Trabalho análogo à escravidão e impunidade das empresas revelam traços de um Brasil colonialista e autoritário.
Rodolfo Stavenhagen já previa uma modernidade pautada no atraso quando escreveu o artigo “Sete teses equivocadas sobre a América Latina”. Como uma colônia que serve a sua metrópole, no próprio território brasileiro existe uma disparidade econômica e social que cria uma dinâmica peculiar, onde as áreas mais “arcaicas” viabilizam o desenvolvimento de outras.
É estranho pensar que aqui ainda existam relações semelhantes às do antigo período Colonial mas, diferente do que muitos imaginam, os exemplos são incontáveis e podem se manifestar de diversas formas.
Um caso emblemático é o que ocorreu no dia 22 de março de 2023, quando 207 trabalhadores vindos da Bahia foram resgatados de situação análogas à escravidão em uma vinícola em Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul. Na época, outros casos também foram registrados em vinícolas de grande porte e conhecidas por todo o país. Aurora, Garibaldi e Salton estavam entre elas. Essas empresas contratavam serviços terceirizados da Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde Ltda, esta também flagrada mantendo trabalhadores em situações semelhantes à escravidão.
Depois de concluídas as audiências, o Ministério Público do Trabalho (MPT) assinou o Termo de ajuste de conduta (TAC) junto às três empresas que seriam assumidas 21 obrigações para que as condições de trabalho estivessem de acordo com as diretrizes da OCDE, ou seja, em conformidade com os Direitos Humanos. À época, o empresário da empresa terceirizada envolvida no caso, Pedro Augusto de Oliveira Santana, se recusou a assinar o documento junto ao MPT e por isso suas contas foram bloqueadas. A empresa então pagou emergencialmente as indenizações em verbas rescisórias.
Pelo acordo assinado, as vinícolas teriam que pagar R$7 milhões em indenizações por danos morais, além de R$5 milhões por danos coletivos e R$2 milhões por danos individuais (valor dividido entre os resgatados). O prazo de pagamento das indenizações foi de 15 dias a partir da disponibilização da lista de nomes dos beneficiados. O descumprimento de cada uma das cláusulas do documento assinado junto ao MPT resultaria em uma multa de R$300 mil por violação.
Para quem olha de fora, as penalidades das vinícolas parecem insuficientes, dado que se trata de um valor pouco significativo para o porte das empresas e leis federais propõem outras consequências. O artigo 243 da Constituição de 1988 descreve que, quando um caso é denunciado, a propriedade em que foi local de trabalho análogo à escravidão é confiscada e usada como reforma agrária, ou seja, ocorre a distribuição da terra – mas não foi isso que aconteceu nessa ocasião. Além disso, pessoas condenadas por trabalho análogo a escravidão também não podem mais ser contratadas por administração pública, a partir de então, diferentemente da situação no Rio Grande do Sul, como diz o PL 2300/2021.
ESCRAVIDÃO: UM DIÁLOGO COM ESPECIALISTAS
Sabe-se que o que ocorreu nas vinícolas no Rio Grande do Sul se trata de apenas mais um caso de trabalho análogo à escravidão no Brasil e que esta prática ainda perpetua no país. Dito isso, para maior entendimento sobre o tema, entrevistas com especialistas foram realizadas.
Como primeiro entrevistado, o advogado trabalhista Felipe Santiago, traz um viés jurídico à questão. Ele explica o que configura uma relação de trabalho como abusiva e o que se enquadra na categoria de análoga a escravidão: “Análogo a escravidão poderá ser visto como uma exploração de mão de obra, caso haja um período em que essa exploração tenha esse contexto, não se resumindo tão somente ao valor recebido [pelo trabalho] em si. Exemplo: Submissão a trabalhos forçados, jornada exaustiva, situação degradante, restringir locomoção, dentre outros. Capitulado no artigo 149 do CP”.
Além de definir o que é um trabalho análogo a escravidão, o Artigo 149 do código penal, também discorre sobre as possíveis penalidades do delito. Um agravante citado, que aumentaria a pena, é justamente se o crime for cometido por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.
Felipe Santiago ainda ressalta que não existe uma pena definida para este tipo de crime, podendo variar de acordo com a exploração, sua periodicidade e os danos causados, detalhando que, além de uma indenização, os responsáveis pelas empresas acusadas também poderão sofrer outras formas de punição: “O código penal presente na Constituição prevê a individualização da pena, sendo aplicada a dosimetria da pena de forma individualizada, ou seja, de acordo com sua atuação e participação em cada crime. Pena de reclusão de dois a oito anos e outras penas.”
