Conheça o gênero de não-ficção que vem ganhando espaço nas estantes e telinhas dos brasileiros de todo o país.
Histórias de terror garantiram seu espaço na indústria do entretenimento com o decorrer dos anos. Produções cinematográficas como “O Exorcista”, “It: A Coisa” e franquias como “Invocação do Mal” possuem uma legião de fãs apaixonados pelo que histórias como essas proporcionam. Com isso, o consumo de um gênero alternativo ao terror, o true crime (ou crime real, em tradução livre), virou febre nos últimos anos e também temática para produção de conteúdo, não só multimídia, mas na esfera literária.
Diferentemente de filmes e livros que se baseiam, ou trazem casos de terror que mesclam ficção com realidade, o true crime aborda histórias de crimes verdadeiros. Com uma perspectiva de narrativa não ficcional, na intenção de contar e informar o público, tais produções dentro do gênero abordam ações e reações humanas diante de cenários repletos de perversidade, sem a possibilidade de um final feliz.
Podendo retratar uma versão múltipla dos fatos que envolvem o acontecimento, o true crime normalmente é relatado em formato jornalístico, com perfis de assassinos traçados, entrevistas e detalhes das investigações que já vieram à público.
“Eu acho que nós seres humanos sempre tivemos atração por crimes e os temas que os cercam”, opina Carol Moreira, formada em Comunicação Social, escritora do livro “Modus Operandi: Guia de True Crime” e apresentadora do podcast de mesmo nome. Carol comenta ainda que, com a ascensão da internet, os conteúdos sobre o gênero são mais vastos e o público passa a acessar mais esse tipo de conteúdo.
Para o psicanalista forense e perito Matheus de Oliveira Silva, o advento de séries relacionadas ao gênero fez com que o público passasse a se interessar por casos de crimes reais e buscasse cada vez mais conteúdos sobre, recorrendo inclusive à literatura. “É o que nós do campo das ciências forenses chamamos de Efeito CSI.”
O psicanalista explica por que esse gênero atrai o público, pela visão da psicologia, há tanto tempo “os crimes fazem parte da nossa vida, infelizmente, os crimes estão na nossa sociedade, na nossa história, sejamos nós meros espectadores, vítimas ou até mesmo criminosos”.
Matheus de Oliveira comenta que acompanhar casos de crimes reais desperta emoções diversas nos espectadores ou leitores, fazendo com que o público crie certa proximidade, porém a uma “distância segura” do perigo real. “Esse interesse que as pessoas buscam é no sentido de estar nesse meio sem ter envolvimento real com ele”, diz.
Para o psicanalista, o público procura entender as motivações dos crimes, as mentes dos criminosos e também utiliza os casos reais como alerta para suas próprias vidas. “Uma forma de alerta para evitar ser vítima de determinado crime a qualquer momento”, diz.
Os conteúdos true crime
A produção audiovisual em cinema, plataformas de streaming, podcasts e redes sociais sobre crimes reais está cada vez mais popular no Brasil. Serial killers, crimes em série, feminicídios, desaparecimentos e até assassinatos infantis são enigmas que emergem em uma sociedade violenta, o que impulsiona um consumo desenfreado na temática. Não é diferente com livros do gênero, que já possui editoras especializadas.
”Não é nossa culpa se enxergamos as marcas de sangue embaixo do tapete.”
A frase de uma das maiores produtoras literárias, a Darkside, explica como tal popularização refletiu no mercado de produções de livros. Ela é uma das editoras especializadas em livros de terror, crimes reais e suspense. É também a primeira dedicada exclusivamente aos nichos. Os fundadores, Christiano Menezes e Chico de Assis, tiveram essa ideia após sentirem falta de obras que apresentassem a qualidade esperada para fãs do gênero.
A Darkside logo viralizou nas redes sociais. Hoje, a editora trabalha com nove linhas editoriais distintas, entre elas a crime scene, em que aborda casos e biografias de assassinos em série, além de crimes notórios que ganharam a atenção da mídia e do público.
A escritora e psicanalista Paula Febbe é uma das autoras da Darkside. Em dezembro, ela publicou o livro “Vantagens que Encontrei na Morte do meu Pai” pela editora. Ela conta que na literatura o gênero true crime ainda não está consolidado, mas cresce cada vez mais entre os brasileiros. Febbe acredita que histórias originárias de outros países, como os Estados Unidos, são melhor recebidas pelo público, e isso se deve pelo distanciamento maior com os casos. Assim, se cria uma distância como se não fosse uma narrativa real, longe da realidade vivenciada no cotidiano.
A escritora explica que, para Freud, todas as pessoas têm algo perverso dentro de si, um lugar que gostam de acessar de alguma forma, mas que a sociedade não comporta. “Tem crescido e as pessoas têm tido mais acesso, e também mais acesso à perversão, acolher esse lado, que todos têm. A gente tem olhado para aquilo que é difícil, profundo, que nos incomoda. Por muito tempo o Brasil evitou de olhar”, afirma.
“Por causa dessa organização social, a gente esconde isso, finge que o mal é o outro. A partir do momento que isso vira algo nosso, se torna também nosso mais profundo desejo. Porque a gente não pode transpor isso na sociedade”, acrescenta Paula Febbe. Para ela, consumir esse tipo de conteúdo seria um lugar seguro para ter contato com esse lugar de perversão. E alerta:
“A gente não pode achar que é só o outro, é uma coisa que tem haver com todos nós, e a gente precisa de uma estrutura social pra segurar tudo isso, principalmente afetos.”
