A nossa reação de espanto ficou evidente. Como um jornalista de sucesso como Chico Felitti nunca apresentou traços de que seria um excelente comunicador?
CHICO FELITTI: “NA FOLHA, FUI PRA CHINA E PRA SÍRIA FAZER PAUTA. HOJE EM DIA ELES NÃO VÃO NEM PRA JARINU DE CARRO”
Chegamos na Le Pain, cafeteria no Higienópolis, por volta das 16h. A chuva torrencial atrasou cada um dos transportes que pegamos até lá. Mas, ao entrarmos, ele já estava com o pé em cima da cadeira e lendo um livro inglês de capa bonita. Calmo de impressionar Beatriz Trevisan, colega de trabalho que ressaltou com firmeza como Chico Felitti não consegue ficar parado.
Para começo de conversa, entrevistar o Chico Felitti não passava de um mero sonho. É óbvio que tínhamos a vontade de conhecer e conversar com um ídolo, mas não pensamos que o cara que simplesmente lançou os dois podcasts de maior sucesso da atualidade iria nos responder.
Mandamos uma mensagem no Linkedin e energias para o universo, imaginando mais a chegada de um silêncio sepulcral do que qualquer outra coisa. Imagine, portanto, nossa surpresa quando erguemos o celular e nos deparamos com uma mensagem no Linkedin: “Claro! Me manda mensagem no WhatsApp para conversarmos”.
Foi Chico quem sugeriu o lugar quando oferecemos um café, certeiro, sem nem dar muita chance de outra opção. Quando finalmente chegamos, as pernas e mãos tremiam com a presença daquele homem que, de aparência, não era nem um pouco como imaginávamos. Vamos chegar lá.
Sentamos, pedimos cafés e começamos nossa conversa de um jeito leve:
Chico, quando criança, você já tinha características de que iria para área de comunicação?
A resposta veio de forma inusitada.
Chico: Não, eu era tímido, retraído, muito solitário.
Pelo menos você gostava de ler então?
Chico: Ninguém lia na minha casa, eu só fui começar a ler quando comecei a trabalhar em jornal.
Se você não tinha esses traços de um comunicador, quais faculdades você pensou em fazer?
Chico: Eu tinha prestado para várias coisas. Eu prestei para Jornalismo, Moda e algumas outras coisas.
É verdade. Isabel Felitti conta que Francisco – nome dedicatória ao avô – sempre foi muito inteligente, mas tímido. “Ele sempre foi muito tranquilo, carinhoso, mas aprontava muito. Aquele apronto normal de molecada, então não tive muito problema com ele”, diz.
A nossa reação de espanto ficou evidente. Como um jornalista de sucesso como Chico Felitti nunca apresentou traços de que seria um excelente comunicador?
Por que Jornalismo então?
Chico: Meus pais falaram pra eu ir fazer jornalismo, porque pelo menos eu teria um emprego. Porque calhou de eu ter uma tia que ficou rica sendo jornalista, mas ela era mais da área corporativa.
Ele fez, inclusive, Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP), mas jubilou o curso por falta de gosto. Não ligava muito para estudo, ficava jogando cartas com os amigos.
Uma leve interrupção na conversa, já que um homem alto, de cabelos escuros e nitidamente sem jeito de interromper a conversa aparece para pegar seu celular que estava carregando no carregador portátil de Chico que gentilmente o emprestou para dar um carga no aparelho.
Um leve gole no capuccino, Chico se ajusta na cadeira e volta a atenção para nós de novo. A ansiedade se torna aparente quando ele pega a tampa da garrafa de água que estava ao seu lado e começa a morder a lateral para aliviar o estresse.
Sabíamos que estávamos diante de um personagem importante do jornalismo atual. Então guiamos a sequência da entrevista para o mundo do jornalismo atual. Comentamos que hoje em dia parece que os veículos querem prender ao máximo seus jornalistas dentro da redação, e fazemos outra pergunta:
O jornalismo está meio cru hoje em dia?
Ele responde de um jeito um tanto quanto surpreso com a pergunta:
Chico: Quando eu entrei com 19 na Folha era cru, era tipo uma massa de pão que não tinha nem fermento ainda, mas a diferença é que eu tive tempo para amadurecer.
Complementa dizendo que hoje pessoas são demitidas o tempo inteiro e ficam sem perspectiva de carreira na área.
