Quase 30 anos de um plano Real

Conheça o caminho que levou o Brasil à engenharia econômica que driblou a hiperinflação em 1994.

Qualquer pessoa que viveu o final do século XX no Brasil nunca esquecerá os momentos turbulentos que acometeram a economia brasileira. Os preços dos produtos e serviços aumentando em ritmos cada vez mais acelerados, as prateleiras vazias, a correria nos supermercados no dia em que caía o salário. Tudo isso por conta de um fantasma que assombrou o povo brasileiro por alguns anos: a hiperinflação.

Wellington* tem 59 anos hoje, e lembra como era difícil a vida do trabalhador brasileiro: “Subia o preço de tudo, você comprava hoje e amanhã já estava mais caro. Foi uma das razões que fez eu trancar a matrícula na faculdade, todo mês a fatura subia e eu tinha que apresentar o ticket de pagamento para entrar”. Ele conta que a população tinha que arrumar sua estratégia para conseguir sobreviver, e neste momento valia tudo. “Tinha que correr no mercado procurar pechincha, promoção. Uma coisa que tinha também é agiotagem, tinha muito nessa época, pegava dinheiro emprestado com juros de 20%, 30% até 40% para poder pagar as dívidas”. 

A inflação no Brasil chegou a grandes níveis, cerca de 50% ao mês. Segundo o relato do professor de economia da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo (FEA-USP) Márcio Nakane, a inflação era calculada e divulgada diariamente no jornal Estado de São Pauloo EstadãoEsse era o tamanho do problema que o plano real superou, o professor de economia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Sidival Guidugli colocou como sendo “a maior engenharia econômica dos últimos 30 anos”.

Pessoas correndo na abertura das portas de um mercado, no começo dos anos 90 [Imagem: Reprodução/ YouTube TV Globo]

De onde veio o trem desenfreado da inflação?

A situação que se encontrava a inflação no Brasil às vésperas do plano real não surgiu de uma hora para a outra e a origem dela era motivo de discussão entre os economistas. Hoje sabe-se que a inflação brasileira era de caráter inercial, ou seja, um acúmulo de eventos do passado que fizeram com que a inflação aumentasse tão rapidamente, como um trem de carga que, ao alcançar certas velocidades, ficava cada vez mais difícil de parar. 

Quando a inflação aumenta, a população começa a procurar meios de se defender. Os comerciantes ajustam o preço pela inflação e,desta forma, os salários são obrigados a ser corrigidos. Tudo isso vira uma corrida desorganizada de reajustes e,desta forma, o trem fica cada vez mais veloz.

Segundo o professor Márcio, esse trem começou a acelerar na década de 70, durante o governo Geisel. Neste momento, o mundo inteiro passava por um momento de recessão por conta da crise do petróleo, mas o governo decidiu ir na contra-mão desta tendência. O presidente Geisel implementou o 2º plano nacional de desenvolvimento, com grandes obras na indústria, principalmente na área energética, e na infraestrutura. 

Tudo isso foi feito com investimentos externos a partir de empréstimos com bancos estrangeiros. Isso não seria um problema, pois essa dívida poderia ser paga a partir do retorno obtido com as obras feitas, se não ocorresse uma aumento da taxa de juros pelo Federal Reserve (FED, ou sistema de bancos centrais norte-americanos) que por consequência gerou um aumento do juros da dívida. Neste momento se instaurou, em toda América Latina, uma crise da dívida externa.

Com a agravação dessa crise o Brasil se tornou incapaz de pagar a dívida em sua totalidade, e a partir disso foi instaurada uma moratória técnica, que é uma pausa no pagamento da dívida pública. Isso fez com que o mercado externo perdesse  a confiança no mercado brasileiro e retirasse seus investimentos do país.

O trem da inflação já estava a todo vapor e começaram diferentes planos de diferentes governos para freá-lo, como o Plano Cruzado, Plano Verão, Plano Bresser, Plano Collor. Todos esses planos tinham estratégias ortodoxas, como o aumento de taxas de juros e controle de gastos públicos. 

