Canais de Santos e saneamento básico: o pioneirismo da cidade litorânea no urbanismo sanitarista

Santos, cidade portuária, histórica e turística, também é referência em saneamento básico no estado de São Paulo. Seu urbanismo impressionou e segue impressionando pelas suas características únicas e marcadores sociais.

“Cidade é uma forma de organização do espaço pelo homem, expressão concreta de processos sociais, na forma de um ambiente físico construído sobre o espaço geográfico. Portanto, a cidade reflete as características da sociedade”

David Harvey, Espaços Urbanos na Aldeia Global

É de tamanha poesia andar pelas ruas das cidades e acompanhar as silhuetas dos prédios, os parques de lazer, as rotatórias quase perfeitamente redondas, mas, o urbanismo também se dá em questões extremamente práticas.  

Segundo a professora associada do Departamento de Engenharia Civil da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), Karin Marins, urbanismo é pensar na “atuação sobre o território urbano, onde combinam-se soluções de desenho, de projeto de forma urbana a técnicas, que podem envolver várias soluções de problemas urbanos”. Um exemplo dessas soluções é todo o sistema de saneamento básico.

Exemplo de construção que influencia na mobilidade urbana. [Imagem: Reprodução / Pixabay]

Saturnino de Brito e sua revolução no saneamento brasileiro

Francisco Saturnino Rodrigues de Brito é o patrono da Engenharia Sanitária Brasileira, eleito pelo congresso da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental, e referência no que se relaciona ao Urbanismo Sanitarista. Ele, junto a uma equipe de profissionais, em 1905, desenvolveu um modelo urbanístico que revolucionou o sistema sanitário brasileiro: os Canais de Santos. 

A cidade portuária, no início do século 20, sofria constantemente com problemas de saúde pública devido à falta de saneamento, como alagamentos e proliferação de doenças. O Porto de Santos já foi batizado como “Porto Maldito”, devido ao crescimento assustador de casos de febre amarela, varíola e peste bubônica, dizimando milhares de pessoas que passavam por lá. 

Saturnino de Brito, patrono da Engenharia Sanitária Brasileira. [Imagem: Reprodução / Wikimedia Commons]

Saturnino de Brito foi pioneiro em planejar um sistema de drenagem urbana para a cidade. Drenagem urbana é um sistema de manejo projetado pelo poder público do município para coletar águas provenientes da chuva e escoá-las para galerias de águas pluviais e esgotos pluviais até um curso hídrico capaz de recebê-las.

O seu sistema de drenagem consiste na construção de diversos canais pela cidade. Os expostos, que aparecem nas fotos de cartão postal e servem como ponto de referência para os moradores, são os canais de captação de água pluvial – os canais 1 a 7. 

Já os que transportam os dejetos domésticos e industriais, são os subterrâneos – entre eles, o do Orquidário, o da Rua Moura Ribeiro, da Jovino de Melo, o da Rua Francisco Manoel e ainda um na Rua Brás Cubas, no Centro. Todos os canais captam água da chuva, esgoto e ainda distribuem água potável para os moradores da cidade.

Canal 1 em 1907, no dia da sua inauguração, com um barco transportando mercadorias. [Imagem: Reprodução / Acervo Novo Milênio]

Os canais são construções tão marcantes na cidade que já fazem parte do imaginário da população santista. Moradora de Santos há 54 anos, Maria Cristina Siqueira Lorenzo relata que o senso de localização depende deles. “Geralmente a gente fala assim ‘Ah, sabe o canal 6? Então, eu moro na esquina’. Aqui é muito comum a gente se basear nos canais, isso é linguagem de santista.”

O contraste inevitável

Considerada a maior comunidade de palafitas de todo o Brasil, o Dique Vila Gilda surgiu com a construção de um dique e canais de drenagem à margem do Rio Bugres numa área de manguezal, que antes de sua destruição era localizada na zona noroeste de Santos. Ainda assim, em 2022, segundo o Instituto Trata Brasil, Santos foi considerada a cidade com o melhor e mais abrangente saneamento básico do país, estudo que leva em conta somente as moradias regulares e oficializadas da cidade.

Desde os anos 90, há vários projetos que tratam da falta de direitos básicos na comunidade de palafitas, como o Projeto de Urbanização da Favela do Dique da Vila Gilda (1994) e o Projeto Parque Palafitas (2022), mas a maioria de seus moradores ainda convive, diariamente, com a falta de saneamento básico e precária coleta de lixo.

Não faltam técnicas urbanísticas para solucionar esses problemas sociais. A professora explica que “áreas periféricas são territórios que têm mais dificuldade de acesso por sua organização irregular. Não é porque não tem uma condição técnica para isso, é muito mais por uma razão política-institucional”.

Ou seja, não faltam engenheiros, arquitetos, construtores ou políticos; o que falta é a combinação de recursos com um olhar atento para a população mais vulnerável, concretizando políticas públicas sustentáveis e que abranjam todas as áreas da cidade para fazer uma gestão de águas mais responsável e popular.

Dique Vila Gilda. [Imagem: Reprodução / Wikimedia Commons]

Medidas sustentáveis e combinadas

O sistema de canais também não foi pensado para uma funcionalidade a longo prazo. Com mais de cem anos desde a construção do primeiro canal, hoje já aparecem os problemas que não foram pensados no século passado. 

Navio de carga entrando no canal de Santos [Imagem: Reprodução / Wikimedia Commons]

Cristina relata que é comum conviver com o transbordamento das águas dos canais. “Quando a maré está muito alta, quando coincide a lua cheia com maré alta, aí os canais enchem, quando dá uma chuva muito intensa também.”

Segundo Karin, a tendência é o aumento de soluções “verdes” combinadas com as soluções já existentes, como drenagem com canais menores, infiltração com várias praças, parques e áreas verdes distribuídas.

“Combinar soluções aumenta a sua redundância e isso é benéfico, tanto no contexto de resiliência urbana quanto para realmente não depender de uma solução única e trabalhar com soluções baseadas na natureza, que são certos recursos naturais que podem ajudar nesse processo também”, explica a professora.

Autora: Isabel Briskievicz Teixeira.

Fonte: Jornalismo Júnior/USP.