“Não posso calar a boca”: 30 anos depois, sobrevivente do Carandiru relembra massacre

Massacre do Carandiru completou 30 anos em dezembro de 2022. Em entrevista, Maurício Monteiro, sobrevivente da ação da PMESP, relembra episódio e dia a dia na casa de detenção.

Maurício Monteiro é um dos sobreviventes da maior chacina do sistema prisional brasileiro. Preso em 1990, o homem de 53 anos vivenciou a ação da Tropa de Choque da PMESP que tirou a vida de centenas de detentos do Pavilhão 9 da Casa de Detenção, na Zona Norte da capital paulista. Até hoje, o Carandiru é o maior massacre em penitenciárias brasileiras sem punição aos responsáveis.

Maurício concedeu entrevista à ESQUINAS e revelou que procura estar sempre disponível para dar atenção a aqueles que querem ouvir sua história. Como forma de atingir esse objetivo, ele criou o canal Prisioneiro 84.901 , no qual conta com mais de cinco mil inscritos. A iniciativa foi nomeada a partir do número de entrada de Monteiro no sistema prisional.

Em seus vídeos, ele aborda assuntos ligados ao cotidiano dos presos, como fugas, feminicídio, religião, visitas, drogas, organização dos pavilhões e ao seu processo de ressocialização.

UM NOVO RECOMEÇO

Mauricio Monteiro pensava que nunca ia sair. Da ventana do pavilhão 9, local em que cumpriu pena, olhava para o metrô passando da estação de Carandiru e se perguntava “será que eu vou chegar lá?”. Após o massacre, a sua estadia se prolongou por mais 14 anos. Hoje, o ex-detento é formado em Gestão Ambiental pela FMU, diretor do IREC, Instituto Resgata Cidadão, e instrutor de boxe.

No memorial do Carandiru, localizado no Parque da Juventude, na Zona Norte de São Paulo, Maurício realiza diversas intervenções para conscientizar e fazer a sociedade não esquecer, lutando contra o pagamento promovido pelo Estado. “No filme fala de um jeito, na mídia de outro. Eu acho que o meu papel é trazer essa  realidade para as pessoas, não pintar como bonitinho, porque não foi”, explica.

No dia 18 de novembro , ele e o grupo Cia dxs Terroristas, realizaram a emblemática ação “Pátria Amada ou Nossa Bandeira Sempre Foi Vermelha de Sangue”, em que tinta vermelha manchava uma gigante bandeira do Brasil e as pessoas, com blusas brancas, passavam seu corpo.

O seu novo começo é repleto de resistência e luta. “A única coisa que eu tenho é estar vivo e não posso calar a boca”, diz Maurício, sobrevivente do massacre.

Contemplada pela 38ª edição da Lei de Fomento ao Teatro da Secretaria da Cultura de São Paulo, essa intervenção integra o projeto Fractos Corpografados: Vicissitudes de uma teatralidade fractal. Maurício diz que não sabe o que sentiu dessa vez ao participar dessa forte performance.https://www.instagram.com/p/CktJOVtu8EA/embed/captioned/?cr=1&v=14&wp=540&rd=https%3A%2F%2Frevistaesquinas.casperlibero.edu.br&rp=%2Fpolitica%2Fdireitos-humanos%2Fnao-posso-calar-a-boca-30-anos-depois-sobrevivente-do-carandiru-relembra-massacre%2F#%7B%22ci%22%3A0%2C%22os%22%3A939.2999999523163%2C%22ls%22%3A515.1999999284744%2C%22le%22%3A936.2999999523163%7D

RESSOCIALIZAÇÃO

A Lei de Execução Penal garante condições favoráveis para a reintegração social do condenado, preservando sua integridade física, moral e social, sendo um dos objetivos da execução da pena a ser realizada pelo Estado. “O objetivo da lei é o de conferir uma série de direitos sociais ao condenado, podendo assim possibilitar não apenas o seu isolamento e a retribuição ao mal por ele causado, mas também a preservação de uma parcela mínima de sua dignidade e a manutenção de indispensáveis relações sociais com a sociedade”, explicita o artigo “A execução penal e a ressocialização do preso” de Samuel Silva Basilio.

A realidade brasileira destoa da ideia no papel. Pesquisa do IPEA mapeou algumas penitenciárias e relataram que as atividades têm mais presença simbólica do que efetivas, uma vez que os funcionários alegaram falta de estrutura física e humana para a implementação e o número de vagas para as ações não cobrem a demanda.