Uma estratégia que foi usada em diferentes planos foi o congelamento de preços, que funcionava em um primeiro momento, mas nunca era o suficiente. Em cada novo plano, essa medida se tornava previsível, o que fazia com que ela se tornasse cada vez menos eficiente, pois a cada implementação os comerciantes já colocavam os preços muito altos e aumentavam eles a cada mês, para que quando que quando o congelamento viesse, eles estivessem bem colocados. Segundo o professor Sidival o congelamento de preços é “tratar o efeito e não a consequência, é como estar doente e tratar a febre ao invés da infecção”.

Algumas imagens desta época ficaram muito marcadas como as prateleiras dos supermercados vazias, porque com a manutenção do congelamento de preços a produção de bens de consumo começava a ficar injustificável economicamente para as empresas. 

Outra imagem marcante, é a caça aos bois, com o alto custo de produção de carne e simultaneamente o congelamento de preços, não valia a pena para os donos de cabeças de gado os matarem para vendê-los nos supermercados, então eles mantinham-os vivos. O presidente Sarney instaurou um projeto que tornava proibida a estocagem desses animais, os donos eram obrigados a matá-los e vendê-los. Inclusive o Governo Federal incentivou os cidadãos a fiscalizar os comerciantes para que eles não aumentassem os preços, esses passaram a ser chamados de fiscais do Sarney.

O presidente Fernando Collor tentou uma estratégia diferente do congelamento de preços. Muito questionado na época, ele confiscou a poupança e os investimentos de todos os brasileiros. A medida funcionou de partida, mas também não se sustentou a médio e longo prazo e acabou sendo um tiro no pé de Collor. Tudo isso custou muito capital político e posteriormente a cadeira da presidência. Wellington contou como foi esse episódio inesquecível: “Ele acabou com todo mundo, eu tinha amigo com 300 mil guardado na poupança e do dia para a noite ele perdeu tudo e nunca mais viu esse dinheiro”.

Gráfico da inflação pelo tempo, desde janeiro de 1985 a janeiro de 1999, imagem editada com apontamentos dos planos monetários [Imagem: Reprodução/www.bcb.gov.br]

Uma medida que, segundo dito pelo presidente Fernando Henrique a série Economia Brasileira – a historia por quem fez da TV Cultura, foi crucial para o posterior sucesso do plano real, mesmo que não intencionalmente, foi a abertura econômica feita nos governo do presidente Fernando Collor. “Se for consultar economistas sobre o governo do Collor, provavelmente esse é o único elogio que você irá ouvir”, diz o professor Nakane. Essa abertura consistia em uma redução das tarifas de importação, isso foi benéfico mais pelo fato de possibilitar que empresas brasileiras tivessem acesso a equipamentos e investimento estrangeiro, nem tanto pela possibilidade do povo comprar produtos importados. 

Para a professor de economia da Universidade de Campinas (Unicamp) Simone Does essa medida veio com um argumento liberal de que “Isso iria aumentar a competitividade da economia brasileira, porque ela teria que passar a concorrer os produtos fabricados no Brasil com os produtos importados”, mas nunca teve a intenção de controlar a inflação. 

Essa medida foi um dos preparativos do terreno para frear o trem hiperinflacionário.

O manobra econômica que retomou o controle da locomotiva

  No final da década de 80, foi feito o Plano Brady, um plano do governo dos Estados Unidos para negociar a dívida externa dos países latino americanos junto aos bancos privados internacionais. Isso reinseriu esses países no mercado internacional. Esse movimento, segundo a professora Simone, não foi um “gesto de bondade”, mas sim um “interesse dos Estados Unidos na globalização financeira, em reorganizar o sistema internacional para poder novamente enviar e receber capital”.

Com a dívida pública controlada e o país novamente no cenário internacional, o Ministro da Fazenda Fernando Henrique (FHC) junta um grupo de economistas que teriam a missão de elaborar uma estratégia para vencer a alta inflação. 

