Conheça organizações que atendem necessidades básicas e dão suporte psicológico a detentas e ex-detentas no Brasil.
“Foi um encontro de sentimentos.” É como Daniela Vazquez Briceño — apelidada de Dani –, 24 anos, venezuelana, se refere à sua relação com a Enactus, coletivo-entidade da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) que dá apoio a mulheres no cárcere e egressas de penitenciárias femininas São Paulo. A jovem conheceu o coletivo em 2019, quando estava atrás das grades. Hoje, em liberdade, ainda mantém contato e recebe suporte da Enactus.
“É lindo ter pessoas que se interessam pela sua história e seus erros. É lindo que a Enactus queira ajudar a gente, fazer as pessoas lá dentro sentirem que têm importância”, afirma a ex-detenta.
O apoio que o coletivo deu a Dani foi praticamente o único suporte que a jovem recebeu enquanto cumpria sua pena. Os pais da egressa moram na Venezuela e, por isso, não mantiveram muito contato com ela durante sua permanência na prisão. Conta que, no período, já ficou quase dois meses sem receber notícias de sua família.
“No cárcere as mulheres contam com menos estrutura e ajuda, então essas organizações [como a Enactus] são fundamentais”, diz Ana Elisa Bechara, professora de direito penal da Faculdade de Direito da USP e orientadora da Enactus.
A docente afirma que muitos dos itens de higiene básica são fornecidos pelas famílias. Os visitantes costumam levar os chamados “kits-jumbo” para suas parentes encarceradas. Segundo ela, o fato de muitas não receberem visitas acaba fazendo com que não tenham acesso a esses produtos.
“[Isso] torna suas experiências dentro do cárcere ainda mais difíceis.”
Diferentemente de um homem detento, as mulheres detentas sofrem uma reprovação não só da família, o que é evidenciado pela falta de visitas –, mas também da sociedade. Isso ocorre, entre outros fatores, por elas frustrarem a expectativa social referente ao papel das mulheres, de serem recatadas, “do lar” e cuidadoras.
Para Bechara, a “delinquente quebra com um estereótipo da mulher, e, portanto, sofre uma reprovação social muito maior do que a do homem delinquente”. Além disso, as mulheres presas passam pela privação de seus direitos à maternidade por só poderem, geralmente, ficar com os filhos até os seis meses de idade dentro do cárcere.
A professora ressalta que o apoio social às mulheres delinquentes deixa a desejar tanto no período em que estão cumprindo as sentenças quanto após serem liberadas.
“Elas não têm família, não têm mais amizades, não têm mais onde trabalhar, acabam dependendo muito delas mesmas. Por isso que muitas das instituições que atuam nos presídios femininos trabalham com essa ideia de empoderar de alguma forma essas mulheres para garantir alguma independência depois que elas saem do cárcere.”
Dani, por sua vez, afirma que esse apoio é fundamental para a saída das mulheres da prisão. “Influencia muito ter alguém falando para você ‘olha, tem essa oportunidade’, ‘vamos fazer isso aqui’, ‘vamos ocupar a mente nisso’, sabe? Afeta muito, sim, você não ter uma pessoa ali te ajudando.”
A Enactus é uma associação internacional que se dedica a incentivar a ação empreendedora de jovens e, na Faculdade do Largo São Francisco. A atuação da entidade toma forma por meio de atividades dentro dos presídios femininos com projetos inclusivos e humanistas, a exemplo de projetos de capacitação artesanal, destaca Isadora Santos, integrante da Enactus.
O coletivo procura incentivar a possibilidade de desenvolvimento de negócios próprios, uma vez que as ex-detentas sentem uma grande dificuldade na busca por estabilidade financeira na vida pós-cárcere. “A gente sempre buscou dar esse protagonismo para que consigam aplicá-lo no que elas têm na vida real”, diz Santos.
Projetos como o Entrelaços e o Entrelinhas, ambos realizados pelas jovens participantes da associação, possuem também o objetivo de ajudar essas pessoas a se sentirem acolhidas. O primeiro deles teve início em 2019 dentro das penitenciárias, com a criação diversas atividades de integração e voltadas ao empreendedorismo. Uma delas consistia na elaboração de colares de corda por parte das carcerárias e na venda dos itens fora da prisão com a intermediação da entidade.
“Elas realmente precisavam desse dinheiro ou para usarem para elas mesmas lá dentro ou para enviar para a família aqui fora, porque a gente sabe que às vezes o marido abandona, tem filho e tudo mais”, explica Santos. “Então a nossa ideia era que o projeto trouxesse algum tipo de retorno para elas também.”
A pandemia do coronavírus, entre 2020 e 2023, dificultou o acesso da Entrelaços às penitenciárias. O contato direto que o projeto tinha com as detentas foi suspenso temporariamente, mas a organização fez campanhas de arrecadação de insumos de necessidade básica para elas.
A ex-detenta Dani fala também sobre o Entrelinhas, no qual aprende bordados e outras formas de artesanato promovidas pela entidade estudantil. Reestruturado na pandemia para continuar atendendo às necessidades dessas mulheres, o projeto era 100% online, gratuito e focado em egressas. “Eu ficava pensando: ‘Não, isso é coisa para pessoas velhas’, mas é lindo. É muito desestressante, e você fica com a mente ocupada”, comenta a venezuelana sobre os bordados, em entrevista concedida a Esquinas ainda no período pandêmico.