Relatório prévio, divulgado em 17 de novembro, realizado pelo Departamento Penitenciário Nacional em parceria com a Universidade Federal de Pernambuco mostra que a reincidência, retorno do preso ao sistema penitenciário, no primeiro ano é em torno de 21%, progredindo até uma taxa de 38,9% após 5 anos. Os dados também são alarmantes quando se fala em empregabilidade e educação. Levantamento realizado pelo G1 mostra que menos de 1 em cada 5 presos trabalham e 1 em cada 8 estudam, evidenciando a falha na ressocialização do apenado no Brasil.

“O segredo é desvincular o pensamento. É ter uma ocupação diária”. Frase que estampa a seção Trabalho na parede do memorial Carandiru mostra a importância de ações como as previstas por lei. Maurício conta que na Casa de Detenção existia um setor “empresa” em que os detentos faziam pipas de forma remunerada, mesmo que o pagamento fosse baixo, e depois de 3 dias trabalhados ganhavam 1 dia de remissão. “Todo dia você abre as portas pra arejar a cabeça de novo, passar seu dia, né, não no tormento…”, escreve Jorge Mestre ao lado das pipas no cenário em que o sobrevivente ao massacre do Carandiru trabalha.

“Nesse momento que estamos conversando aqui, está tendo um massacre também, porque a gente entende que o massacre do Estado vem só quando ele coloca a polícia para matar, mas, a omissão na saúde e em outros atendimentos também provocam massacres”, conclui Maurício, denunciando o descaso do Estado ao sistema penitenciário.

O DIA DO MASSACRE

Em 2 de Outubro de 1992, ocorreu o episódio que ficou marcado como o Massacre do Carandiru. O estado de São Paulo afirmdeixando 111 detentos mortos, segundo o Estado de São Paulo. Sobre o intuito de conter uma rebelião no Pavilhão 9, a Polícia Militar interviu entrando na Casa de Detenção armada e a tiros, causando mortes em massa. Maurício afirma que o que aconteceu naquele dia não é a história que o Estado alega. “O que aconteceu realmente é muito diferente. Foi a maior chacina dentro de um presídio no Brasil, uma das maiores do Mundo”.

Segundo Maurício não houve rebelião naquele dia, mas uma briga por droga entre dois detentos, que logo foi apaziguada. Maurício conta que a maconha era consumida pelos presos devido ao seu efeito calmante a curto prazo. “Dois presos que moravam no segundo andar discutiram por conta de droga. Um deles acabou sacando uma faca para agredir o outro, só que acabou pegando de raspão. Os funcionários logo subiram e levaram os dois. Foi isso, aí acabou”.

Devido o tumulto após a confusão, os seguranças retornaram ao pavilhão para fechar as celas. “Naquela hora eu estava na minha cela fazendo faca e destilando cachaça. Eu saí e quando chegamos na escada, vimos os seguranças subindo para trancar”. Mauricio recorda que, como ainda não era o horário de tranca, alguns presos debateram com os seguranças chegando a agredi-los, “Ele [detento] deu um soco. O policial disse que aquilo ia dar repercussão. Eu falei que era só mandar o cara para o castigo e já era”. Tanto o agressor, quanto os demais que estavam juntos, deixaram os policiais agredidos retornarem à base, o que Monteiro acredita ter sido um erro, “Tinha que ter feito os seguranças de refém sim”.

Como a tranca havia sido mantida,  minutos mais tarde os detentos começaram a se alinhar para terem suas celas fechadas. Foi nesse momento que todos ouviram o helicóptero da polícia, “Eu já na hora senti um mal pressentimento”. Logo, a Polícia Militar, seguida pela Rota, começou a entrar na Casa de Detenção e a espalhar-se pelo Pavilhão. “Ao contrário do que o filme (Carandiru: O Filme) mostrou, não houve conversa. Os caras da Rota já entraram dando tiros. Quem eles fossem encontrando, eles iam matando”. Mauricio afirma ter escutado o som da metralhadora, mas acreditava que as balas usadas pelos policiais eram de festim, munição parecida com a de borracha, mas que não leva a óbito.

