Há 53 anos, enquanto a repressão política aumentava, o futebol ocultava: como a seleção que encantou os brasileiros beneficiou o governo militar?
Enquanto a Seleção Brasileira, comandada por Pelé, goleava a Itália no Estádio Azteca, na final da Copa do Mundo de 1970, a censura, tortura e perseguição política se intensificavam no Brasil. Em consequência de uma ditadura civil-militar instaurada seis anos antes — e intensificada a partir de 1968 com o Ato Institucional n° 5 (AI-5) — , Emílio Garrastazu Médici, o então general-presidente de plantão, era um adversário mais temido que a Azzurra.
Com o sucesso dos atletas que encantaram o povo mas, sobretudo, pelo coroamento com o tricampeonato, o governo Médici foi fortalecido. O ufanismo, resultado do nacionalismo que tomou o coração dos então 90 milhões de brasileiros, serviu como propaganda aos militares. Inflamadas por músicas e publicidade, que acaloraram o espírito patriótico, as pessoas, ao comemorarem o título mundial, eram estimuladas a esquecer os verdadeiros problemas sociais e humanitários do período, na mesma medida em que eram iludidas por uma sensação de falso progresso. A vitória da Seleção foi, acima de tudo, uma vitória política do governo militar.
“Os slogans, incorporados com o tricampeonato, foram valiosos naquele momento da ditadura”, analisa Micael Guimarães, mestre em História do Futebol pela Universidade de São Paulo. “Discursivamente, a conquista conseguia encobrir o debate (que acontecia de forma clandestina) sobre a repressão, censura, violação aos direitos humanos, torturas, desaparecimentos, etc. A Copa de 1970 é um episódio que sintetiza bastante as relações entre o regime militar e o manuseio do futebol como instrumento de propaganda nesse período.”
Capas do Jornal do Brasil e d’O Povo, ambos do Rio de Janeiro, logo após a vitória da Copa de 70. (Reprodução/Acervo)
Capas do Jornal do Brasil e d’O Povo, ambos do Rio de Janeiro, logo após a vitória da Copa de 70. (Reprodução/Acervo)
“OS MILITARES SE APROVEITARAM DO TRIUNFO DA COPA”
Mussolini com a Itália no Mundial de 34. Videla com a Argentina em 78. Não é coincidência que futebol e política, especialmente em governos autoritários, sempre estiveram juntos. É verdade que todos os governantes querem ganhar um Mundial, contudo os ditadores precisam vencê-lo. Seja para aumentar o nacionalismo da população, se perpetuar mais tempo no poder ou mascarar crises internas, todo ditador conhece os benefícios que uma vitória de Copa do Mundo traz. Médici, mais do que conhecer, soube aproveitar o triunfo do Mundial de 1970 como poucos.
“Se a Seleção não tivesse vencido a Copa de 70, eu acho que isso não teria abalado politicamente a continuidade do regime militar, mas, sem dúvida os militares se aproveitaram desse triunfo fenomenal da Seleção e dessa comoção nacional”, analisa Guimarães. “Não é que a conquista da Copa fosse um projeto da ditadura, mas o fato dela acontecer foi muito aproveitado pela ditadura.”
As icônicas fotos do general erguendo a taça Jules Rimet e celebrando ao lado de alguns astros como Pelé e Carlos Alberto Torres, no retorno da delegação ao Brasil, de alguma forma, aproximaram Médici da população, ao mesmo tempo que colocavam a repressão do regime para debaixo do tapete. Durante aquele festejo, a sensação propagandeada pelos militares era de que “ninguém segurava esse país”.
Segundo o jornalista e fotógrafo Lemyr Martins, que mantinha uma relação de amizade com muitos atletas e acompanhou a Seleção diretamente do México para a revista Placar, “foi um jeito do governo faturar mais uma vez. Para nós [o povo], eles eram os heróis do futebol, mas para a ditadura eram os heróis do regime”.
“EU NÃO ENTENDO NADA DE POLÍTICA” COPA
Se por um lado a Seleção de Pelé, Tostão e companhia dava um show com a bola nos pés, fora das quatro linhas a discrição era predominante em quase todos os atletas do plantel. A controversa demissão do treinador assumidamente comunista João Saldanha e a chegada de Mário Jorge Lobo Zagallo, a dois meses da estreia do Brasil na Copa, foi pouco comentada pelos jogadores na época. A imprensa, por sua vez, era impossibilitada de contestar essa e outras decisões, em virtude da censura imposta pelo regime. Nas palavras de Saldanha, “era difícil tolerar um cara com longa trajetória no Partido Comunista Brasileiro ganhando força debaixo da bochecha deles”.
“Eu não entendo nada de política.” A curta frase de Clodoaldo, volante titular daquela Seleção, evidencia um dos maiores problemas dos jogadores da época: a alienação. Assim como o camisa 5, a maioria de seus companheiros também evitava declarações sobre política ou sobre o governo Médici.
“Nós não tínhamos qualquer tipo de conhecimento nesse sentido. Nenhuma vez eu tive conhecimento de qualquer conversa dos jogadores com o presidente Médici na época [antes do início da Copa]. Nunca uma Seleção esteve tão focada na preparação durante um período tão longo quanto a Seleção de 1970. Então não dava nem para pensar em outra coisa além de treinar. Nossa obrigação era treinar, se preparar, pensar na Copa, então nós não tínhamos outro pensamento envolvendo política”, acrescenta Clodoaldo.
Lemyr Martins, autor da célebre fotografia do soco no ar de Pelé, na estreia da seleção contra a Tchecoslováquia, sustenta a teoria de que os jogadores eram desestimulados a se posicionarem ou conversarem sobre política durante a competição: “Girava o boato que lá na Seleção havia um pacto de ninguém falar sobre política, nem o Piazza, nem o Carlos Alberto, que era o capitão, ninguém falava sobre política, falavam sobre futebol, que era uma maneira de não haver desentendimento. Não era medo, mas eles fizeram esse pacto de não falarem sobre política para não serem atingidos. Até porque havia jogadores favoráveis à ditadura, assim como no jornalismo, e tinha os não favoráveis, mas que não se expressavam. Tinha jogadores, como o Gérson, que não ligavam para política, parecia que eles estavam em outro planeta”.
“[A Copa do Mundo de 1970] foi a melhor arma da ditadura. Criou um clima de euforia: Brasil campeão do mundo. E campeão do mundo invicto, ganhando da Itália, ganhando de todo mundo.”
Lemyr Martins, jornalista
A exceção desse silencioso plantel era Eduardo Gonçalves de Andrade, mais conhecido como Tostão — apelido que o consagrou nacionalmente —, um dos poucos atletas que se manifestavam politicamente. A esquerda que imortalizou seus chutes era análoga ao seu posicionamento político. Tostão era crítico ferrenho da ditadura e dos abusos praticados pelo governo.
“Infelizmente, ainda não podemos agora dizer o que queremos porque estamos privados de muita coisa. Às vezes, a gente tem que ficar sujeito a coisas que vêm de cima, então a gente não pode dizer o que quer, o que pretende”, afirmou Tostão, em entrevista ao jornal “O Pasquim”, dias antes do Mundial, ao comentar sobre a censura do país. “O certo seria que todo mundo tivesse as suas ideias, falasse as suas ideias e mostrasse o que pensa, o que acha, e não a gente ficar numa coisa só e ficar sujeito a aceitar isso e não poder dizer mais nada, eu acho isso errado”, complementou o ex-camisa 9 da seleção.
Autores: Flávio Ferrari, Guilherme Loureiro, Leonardo Medina e Thiago Martins.
Fonte: Cásper Líbero.