A brasilidade presente na tradução de trilhas sonoras do cinema como forma de representação e aproximação do público à própria cultura.
A música tem uma enorme função nos filmes, principalmente nos musicais. Ela conduz o público e continua a contar a história com um diferencial. Ela aproxima as gerações que um dia foram tocadas por aqueles versos das que os escutam pela primeira vez hoje. Só que, se a maior parte dos filmes musicais consumidos no Brasil são importados da língua inglesa, como essa conexão é estabelecida quando apenas 5% dos brasileiros entende inglês? É aí que entra a importância da tradução e adaptação de trilhas sonoras no cinema. Saber cantar uma música e entender o que ela está dizendo é extremamente importante para a compreensão e sucesso de um filme musical, mesmo que ele seja infantil.
Não é à toa que filmes como Toy Story (1990), Frozen (2013) e O Rei Leão (The Lion King, 1992) foram eternizados por suas respectivas trilhas sonoras, que estão na ponta da língua de brasileiros até hoje, como mostram o uso das mesmas para a criação de vídeos nas redes sociais e, até mesmo, incorporações em novas músicas.https://www.youtube.com/embed/ydQ1OuNvMEw?feature=oembed
O cantor das canções de Toy Story , Zé da Viola, conversou em entrevista ao Cinéfilos sobre a importância do diálogo entre gerações e do seu papel de representar o Brasil com uma trilha atemporal: “[Toy Story] é um filme projetado com uma tradução brasileira muito boa mesmo. Esse filme é uma mensagem não só representativa com os adultos e com as crianças, como com as crianças que estão vindo agora”. A voz por trás das músicas Amigo Estou Aqui, Estranho Demais para Mim e Voar Não Vou Nunca Mais, ao ser questionada sobre cantar em inglês ou português, afirmou preferir o seu idioma, por ser muito mais interessante para as pessoas que não falam inglês. Ele também contou que, ao mesmo tempo que maravilhosa, a experiência de cantar essas músicas foi muito fácil, pois ele só precisou interpretar e cantar a letra já traduzida.
Os responsáveis pelo trabalho de tradução de trilhas sonoras são chamados de versionistas, como Mariana Elisabetsky, versionista oficial da Disney e da Netflix. Em entrevista ao Cinéfilos, ela afirmou: “As músicas dentro de um filme musical são dramaturgia, elas estão contando histórias… Quando você não adapta as canções, a criança vai entender parcialmente aquele filme. E os adultos que não entendem inglês também acabam ficando de fora”.
Tamanha importância está no diálogo com o público, que é impulsionado quando as trilhas sonoras estão em seu próprio idioma. Isso pode levar ao efeito chiclete de músicas, no qual elas “grudam” na mente do público, como no recente sucesso Não Falamos do Bruno, do filme Encanto (2021), que viralizou não só no Brasil, como no mundo. Essa aproximação também atinge outros efeitos, como a conexão emocional, na qual palavras em português dialogam diretamente com os brasileiros que estejam assistindo. Em entrevista ao Cinéfilos, Bruna, de 16 anos, contou que, ao assistir o filme Viva: A Vida é uma Festa (Coco, 2017) com sua família, na cena da música de Miguel para Inês, ela olhou para seus pais, seus tios e sua avó, e não havia ninguém sem lágrimas nos olhos, inclusive ela.
Como cantar histórias no Brasil
Conhecido por sua variedade cultural e regional, o Brasil é um grande representante de diversidade em vários aspectos, principalmente no idioma, seja por um sotaque nordestino ou uma gíria paulista. Na tradução e adaptação de trilhas sonoras, isso também precisa ser levado em conta, pois pode gerar muitas divergências, como explica Elisabetsky: “O personagem é do interior da Inglaterra, a gente vai por o que? Ele mineiro? Ele com um sotaque meio caipira, da roça? É tão delicada essa parte”.
Nesse processo, é preciso dialogar com todas as variações e costumes no Brasil, uma vez que é a mesma versão do filme que será transmitida para todo o país e, segundo a versionista, o caminho escolhido para tentar aproximar a todos do filme é a neutralidade. “A gente acaba ficando em um neutro. Aí você vem me perguntar o que é neutro? Também é bem questionável. Eu sou paulista paulistana, e acabo ficando um pouco nas referências daqui. Eu escuto às vezes umas piadas e falo ‘super carioca isso’. Imagina no nordeste, que não é nunca contemplado em nada”, ressalta a roteirista.