O projeto Entrelinhas toma forma, em parte, por meio de um sistema de mentoria entre seus integrantes e as ex-presidiárias participantes. Dani diz que o acompanhamento que recebe pela sua mentora é importante para que não se sinta abandonada como se sente em outros aspectos da sua vida. “Eles mostram que a gente pode pedir ajuda e que eles vão ajudar. Eu estou encantada com a Enactus e o trabalho que eles fazem. É um trabalho muito lindo, de verdade.”
A jovem também relembra os privilégios que teve em comparação a outras detentas devido à pandemia. Com o isolamento social, a presença dos coletivos nas penitenciárias ficou cada vez mais difícil. “Eu achei que estivesse doida, mas acho que as pessoas que vão sair agora vão sair mais doidas. Lá dentro eu pelo menos tinha a dança, a oportunidade de ver pessoas de fora (…).”
Além dessas atividades, Dani também possuía contato eventual com musicoterapeutas e psicólogos. Ela conta que o período de quarentena prejudicou não apenas a recepção de visitas para atividades coletivas, mas também a presença dos recursos de saúde para a estabilidade mental e física das detentas.
Uma das organizações que trabalham dentro dos cárcere é a Pastoral Carcerária, que, por ser uma divisão da Pastoral, segue as regras postuladas pelo Centro Nacional de Bispos do Brasil (CNBB) para conseguir acesso a um relevante número de cárceres presentes por todo o país. Ao se voluntariar, cada agente recebe um treinamento para saber como ajudar e apresentar diferentes frentes em seu trabalho, sendo uma delas a luta pelo direito das mulheres encarceradas.
Essas mulheres não sofrem apenas pela falta da estrutura das penitenciárias, mas de todo o sistema prisional. Lucas Gonçalves, um dos agentes da organização cristã, conta sobre a vivência de três mulheres transsexuais que foram transferidas para um ambiente carcerário masculino com mais de cem homens. “Foi algo extremamente doloroso porque elas eram vítimas de inúmeras espécies de violência dos agentes penitenciários e também de outras pessoas presas. Tiveram seus cabelos raspados, algo extremamente agressivo, tratamentos hormonais interrompidos, violados os próprios direitos de serem humanas ali, as suas próprias identidades atacadas.”
Para Dani, o caminho para a liberdade não é tão fácil como muitos pensam. Ela ressalta que, no seu caso, foi ainda mais difícil por ter voltado à vida social em uma época de confinamento devido à pandemia. Por isso, a jovem venezuelana se sentiu triste pela impossibilidade de ter novas experiências naquele período, como ir à faculdade, ver meus amigos, trabalhar etc.
Dani tem como sonho escrever um livro sobre as experiências ao longo de sua vida para que possa influenciar mais pessoas (e, em especial, jovens) a ficarem longe do mundo do crime. Enquanto não consegue a oportunidade de contar sua história, ela tenta encontrar empregos, mas gostaria de se envolver mais com arte e com o canto.
Na sua convivência com Marina, sua conselheira e membro da Enactus, a venezuelana contou como a aluna de direito a encorajou. “Uma das coisas que ela me falou foi para eu correr atrás dos meus sonhos. Ela falou para mim que iria procurar uma editora e iria me ajudar. Essa parceria é linda. É lindo você ter uma pessoa que quer te ajudar a realizar seus sonhos e a ter esperanças de que tudo vai melhorar.”
Durante sua atuação no Entrelaços, Santos, integrante do projeto, também contou um relato marcante de uma das presas participantes. “No final do projeto, ela disse: ‘Foi muito importante para mim participar disso. Eu estava muito mal, sem perspectiva nenhuma, e vocês me ajudaram a sair da depressão. Porque, agora, eu tenho um motivo para levantar de manhã e sair da minha cela, nem que seja só na quinta-feira’, o dia em que a gente tinha o encontro.”
Ao relacionar sua personalidade artística com a vontade de contar sua história, Dani passou a produzir poesias, as quais são postadas em suas redes sociais. Experiências como a da jovem nos lembram de que as mulheres sob custódia do sistema penitenciário, apesar de estarem privadas de sua liberdade, não estão privadas da sua capacidade de sonhar.
LIVRE LIVRE LIVRE
Daniela você é livre
libere-se das condutas aprendidas
libere-se do bloqueio mental
libere-se das cargas ancestrais
comece a viver
Daniela volta a escrever e cantar
você é um ser imenso por dentro
desperta sua luz
tem tantas capacidades escondidas
por acaso não as vê?
foste concebida com uma resiliência que te leva longe
sua imaginação voa
o que esperas? projeta na sua vida o que desejas
sinta, Daniela, está esperando que acordes?
deixe de distrações
olhe dentro de você
está cheia de amor
o papel de vítima já passou
você é livre de seus pensamentos, percepções e emoções negativas
você está livre, agora tem asas
voa voa voa
a terra está longe de ser seu chão
as galáxias ficam melhores com suas atitudes
as atitudes positivas
nos fazem ver que não existem limites
a alma venceu
você é livre.
Autores: Daniela Rabello Nabhan, Gabriela Tavolaro Guido, Larissa Albuquerque Galvão, Lethicia De Almeida Santos e Marcela Guimarães de Almeida.
Fonte: Cásper Líbero.