On-line.
Enquanto isso, no Brasil atual, o apresentador Sikêra Júnior, em seu programa Alerta Nacional, trazia para rede aberta de televisão o quadro “CPF Cancelado”, que consistia em fazer piadas e comemorar a morte de supostos criminosos. Tudo isso, acompanhado de imagens gráficas e claras do homicídio, deixando para o telespectador, a grande dúvida: será que a cultura de punições públicas foi realmente superada? Para Higa, há direta conexão entre o conteúdo dessas e daquilo que é propagado por programas policiais, principalmente quando tratamos de entender quem são suas principais vítimas.
“Esses programas têm um discurso específico em relação a quem se ataca. Não é aleatoriamente que alguns grupos são mais suscetíveis a serem rotulados como bandidos por esse tipo de fala, e a gente sabe que a população mais pobre, sobretudo afrodescendente, é quem tende a sofrer mais com esse tipo de rotulação”, aponta o pesquisador.
Transcendendo, assim, o simples papel de entreter e informar, a mídia policial parece dar palco a violência visando cumprir um objetivo secular da elite brasileira: alvejar a população pobre. Através de condenações sem provas e da exaltação à violência contra povos oprimidos, os programas do gênero perpetuam na sociedade brasileira os mesmos ideais preconceituosos que ajudaram a desumanizar tal grupo e superlotar, com ele, as cadeias nacionais.
“O papel que esses programas desempenharam até aqui foi um papel de fornecer o imaginário, as razões afirmativas, a base retórica e discursiva que se dissemina na sociedade para que injustiças continuassem existindo. Daí vem o famoso “bandido bom é bandido morto”, que é um bordão que foi disseminado por esse programas, que depois vira comunidade em rede social, e depois vira candidato à presidência da república”, declara a jornalista e pesquisadora sobre democracia e direitos humanos, Rafaela Marques.
Autor: Davi Madorra.
Fonte: Jornalismo Júnior/USP.