Novamente interrompidos, dessa vez por um garçom extremamente educado. Na bandeja o homem trazia dois cafés, que eram surpreendentemente servidos em uma espécie de cumbuca e um pedaço de torta para adoçar o clima.
Mesmo com a leve interrupção, não podíamos deixar escapar esse assunto de quando ele estava na Folha de São Paulo. Começamos já perguntando como era a vida dentro da redação:
Chico: Quando eu entrei na Folha, foi o ponto de virada mesmo. É ali que você começa a escrever o que você vê e apura. É uma profissão com uma liberdade sem igual.
Era muito livre, mas podemos dizer que o jornalismo está meio preso nas redações hoje?
Chico: Eu trabalhei na Folha em uma época em que eles tinham muito investimento. Eu fui pra China e pra Síria fazer pauta. Hoje em dia eles não vão nem pra Jarinu de carro.
Tentamos ligar os antigos trabalhos do Chico com os atuais projetos que ele anda tocando. Comentamos sobre a atual carreira que Chico anda levando. Agora que se tornou empresário após fundar a empresa Pachorra Felitti Áudios, Livros e Filmes – Pachorra, no caso, o nome de uma das cachorra dele -, Chico diz estar ainda mais ocupado e incomodado com a falta de tempo para ser apenas jornalista:
Chico: Eu acho que o mais difícil para mim, é o aspecto empresarial. Eu tenho deixado de ser apenas repórter nos últimos anos. Eu passo mais tempo resolvendo problemas do que exatamente apurando e escrevendo.
Soa como um problema. Pelo que já entendemos de Chico, ele gosta mais de ser a pessoa gravando ou escrevendo, e não resolvendo pepinos burocráticos.
Haja trabalho, inclusive. Mas nada é tão pra ontem que não possa esperar um dia. “Eu tinha medo de perder a admiração por ele, mas ela só aumentou. No trabalho, ele sempre está fazendo algo, mas é extremamente respeitoso. Ele não é aquele tipo de chefe que vai te mandar mensagem no domingo ou em horários aleatórios… Não tem aquela coisa de não respeitar limites”, fala Bia Trevisan.
Sabendo de toda essa rotina de empresário que Felitti está vivendo, pensamos em encaminhar a entrevista para o mundo em que a empresa dele atua mais, os podcasts. Na primeira palavra que tentamos encaminhar para o mundo dos áudios, Chico já traz à tona sua paixão pelos livros – não só pela escrita, mas por ler livros dos mais diversos gêneros e trocar livros com os amigos. Beatriz, inclusive, acha engraçado o fato de que Felitti não consegue escrever no silêncio: a jornalista nos conta que seu chefe tem a mania de sair para escrever em praças, parques, lugares em que haja uma grande movimentação de pessoas e muito barulho, de preferência.
Chico: Eu amo escrever. Não que eu não goste de gravar podcasts, mas eu gosto mais da clareza dos livros e de ser compreendido.
E quantos livros de sucesso. “Rainhas da Noite”, “A casa”, “Elke”… Mas o favorito dos autores que aqui vos escrevem sempre foi “Ricardo e Vânia”, a obra que conta a história do homem conhecido como Fofão da Augusta a partir da trajetória de Vânia, sua namorada. E, se vamos falar dos livros de Chico Felitti, ninguém melhor que uma de suas personagens.
“Ele escreveu muita coisa que não estava exatamente como aconteceu. Me senti muito marginal. Disse “Chico, pelo amor de Deus, não publica o livro”, mas já estava em processo de produção. Ele me tranquilizou, disse que as pessoas iam gostar de mim, não me marginalizariam. Foi o que aconteceu.” diz a própria Vânia. Ela acha Chico uma pessoa querida, mas reitera a dificuldade de conversar com o amigo pelo WhatsApp.
Quando realmente entramos no assunto dos podcasts, entramos de cara com o comentário do podcast mais famoso de Chico Felitti, A Mulher da Casa Abandonada, que conta a história de uma mansão no Higienópolis que se faz lar para uma mulher que, décadas atrás, foi criminalmente indiciada nos Estados Unidos por manter uma funcionária em condições análogas à escravidão.
Você esperava a quantidade de visualizações e a explosão que foi o podcast da Casa Abandonada?