Ao subirem para o andar em que morava, Monteiro conta que os policiais já chegaram atirando, “Eu estava atrás da porta esperando a tranca quando os policiais chegaram. Eles deram um tiro que pegou o cara que estava no fim do corredor. O cara escorregou na parede igual uma sanfona. Era sangue para todo lado”. Mauricio tentou esconder-se atrás da cortina do banheiro de sua cela, mas logo a Rota o encontrou. “O policial engatilhou a arma na minha cara. Ali, eu só consegui pensar “morri”. Bem nessa hora, apareceu um tenente, um abençoado, anjo de Deus mesmo, que não deixou o cara me matar. Aí o policial tirou a arma da minha cara e saiu”.

Segundo Maurício, esse mesmo homem que ele acredita ser um tenente, entrou na cela e aconselhou Monteiro e os demais presos, “O negócio é o seguinte: estou fazendo o que eu posso. Na hora que vocês saírem, vocês colocam a mão na cabeça e olha para o chão. Se olhar para os policiais, vocês vão morrer”. Até o momento que estavam na cela, Mauricio diz que não tinha noção da quantidade das mortes ocorridas.

Ao redor da escada, usada para descer ao pátio em que os policiais estavam concentrando os detentos, o Choque formou um corredor polonês. Maurício lembra que nesse momento viu cachorros do Choque com órgãos sexuais em suas bocas e detentos sendo esfaqueados com Baionetas, “O policial deu uma facada no peito de um cara. Conforme ele foi escorregando na escada, a faca foi atravessando o corpo dele até chegar do outro lado”.

Já na concentração, em que a famosa foto em que aparecem os presos sentados no pátio com as cabeças baixas e mãos nas costas, os policiais começaram a separar os feridos dos demais. “Os policiais levavam os feridos para os setores (salas utilizadas como locais religiosos pelos presos). A gente só ouvia o “tá tá tá tá”. Quando ele perguntou quem mais estava ferido, que os outros já haviam sido “curados”, eu na hora entendi que foram todos assassinados”.

Após o término da operação, os detentos foram recolhidos de volta às celas para que a limpeza do pavilhão fosse feita. De madrugada, Maurício conta que ainda havia cadáveres no chão. “A mídia fala de um jeito, o filme de outro. E o que aconteceu na verdade, é muito diferente. O meu papel é trazer essa realidade para as pessoas, não é pintar “bonitinho” porque não foi”. “A gente tem que entender que aquelas pessoas que morreram estavam pagando pena. O Estado tinha obrigação de reinserir aquelas pessoas na sociedade, porque nós pagamos para isso. Por isso, o Estado não tinha que ter feito o que fez”.

A VIDA NO CARANDIRU

Durante 16 anos preso na Casa de Detenção de São Paulo, Maurício relata alguns funcionamentos e acontecimentos vivenciados durante sua época na penitenciária. Ele descreve como era constituída a Casa de Detenção e como era a divisão dos diversos pavilhões ao redor do presídio.

A princípio, o pavilhão 8 era o mais tranquilo dos demais, por conta dos presos que já haviam passado pela detenção anteriormente. De modo contrário, o pavilhão 9, onde ocorreu o massacre, era um local em que, em questão de um dia, 2 ou 3 pessoas eram mortas. “Se fosse entrar nessa área, eram dois, três que morriam. Agora, outro motivo de morte recorrente, era por meio de  doenças, que morriam três, até quatro, pessoas por dia”, relata Maurício. Da mesma forma que o pavilhão 9 era violento, o pavilhão 5 era o local em que havia muitas desavenças, seja por motivos de ‘caguetagem’ (delação) ou confusões generalizadas.

O centro da Casa de Detenção era chamado de Pavilhão 6, onde geralmente moravam os estrangeiros. Neste mesmo pavilhão era localizada a diretoria. Por fim, Maurício expõe o pavilhão 4, o lugar em que a entrevista estava sendo feita. “Aqui onde estamos era o Pavilhão 4, o pavilhão médico onde era feito o atendimento de todo o presídio. Portanto, morava somente quem trabalhava nos postos médicos, como os enfermeiros”.

Em relação às formas de união e proximidade na casa de detenção, Maurício afirma que naquela época não havia crime organizado como hoje, com uma ou duas facções que dominam os presídios, mas sim diversas quadrilhas de diferentes zonas. “Naquela época existiam várias quadrilhas, que era chamada de família, desse modo, reunia o pessoal da Zona Leste, Zona Sul, Zona Norte. Então, as pessoas se uniam e acabavam morando juntos. É como se um protegesse o outro”, completa Monteiro.

