O indicador mais do que dobrou em 2021 e chegou aos níveis da década de 1980.
Um estudo publicado no dia 29 de abril desse ano, na Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil, trouxe enfoque para a situação crítica da mortalidade materna no país. Intitulada “Mortes maternas como desafio para a assistência obstétrica em tempos da Covid-19 no Brasil”, a análise aponta que a realidade sociopolítica brasileira foi muito impactante nos resultados, e até mais do que o fator de vulnerabilidade biológica das gestantes.
O autor é Raphael Guimarães, pesquisador em Saúde Pública na Fundação Oswaldo Cruz e líder do grupo de pesquisa LEXIS – Demografia, Saúde e Sociedade. Raphael concedeu entrevista à Jornalismo Júnior e contou um pouco mais sobre o processo de desenvolvimento da pesquisa e os desafios que enfrentou para realizá-la.
Em primeiro lugar, Raphael realça a questão da temporalidade dos dados. “Hoje, no Brasil, temos dados que consideramos ser de grande qualidade com relação à mortalidade. Só que isso requer um esforço, por parte dos níveis de gestão, […] de manter um certo fluxo, o que faz com que tenhamos uma defasagem no tempo”. Os dados analisados na pesquisa são de 2021, mas apenas agora que os resultados de 2022 se tornaram disponíveis.
O pesquisador ressalta que isso não diminui a importância do estudo, mas relativiza em quais cenários ele pode ser aplicado. Graças à existência de comitês de mortalidade materna no Brasil há alguns anos, assim como uma série histórica bem apurada desde 1996 – ano de criação do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e do Painel de Monitoramento da Mortalidade Materna -, foi possível perceber que a pandemia penalizou mais as mulheres do que a população geral.
“A mortalidade materna é um evento considerado raro. Então, sempre que uma gestante ou puérpera [até 60 dias pós-parto] morre, há uma investigação desse óbito, para verificar se ele aconteceu associado à gestação ou se foi uma doença aleatória. Isso facilita para a coleta de dados.” No caso de políticas públicas emergenciais, a defasagem dos dados é um problema, mas pensando em políticas a longo prazo, eles são essenciais para propor objetivos e planos de ação.
“Será que a gente em 2030 vai conseguir atingir a meta do desenvolvimento sustentável? Essa é a pergunta.”Raphael Guimarães
Raphael explica que outro empecilho é a fragilidade da contagem populacional no Brasil. A contagem é feita pelo IBGE, mas é o próprio Censo que costuma realizá-la, porque a grande maioria dos municípios brasileiros são muito pequenos. O último Censo, entretanto, ocorreu com uma defasagem de mais de dois anos, dificultando a tomada de decisões de políticas públicas. “A gente sabia muito mal, por exemplo, […] que uma medida necessária era planejar as atividades de vacinação prioritariamente para gestantes. Muitos municípios sequer sabiam quantas eram as suas mulheres em idade fértil, porque não tinham censo.”
Um dos parâmetros para a análise foi o excesso de mortalidade, um conceito demográfico calculado a partir da comparação entre o número de mortes em determinado período e o número esperado em condições normais. Em 2021, houve uma piora considerável no índice, tanto geral quanto de gestantes, devido ao aprofundamento das consequências do Covid-19 no Brasil, terminando o ano com números maiores que em 2020.
“No início, a gente falava muito sobre as ondas [períodos mais graves da pandemia], sobre achatar a curva [curvatura dos gráficos de casos], mas efetivamente o Brasil não teve ondas, porque não ficou uma curva bem marcada. […] houve um aumento da curva, que começou a cair, e, num certo ponto ainda no declínio, voltou a subir. Esse momento foi o início de 2021. Foi um cataclisma, aquele período onde tinha 4 mil, 5 mil mortes por dia, em que o serviço de saúde ficou colapsado”.