Chico: Esse fenômeno não vai se repetir. Eu não sabia se ia passar os views do Além do Meme, mas eu sabia que era uma história incrível.
Mas nem tudo são flores. “A Mulher da Casa Abandonada” foi duramente criticado por inúmeros motivos. Chico chegar gravando, sem avisar que a gravação seria feita, deixa a pessoa completamente desprotegida – no caso, Margarida Bonetti, que teve sua casa invadida por causa da explosão que foi o podcast.
Chico sabe que não vai atingir o mesmo sucesso de um “true crime” com seu novo podcast, o “Gente”, que conta histórias divertidas e mais leves sobre casos reais que vão desde a doação de medula óssea até um homem que anunciou o nome da paquera de carnaval nos jornais da cidade para tentar encontrá-la. Mas, é fato, ninguém que inicia um projeto de podcast consegue imaginar que vai atingir a impressionante marca de 4 mil ouvintes por episódio. Inclusive, essa surpresa veio da própria Mari Muradas, a arquiteta que aparece no podcast por ter denunciado a Margarida Bonetti para o FBI. Ela foi uma entre várias entrevistadas para seus projetos de sucesso. Conta que a primeira impressão foi a que ficou: “ele é uma pessoa muito agradável, é muito gostoso conversar com ele. É uma honra fazer parte de um projeto tão incrível”.
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Partimos para o tópico da voz do Chico. Perguntamos para eles como eles pensaram que era a aparência dele quando escutaram apenas a sua voz pela primeira vez. Todos disseram que já tinham visto por fotos das redes sociais ou algo relacionado. Ao fazer a mesma pergunta, só que dessa vez para o próprio Chico Felitti, o comentário foi um tanto quanto diferente.
Quando começamos a ouvir o podcast da Casa Abandonada, e escutamos sua voz e fomos pesquisar ficamos assustados com a diferença da voz para a pessoa.
Chico: Sim, as pessoas pensam em um cara baixinho, gorducho e com cara de nerd. Basicamente as pessoas ligam minha voz com a aparência do Ary Fontoura.
E mesmo sendo semi sósia do Ary Fontoura, Chico é único. Tem uma personalidade impactante e fala com confiança enquanto bate o pé no chão ansiosamente. Perguntamos o que é sucesso pra ele e a resposta é “que me ouçam e me leiam”. Chico, portanto, definitivamente é uma pessoa de sucesso.
Chico Felitti e suas cadelas, Gorgonzola e Pachorra/Foto: Arquivo pessoal
Chico Felitti e suas cadelas, Gorgonzola e Pachorra/Foto: Arquivo pessoal
A pergunta sobre a comunidade LGBTQIAPN+ não podia ficar de fora. Chico Felitti é assumidamente gay e casado com o redator Renan Bianco. Eles se conheceram no Copan, quando ainda eram vizinhos, e com muito pouco tempo de relacionamento foram morar no mesmo apê. Estão juntos há dez anos e hoje em dia são pais da Pachorra e da Gorgonzola. São duas cachorras. Mais para frente, na entrevista, Chico conta que seu passatempo favorito é sair para passear com elas. Chico ainda conta que Renan está com projetos previstos para o exterior, e vai morar com ele nos Estados Unidos muito em breve. “Depois de muito tempo junto, parece que não tem mais volta”, afirma. Mas, apesar de o relacionamento ser longevo e saudável, sabemos que estamos em uma sociedade doente.
No sentido social, tem algo que já usaram pra te menosprezar, não pelo seu trabalho e sim por quem você é?
Chico: Sim, o tempo inteiro. É pelo fato de eu ser tatuado, pelo fato de eu ser gay, pelo fato de amar a rede social e principalmente por eu me expor muito nelas. O fato de eu ser gay foi durante muito tempo uma piada dentro da redação. Eu cheguei a ser proibido de escrever textos relacionados a assuntos LGBT por uma chefe minha.
Até porque o Brasil é um dos países que mais mata pessoas LGBTQIAP+. Isabel nos fala que, quando a revelação veio, doeu mais saber que ele devia ter passado por momentos muito difíceis sozinho, e segurou a onda. “O mundo é muito cruel. É cruel com todo mundo, mas com as minorias mais ainda. Ficou um buraco de eu não ter podido ter abraçado mais as inseguranças dele antes”.