A banalização e a glamourização das histórias de true crime são algumas das preocupações relatadas por quem narra esses enredos. Por isso, a escritora e psicanalista Paula Febbe acredita que deve haver responsabilidade ao contar essas histórias. Além disso, por também discutir a forma como a sociedade lida com patologias e problemas psicológicos e sociais, o gênero literário contribui para o debate acerca dessas questões.
O consumo de conteúdo relacionado a esse gênero em ascensão deve estar atrelado a uma visão crítica da realidade e do comportamento humano. O risco de criar uma espetacularização dos crimes e personagens reais não pode afastar o elemento que caracteriza o true crime: a realidade dos fatos.
True crime no mundo dos streamings
Atire a primeira pedra quem nunca se interessou pela história de um crime brutal, mesmo que só por curiosidade. Querendo ou não, crimes atiçam a curiosidade do ser humano, em qualquer parte do mundo. Sabendo disso, as emissoras de televisão – que não são bobas nem nada – começaram, principalmente a partir da década de 80, a introduzir em suas programações conteúdos sensacionalistas envolvendo assassinatos, sangue e violência. Assim, no Brasil, nasceram programas como “Brasil Urgente, “Cidade Alerta”, “Linha Direta”, entre outros. Todos com o mesmo intuito: explorar – da pior forma, na maioria das vezes – os motivos de um crime.
Com o advento e a expansão dos serviços de streaming, os documentários e séries criminais, os true crimes, passaram a crescer exponencialmente e a ganhar cada vez mais o interesse do público. “Dahmer: Um Canibal Americano”, série lançada em 2022 e indicada a treze prêmios no Emmy do ano seguinte, por exemplo, ocupou o terceiro lugar entre as dez séries em inglês da Netflix mais assistidas no mundo em seus primeiros 28 dias de exibição, provando que o gênero, por mais macabro que possa parecer, atrai telespectadores curiosos.
No Brasil não é diferente. Produções como “O Caso Evandro”, da Globoplay, “Pacto Brutal – O Assassinato de Daniela Perez”, da HBO Max, “Em Nome de Deus”, também da Globoplay, entre outros, ganharam espaço nas telinhas de todo o país.
Com o lançamento de sua terceira, e última, temporada no último dia 14, a série da Netflix “Bom dia, Verônica”, que mistura thriller com uma pitada de true crime, já que aborda temas como violência contra a mulher, tráfico humano, entre outros, voltou aos Trending Topics de redes como o Twitter X. A trama, que acompanha as investigações macabras da policial Verônica Torres (Tainá Müller) é certamente a queridinha do público nacional. Baseada no livro de mesmo nome, escrito pelo best-seller de literatura policial Raphael Montes e pela criminóloga Ilana Casoy, a produção alcançou no último sábado (17) o primeiro lugar entre as mais assistidas da plataforma.
Devido ao sucesso do gênero entre o público as produções, tanto nacionais, quanto internacionais, de filmes e séries true crime tendem a crescer cada vez mais.
A ascensão na literatura
O true crime inicialmente era somente literário, tendo o objetivo de documentar e denunciar, criando alerta a população. Embora ainda persista, outras formas de mídia como os podcasts expandiram o tema, mas os livros continuam sendo considerados a porta de entrada para o gênero. A evolução do interesse pela literatura de crimes reais tem influência histórica no Brasil, um país o qual registra índices altos de criminalidade. Em 2021 foram 41,1 mil mortes violentas, dado divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Esse histórico concretiza que a criminalidade está presente no cotidiano de forma exacerbada, situação essa percebida por autores desse gênero como Paula Febbe:
“Aqui no Brasil, a gente está mais acostumado com uma violência mais exposta, dos noticiários por exemplo, os crimes já estavam dentro do nosso cotidiano, só não colocávamos esse nome. Talvez agora tenha sido renomeado, o público recebia de fora como se fosse uma ficção. A consequência do conhecimento que divulgado pela da cobertura televisiva e uma mídia ainda sensacionalista. O acesso que temos dos casos e investigações policiais gera curiosidade para saber mais detalhes sobre os crimes que trouxeram visibilidade para esse gênero”, afirma.
Paula explica também que a produção literária criou uma espécie de espaço seguro para quem deseja ter acesso a conteúdo de crimes reais sem ter envolvimento direto com o crime.
No entanto, o processo de criação de conteúdos (principalmente literário) sobre o tema requer certo preparo psicológico, o imaginário se choca com as imagens da realidade. Para os escritores, como Paula, o processo pode ser doloroso:
“Eu sofro bastante quando escrevo, porque me remete bastante a coisas que eu vi. Eu choro, eu fico mal, eu sofro. Mas acho que não é porque é difícil que a gente pode fingir que isso não existe. A gente não pode fechar os olhos para as coisas que são difíceis na sociedade, a gente precisa conversar, para pelo menos tentar resolver. É um sofrimento para quem faz, mas é necessário para a gente poder mudar a sociedade de alguma forma”, finaliza.
Autoras: Brunna Bitencourt, Gabriela Buzzo, Mariana Ribeiro, Milena Miranda e Victória Abreu.
Fonte: Cásper Líbero.