Português x Inglês
Uma das principais diferenças das duas línguas é que, enquanto o português é muito prolixo, o inglês é sintético, ou seja, no idioma do Brasil é preciso muito mais palavras e sílabas para dizer o que o inglês consegue em poucas.
Para Elisabetsky, isso dificulta o processo de traduzir e adaptar canções, as quais ela ressaltou que raramente ficam no sentido literal da original, e exemplificou a comparação com sua recente versão em Mulan (2021): “Entrou uma música nova que chama Loyal Brave and True, que é a essência do filme, porque é o que está cravado na espada dela. Daí pensa: loyal tem duas sílabas, brave tem uma e true tem uma. A primeira pergunta que eu fiz para o povo da disney: Como vocês vão traduzir isso no filme? Tipo, brave pode ser corajoso, bravo, valente, pode ser um monte de coisa. E aí eles escolheram lealdade, verdade e coragem. Então tinha loyal, brave e true, com quatro sílabas a gente já matava as virtudes. Aí tem le-al-da-de, a primeira já mata as quatro [sílabas] que a gente tinha. Verdade, mais três, e coragem, mais três. Tá entendendo o nível da encrenca?”. A cantora explicou que, neste caso, foi preciso desconstruir toda a música para poder distribuir as virtudes pelas estrofes, sem manter a literalidade, mas englobando o cerne da canção.
Na música Eu Nada Seria Se Não Fosse Você, do filme Monstros S.A. (Monsters Inc., 2001) é possível analisar várias divergências na letra original, na tradução literal e na adaptação para o português. Um verso original da canção diz: “I’d live in a penthouse, in a room with a view”. A tradução literal seria: “Eu viveria em uma cobertura, em um quarto com vista”. E na versão brasileira ficou: “Morava bem chique, num solar ou mansão”. Essa mudança acontece devido aos diversos aspectos no processo de traduzir e adaptar as músicas para a animação, como explica a atriz: “O dever do versionista e do tradutor, primeiro, é manter o sentido, aí também tem que fazer dar certo o esquema de rimas, o de notas, a prosódia, a cantabilidade, mas o sentido realmente tem que ser o guia”.
Na mesma canção, ainda é possível analisar nos versos a substituição de “I´m green with it”, gíria do inglês que expressa inveja, por “maior olho grande”, gíria do idioma brasileiro de significado semelhante. Essa troca é outra porta de entrada para características da cultura brasileira, de modo que, ao escutar as canções, além de na própria língua, como também com trejeitos que só os brasileiros conhecem, o público é atingido de maneira pessoal. O uso desses elementos que representam e aproximam o público da história, pode dar a sensação de que a música foi escrita em português, o que, segundo Elisabetsky, é o melhor elogio que um versionista pode receber. Ela também ressaltou que é preciso cuidado para não usar trejeitos muito atuais, pois, como o cinema é eterno, eles podem ficar datados.
Apesar de o processo por trás das músicas, desde a tradução de trilhas sonoras até a interpretação, ainda ser um pouco desconhecido, Zé da Viola e Elisabetsky ressaltaram que recebem muitos agradecimentos e que seus trabalhos já alcançaram muito reconhecimento. “Eu recebo recados às vezes no meu site, ou às vezes, a pessoa acha meu email sei lá onde. E me manda pessoa x falando ‘olha, eu assisto Encanto 5 vezes por semana com a minha filha. E cara, eu estou te escrevendo só para te dizer que eu ouvi um pouco em inglês e o trabalho que você fez, é tão legal, tão lindo’. Eu fico super contente que realmente as pessoas estejam percebendo”, acrescentou a versionista.
O cantor também opinou acerca do papel de representação nas trilhas sonoras em português: “Eu considero um trabalho muito importante, não só para eles [público], como para mim. Levar a música brasileira, um cantor brasileiro cantando no filme de Toy Story, eu acho que é representativo”. Esse papel, apesar de ter limites, carrega, sim, um pouco do Brasil, contaram eles, além de ser essencial para que inúmeros brasileiros se reconheçam nas canções dos longas e, portanto, em suas histórias.
Autora: Mariana Krunfli.
Fonte: Jornalismo Júnior/USP.