As redes sociais foram o caminho que encontramos para seguir para um assunto, que é muito comentado sobre o Chico. Seu Instagram é lotado de fotos sem camisa e bem ativa para o que as pessoas imaginam de um jornalista. “O Bonner não faz isso”, ele diz. Chico já encontrou percalços por causa de uma rede social tão irreverente quanto a sua.
Você parece se dar bem com as redes sociais.
Chico: Eu amo por que eu sou real, sou eu mesmo. Tem coisas que amigos jornalistas que olhassem as coisas que posto, diriam para eu nunca postar. Quanto mais você mostra, mais as pessoas vão se aproximar de você. Eu nunca faço as coisas de caso pensado, mas eu não vou me privar.
Realmente ficamos fascinados com as redes do Chico. Ele gosta muito de mostrar tudo que faz, o que se torna um atrativo de sua personalidade, mas conta que isso tira um pouco de sua credibilidade. Felitti conta que acontece muito de pessoas abrirem mão da leitura de seus livros por julgarem o jornalista pelo que veem no Instagram. E não é só por causa das fotos divertidas, algumas sensuais, outras simplesmente bizarras, mas por causa das tatuagens. O jornalista tem desenhos espalhados pelo corpo de ponta a ponta, e afirma que sofreu preconceito no mundo do trabalho até por isso. Beatriz arremata com perfeição: “nossa profissão está na margem do que se entende como profissões formais, não é?”.
Chico continua balançando a perna. E mordendo a tampa da garrafa. Disse no início da entrevista que “não há nenhum tipo de atrocidade que já não tenha respondido”, mas ainda assim parece ansioso. Bem que Isabel conta que Chico nunca foi uma pessoa parada – aparecia com viajens, projetos e ideias prontas só em tempo de ela vê-lo colocá-las em execução.
Um único padrão foi mantido em todas as entrevistas: a pergunta “sendo um perfil do Chico Felitti, o que não pode faltar?” As respostas variaram entre criatividade, atenção aos detalhes e inteligência mas, definitivamente, a do próprio Chico é a que fica:
Chico: Não devia nem existir, né?
A entrevista chega perto do final quando, depois de quase três horas, Chico nos diz que tem um compromisso e precisa partir. A tampa de garrafa em seu dedo agora não é nada mais que um plástico deformado. Começamos a falar sobre papos fora do assunto e entramos no mundo pessoal com ele, e o tal compromisso fica em segundo plano – permanecemos sentados conversando por pelo menos mais meia hora. Falamos sobre nossas experiências de estágios e até contamos piadas , como se fôssemos íntimos. Chico traz essa sensação, de intimidade. Ele presta atenção em cada detalhe do que você fala, como se você fosse a potencial próxima história que ele vai contar.
E, como mágica, o entrevistado deixa de ser ele e passa a ser nós. Esse é o tal dom do jornalismo ativo que Mari Muradas insistiu que não deixássemos de lado ao escrever o trabalho. Assim como Chico nunca deixou de correr atrás de uma história. Vania comentou conosco que Chico é tão ambicioso em ir atrás de uma história que chegou a viajar para Paris para conseguir contato com ela, após descobrir o bordel em que ela trabalhava junto com duas amigas. Chico passa meia hora perguntando cada um dos detalhes sobre o trabalho do Raphael em uma empresa de palmilhas e calçados sob medida, fato que o até o deixou curioso e com vontade comprar uma palmilha também, levantando também ideias de como transformar uma violência psicológica que Clarissa sofreu no ambiente acadêmico em uma obra radiofônica a ser publicada.
Pedimos a conta, a chuva parou. Combinamos com Felitti por mensagem que pagaríamos a conta mas, quando o garçom reaparece com a maquininha, o jornalista sequer deixa que saquemos nossos cartões. Paga a conta completa, solícito, e pede para ver o trabalho pronto depois que ele for avaliado. Tiramos uma foto juntos, ele coloca enormes headphones e sai andando descontraído com as mãos nos bolsos, rumo ao início de noite enevoado de Higienópolis.
Entramos no Uber. A experiência ainda não parece real.
– Clarissa: Isso acabou de acontecer mesmo?
– Raphael: Sim. E agora a gente precisa começar a escrever.
Autores: Clarissa Palácio e Raphael Leite.