Maurício comenta sobre a lotação do local e compara a Casa de Detenção a um país dentro da cidade de São Paulo, onde, diariamente, a troca de informações entre as pessoas era de suma relevância, por existir diferentes costumes e comportamentos nos indivíduos. As gírias e normas eram, de fato, muito peculiares no sistema prisional.

“Estamos falando de uma população de 3.000 presos só no Pavilhão 9. A população chegava a 7.000 presos em toda a Casa de Detenção, ou seja, é maior do que muitas cidades que a gente nota”, diz Maurício. “Entende-se a Casa de Detenção de São Paulo, como se fosse um país, em que cada pavilhão é um estado e, cada estado constituída por uma subdivisão geográfica e cultural. Por exemplo, as pessoas chegavam falando de uma maneira devido a sua origem e em pouco tempo, mudava para os pavilhões onde conseguia se encontrar”, completa.

Ele explica também, como a rotina dos presos, nessa época, era equilibrada com horários adequados e pertinentes, porém muito movimentada, já que, ao todo, eram mais de 3.000 presos. “O detento era solto às 8h, quando os funcionários abriam todas as celas e soltavam todo mundo. Nesse momento, eles possuíam o horário do sol, que era das 8h até às 12h e novamente das 13h às 16h. Logo em seguida, os presos voltavam para as suas celas e permanecia somente a faxina, que eram aproximadamente 50/60 presos que exerciam a função de limpar os pavilhões”, finaliza o sobrevivente do Carandiru.

POLÍTICA CARCERÁRIA BRASILEIRA PÓS-CARANDIRU

O massacre do Carandiru completa 30 anos e imagens chocantes de casos semelhantes, volta e meia, ressurgem na mídia. Aparentemente, no caso do sistema prisional, a máxima ‘lembrar para não repetir‘ parece não funcionar. As condições de superlotação, brutalidade policial e violação de direitos humanos, indicadas como causadoras diretas e indiretas do massacre do Carandiru, persistem em grande parte das prisões brasileiras.

Da mesma maneira, as tragédias. Desde o episódio na Casa de Detenção de São Paulo, em 1992, vários massacres ocorreram em presídios brasileiros, sob a tutela do Estado. Em 2019, 57 presos morreram no presídio de Altamira, no Pará. Em janeiro de 2017, ocorreram 69 óbitos em chacinas subsequentes em prisões no Amazonas, 33 em Roraima e 26 no Rio Grande do Norte.

Em 2010, 18 presos morreram no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, no Maranhão. Em 2006, 34 na Casa de Custódia de Benfica no Rio de Janeiro. Em 2002, 27 morreram na prisão do Urso Branco em Rondônia.

Desde o ano do massacre, a população encarcerada brasileira cresceu 7 vezes, chegando a 837.443 pessoas em 2022, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen). São 661.915 detidos em celas e 175.528 em prisão domiciliar.

A superlotação também aumentou. Das 1.381 unidades prisionais, 997 têm mais de 100% da capacidade ocupada. Outras 276 estão com ocupação superior a 200%. O déficit é de aproximadamente 212 mil vagas.

O sistema carcerário brasileiro é bastante complexo e são muitos os fatores que explicam a sua conjuntura atual, bem como a manutenção de condições absurdas e desumanas, ao longo dos anos. Dentre eles, especialistas apontam para a Lei de Drogas de 2006 e para o grande contingente de presos provisórios como aspectos determinantes.

Lei de Drogas de 2006 pretendeu aumentar a pena para traficantes de drogas e diminuir para usuários. E, de fato, ela aumentou a pena mínima por tráfico de 3 para 5 anos. No entanto, ela não prevê critérios bem definidos para a diferenciação entre usuários e traficantes.

O percentual de presos condenados por tráfico de drogas aumentou de 14% em 2005, antes da aprovação da lei, para 27, 4 % em 2019. Segundo pesquisadores, a legislação contribui para o aprisionamento em massa de jovens pobres, majoritariamente, pretos ou pardos, que, na maioria dos casos, portam pequenas quantidades de narcóticos, ao invés de desmantelar grandes esquemas de tráfico ou prender os chefes do crime organizado. Em relação aos presos provisórios, ainda não condenados, eles representam, hoje, aproximadamente 30% da população carcerária brasileira.

Autoras: Adriana Peraita, Marién Ramos, Mariana Letizio, Mariana do Patrocínio e Mariana Suzuki.

Fonte: Cásper Líbero.