Em seu livro O plano real e outros ensaios, Gustavo Franco, um dos membros do grupo formado por FHC, explica que a moeda tem três funções básicas: a mais visível e imediata que é propiciar os pagamentos, outra é servir de unidade de conta, ou seja, registrar virtualmente valores que são negociados em contrato, e por último, servir como reserva de valor. 

O primeiro passo do plano real, foi a criação da URV (unidade real de valor), uma moeda virtual que seria responsável por cumprir apenas a segunda função da moeda, assim sendo o cruzeiro real responsável por continuar cumprindo as outras duas funções. Segundo o professor Sidival, “o cruzado real e a URV são duas faces da mesma moeda”.

O professor Marcio Nakane explicou que a URV veio com a função de organizar a corrida desorganizada de reajustes, em que, por exemplo, os preços nos supermercados eram reajustados diariamente, enquanto os aluguéis e os salários mensalmente. A URV teria a função de servir como referência para todos os contratos, preços e pagamentos. “Uma hiperinflação acaba quando todo mundo que está correndo junto para de correr. Quando se está assistindo um jogo de futebol no estádio e levanta da cadeira, o de trás também vai levantar para assistir, mas se todos levantarem ninguém conseguirá assistir, então precisa alguém falar para sentar todos juntos e ao mesmo tempo, pois se só um sentar, ou metade sentar, não vai dar certo. Esse elemento de coordenação coletiva que a URV proporcionou”, resumiu o professor.

No dia 1 de julho de 1994 o real entrou em circulação, substituindo tanto a URV quanto o cruzeiro real. Neste momento, o valor do câmbio do real para o dólar foi fixado pelo governo federal em 1 para 1, que juntamente com as medidas de abertura econômica feitas anteriormente, facilitou ao brasileiro a compra de produtos importados. Essa facilidade segurou os preços dos produtos nacionais baixos, por conta da concorrência com o exterior, pois caso o comerciante colocasse preços muito altos, o cliente poderia optar pelo produto importado. 

Esses movimentos de importação de produtos só foi possível por conta da renegociação da dívida externa e a inserção do Brasil no mercado internacional, estando novamente disponível para investimentos e a entrada de dólares que eram usados para fazer essas importações. Por essa série de motivos, o plano real não repetiu o insucesso de outros planos, como o desabastecimento.

Ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso segurando notas de um real [Imagem: reprodução/YouTube PSDB]

O preço a se pagar

Com a abertura econômica e a facilidade de importação, muitas empresas nacionais não aguentaram e acabaram quebrando. Mas por não ter relação com o plano, esse não foi o verdadeiro preço pago pelo controle da inflação. Para o professor Nakane e a professora Simone, o setor que realmente sofreu diretamente com o plano real foi o sistema financeiro, que lucrava muito com a inflação alta. 

Segundo os professores, esses altos lucros e o caos da economia brasileira mascarava a falta de organização dos bancos, que estavam tinham toda sua estrutura adaptada e esse estado de hiperinflação. Os bancos tinham muitas agências espalhadas por todo o país, para sustentar a alta circulação de moeda, pois, nesta época, era comum os clientes irem ao banco todos os dias sacar dinheiro que seria suficiente para aquele dia. Entre aqueles que o dinheiro sobre um pouco ao final do mês se popularizou o overnight (fundo de renda passiva com rendimento diário). Manter toda essa teia financeira é caro, e quando veio o plano real controlando a inflação, esses bancos quebraram, pois a moeda ja não circulava com tanta intensidade.

Diante deste cenário, o governo federal foi obrigado a criar políticas de contenção de danos e salvar esses bancos. O Programa e Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (Proer) foi um projeto que consistia na intervenção do banco central nesses bancos em situação complicada, o proprietário vendia seu banco, tinha seus bens penhorados e o banco central financiava a reestruturação desse banco. Segundo o professor Sidival, o Proer e o Proes (projeto semelhante ao Proer, mas aplicado aos bancos estaduais) proporcionaram uma estruturação forte do sistema financeiro que permitiu que ele passasse por crises seguintes.

Autor: Diogo Silva.

Fonte: Jornalismo Júnior/USP.