Santos, cidade portuária, histórica e turística, também é referência em saneamento básico no estado de São Paulo. Seu urbanismo impressionou e segue impressionando pelas suas características únicas e marcadores sociais.
“Cidade é uma forma de organização do espaço pelo homem, expressão concreta de processos sociais, na forma de um ambiente físico construído sobre o espaço geográfico. Portanto, a cidade reflete as características da sociedade”
David Harvey, Espaços Urbanos na Aldeia Global
É de tamanha poesia andar pelas ruas das cidades e acompanhar as silhuetas dos prédios, os parques de lazer, as rotatórias quase perfeitamente redondas, mas, o urbanismo também se dá em questões extremamente práticas.
Segundo a professora associada do Departamento de Engenharia Civil da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), Karin Marins, urbanismo é pensar na “atuação sobre o território urbano, onde combinam-se soluções de desenho, de projeto de forma urbana a técnicas, que podem envolver várias soluções de problemas urbanos”. Um exemplo dessas soluções é todo o sistema de saneamento básico.
Saturnino de Brito e sua revolução no saneamento brasileiro
Francisco Saturnino Rodrigues de Brito é o patrono da Engenharia Sanitária Brasileira, eleito pelo congresso da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental, e referência no que se relaciona ao Urbanismo Sanitarista. Ele, junto a uma equipe de profissionais, em 1905, desenvolveu um modelo urbanístico que revolucionou o sistema sanitário brasileiro: os Canais de Santos.
A cidade portuária, no início do século 20, sofria constantemente com problemas de saúde pública devido à falta de saneamento, como alagamentos e proliferação de doenças. O Porto de Santos já foi batizado como “Porto Maldito”, devido ao crescimento assustador de casos de febre amarela, varíola e peste bubônica, dizimando milhares de pessoas que passavam por lá.
Saturnino de Brito foi pioneiro em planejar um sistema de drenagem urbana para a cidade. Drenagem urbana é um sistema de manejo projetado pelo poder público do município para coletar águas provenientes da chuva e escoá-las para galerias de águas pluviais e esgotos pluviais até um curso hídrico capaz de recebê-las.
O seu sistema de drenagem consiste na construção de diversos canais pela cidade. Os expostos, que aparecem nas fotos de cartão postal e servem como ponto de referência para os moradores, são os canais de captação de água pluvial – os canais 1 a 7.
Já os que transportam os dejetos domésticos e industriais, são os subterrâneos – entre eles, o do Orquidário, o da Rua Moura Ribeiro, da Jovino de Melo, o da Rua Francisco Manoel e ainda um na Rua Brás Cubas, no Centro. Todos os canais captam água da chuva, esgoto e ainda distribuem água potável para os moradores da cidade.
Os canais são construções tão marcantes na cidade que já fazem parte do imaginário da população santista. Moradora de Santos há 54 anos, Maria Cristina Siqueira Lorenzo relata que o senso de localização depende deles. “Geralmente a gente fala assim ‘Ah, sabe o canal 6? Então, eu moro na esquina’. Aqui é muito comum a gente se basear nos canais, isso é linguagem de santista.”
O contraste inevitável
Considerada a maior comunidade de palafitas de todo o Brasil, o Dique Vila Gilda surgiu com a construção de um dique e canais de drenagem à margem do Rio Bugres numa área de manguezal, que antes de sua destruição era localizada na zona noroeste de Santos. Ainda assim, em 2022, segundo o Instituto Trata Brasil, Santos foi considerada a cidade com o melhor e mais abrangente saneamento básico do país, estudo que leva em conta somente as moradias regulares e oficializadas da cidade.
Desde os anos 90, há vários projetos que tratam da falta de direitos básicos na comunidade de palafitas, como o Projeto de Urbanização da Favela do Dique da Vila Gilda (1994) e o Projeto Parque Palafitas (2022), mas a maioria de seus moradores ainda convive, diariamente, com a falta de saneamento básico e precária coleta de lixo.
Não faltam técnicas urbanísticas para solucionar esses problemas sociais. A professora explica que “áreas periféricas são territórios que têm mais dificuldade de acesso por sua organização irregular. Não é porque não tem uma condição técnica para isso, é muito mais por uma razão política-institucional”.
Ou seja, não faltam engenheiros, arquitetos, construtores ou políticos; o que falta é a combinação de recursos com um olhar atento para a população mais vulnerável, concretizando políticas públicas sustentáveis e que abranjam todas as áreas da cidade para fazer uma gestão de águas mais responsável e popular.
Medidas sustentáveis e combinadas
O sistema de canais também não foi pensado para uma funcionalidade a longo prazo. Com mais de cem anos desde a construção do primeiro canal, hoje já aparecem os problemas que não foram pensados no século passado.
Cristina relata que é comum conviver com o transbordamento das águas dos canais. “Quando a maré está muito alta, quando coincide a lua cheia com maré alta, aí os canais enchem, quando dá uma chuva muito intensa também.”
Segundo Karin, a tendência é o aumento de soluções “verdes” combinadas com as soluções já existentes, como drenagem com canais menores, infiltração com várias praças, parques e áreas verdes distribuídas.
“Combinar soluções aumenta a sua redundância e isso é benéfico, tanto no contexto de resiliência urbana quanto para realmente não depender de uma solução única e trabalhar com soluções baseadas na natureza, que são certos recursos naturais que podem ajudar nesse processo também”, explica a professora.
Autora: Isabel Briskievicz Teixeira.
Fonte: Jornalismo Júnior/USP.