Felipe Santiago também opina sobre a relação dos casos citados com a herança histórica e o racismo estrutural no país. “Nota-se que em sua maioria as pessoas expostas à situação análoga à escravidão são hipossuficientes e desprovidas de capacidade econômica. No meu ponto de vista, o racismo estrutural tem um elo com a escravidão, mantendo-se nos meios e formas do trabalho escravo contemporâneo”, afirma.
A conexão entre desigualdade social e trabalho análogo a escravidão é evidente. Segundo dados da Secretaria de Inspeção do Trabalho e do Ministério do Trabalho, mais de 90% dos trabalhadores resgatados vieram de municípios com baixos índices de desenvolvimento. Além disso, dentre os libertados entre o período de 2003 a 2009 mais de 60% eram analfabetos e sequer possuíam o Ensino Fundamental completo. A falta de condições básicas de trabalho relaciona-se diretamente com a desigualdade social.
Por fim, o advogado conclui “Deram uma roupagem nova à escravidão, e entendo que ainda existe no Brasil, bem como o racismo, basta observar o seguinte: locais onde a presença negra é inexistente, ali está evidente o racismo estrutural, pois a desigualdade social, separa as classes, impossibilitando que o negro frequente determinados espaços”.
A fim de possuir uma outra perspectiva em relação aos trabalhos análogos a escravidão, a coordenadora dos projetos da ONG InPACTO (Instituto Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo), Paola Gersztein, traz um olhar mais humano ao fenômeno e relata as experiências da organização.
Segundo a entrevistada, a ONG surge da necessidade de existir algum órgão que fiscalizasse e, garantisse, que as diversas empresas que assinaram compromissos em não negociar com quem faz uso do trabalho análogo a escravidão de fato cumprissem com suas promessas.
“Com a missão de erradicar o trabalho análogo ao escravo nas cadeias produtivas do país, em 2014 foi criado o InPACTO”, conta Paola.
No que se refere ao perfil de pessoas em condição análoga à escravidao, a entrevistada revela que a grande maioria das resgatadas são negras e encontram-se, sobretudo, em situação de miséria e pobreza. Ela conta que o recorte de gênero é pouco inviabilizado e varia conforme o local da atividade (rural, urbano ou doméstico). “O trabalho em condições análogas à escravidão acontece tanto em área rural, quanto urbana ou até mesmo doméstica. Os números de pessoas resgatadas podem também refletir áreas nas quais há maior possibilidade de denúncias e fiscalização”, completa.
Por estarem familiarizados com as situações e mobilizações que envolvem a retirada de um indivíduo de uma situação análoga a escravidão, Paola Gersztein analisa os principais desafios enfrentados pela ONG nessas situações: “As dimensões continentais do país e a exploração do trabalho em áreas de difícil acesso; o déficit de Auditoras e Auditores Fiscais do Trabalho pela ausência de concursos públicos há anos; a falta de investimento orçamentário nas ações de prevenção e controle; as ameaças sofridas pelas pessoas que podem denunciar as situações que caracterizam o trabalho análogo à escravidão são as principais dificuldades”.
A porta-voz da ONG InPACTO ainda relatou dificuldades nas operações de fiscalizações mais recentes, segundo ela por dois motivos. “Durante os últimos anos esse aumento (das operações de fiscalização) não foi tão percebido em razão da pandemia e sobretudo das manifestações do próprio chefe do Poder Executivo contrárias à fiscalização”. A coordenadora de projetos também ressalta a importância das políticas públicas no combate ao trabalho análogo a escravidão. Segundo Gersztein as ONGs não possuem pessoal, nem orçamento o suficiente para suprir com todas as demandas da área.
PAÍS DA OPRESSÃO
O caso de trabalho análogo à escravidão nas víniculas do Rio Grande do Sul revela traços da manutenção de características coloniais na sociedade brasileira. O termo Colonialismo Interno infere justamente isto: a permanência da dinâmica em que o moderno se dá a partir de relações com os mais atrasados, acarretando no subdesenvolvimento desses. Ou seja, no caso em questão, o consumo de vinhos e espumantes – produtos considerados de classe alta e elitizados – só é viabilizado pelo atraso da zona rural e das relações de trabalho arcaicas lá estabelecidas.
Aqui é revelada a existência de uma sociedade autoritária que naturaliza esse tipo de violência aos Direitos Humanos em pleno 2023. A quase impunidade das empresas e o caráter discriminatório do crime – uma vez que afeta predominantemente homens negros, nordestinos e analfabetos funcionais –, é um reflexo direto de um herança escravista e opressora.
Autores: Caio Volpe, Camilla Guerreiro, Catarina Nestlehner, Giulia Lang, Glícia Ferreira e Julia Marsan.
Fonte: Cásper Líbero.