A meta global pautada na Agenda 2030 da Organização Mundial da Saúde (OMS) era reduzir a taxa de mortalidade para 70 a cada 100 mil nascidos vivos. Antes da pandemia, o Brasil vivia com um relativo conforto em relação a esse objetivo, oscilando por volta de 56 em 100 mil. Em 2020, a taxa chegou mais perto da fronteira aceitável. Já no ano seguinte, ela excedeu drasticamente, atingindo 110 em 100 mil, taxa registrada apenas nos anos 1980 – dez anos antes da instauração do Sistema Único de Saúde (SUS). “Em 2021, a gente catapultou para um patamar que era o dobro de antes da pandemia, colocando o Brasil numa zona muito crítica”.
Crise institucional
Segundo o artigo, o motivo principal para essa piora foi a atuação precária do Governo Federal. O negacionismo institucionalizado, incluindo a promoção de falsos medicamentos – como cloroquina -, somado ao atraso na compra de vacinas e ao ataque às políticas de distanciamento culminou em um cenário jamais antes vivido na sociedade brasileira. Raphael ainda ressalta o absurdismo na mudança constante de Ministros da Saúde durante a pandemia, incluindo um que admitia não saber nada sobre o SUS.
Além dos efeitos diretos desse período, a gestão dos serviços de saúde como um todo ficou fragilizada. O SUS precisou deslocar muitos recursos para o combate ao coronavírus, levando outras áreas a ficarem debilitadas. Os hospitais, sobrecarregados e com falta de profissionais, enfrentaram uma acentuação de problemas já existentes antes do Covid-19. Vários deles no ramo da obstetrícia: a rede de assistência ao parto e pós-parto e o acesso ao pré-natal foram dificultados, as filas de atendimento aumentaram e os leitos nos Centros de Terapia Intensiva (CTIs) não eram suficientes para atender a demanda de gestantes.
“Isso foi criando, para nossa sorte, uma remodelação do sistema de saúde, em que o Governo perde o protagonismo no Sistema Nacional de Saúde e os estados, principalmente, vão remodelando o fluxo assistencial para dar conta das suas realidades locais”. Ainda assim, o retrocesso experienciado com a pandemia foi muito maior do que o previsto.
Desigualdades
O Brasil é um país extremamente heterogêneo, que tem dificuldade para promover políticas que alcancem todas as regiões e perfis populacionais. Além disso, existe um preconceito instaurado não só na mentalidade do povo, mas também no sistema político. Para Raphael, esses são fatores importantes para a análise.
O efeito dos fatores de risco, comorbidades ou sintomas, quando associados à mortalidade materna, é marginal, ou seja, muito sutil. O que realmente fez diferença, de acordo com a pesquisa, foram os determinantes sociais. “A raça tinha muita relação com a mortalidade materna. A mortalidade materna foi maior que a mortalidade geral, e a mortalidade materna entre as pretas foi muito maior do que entre as brancas”.
Raphael complementa que a mortalidade materna na zona rural foi muito maior do que na zona urbana, e mulheres atendidas em hospitais do seu próprio município tiveram uma mortalidade menor do que aquelas moradoras de um certo município, mas que precisavam ser atendidas em outro.
A mortalidade materna é um indicador utilizado internacionalmente para avaliar o desenvolvimento socioeconômico, então, não por acaso, ele foi mais ressaltado do que os demais. “Definitivamente, a pandemia veio para mostrar a repercussão que a desigualdade social imprime nas questões de saúde e vice-versa. Da mesma forma que a pandemia foi marcada pela questão da desigualdade, ela também potencializou essa desigualdade em muitos cenários”.
Como agir
Os efeitos no sistema de saúde irão persistir por algum tempo, apesar da mudança na liderança do país e do apaziguamento da crise institucional. Existem novas exigências no cenário pós-pandemia que ameaçam reverter os ganhos históricos na redução da mortalidade materna e infantil. O que resta saber, afinal, é como impor essas necessidades ao poder público vigente e como melhorar a realidade de gestantes e puérperas.
Segundo Raphael, o trabalho de entrevista e divulgação midiática é essencial. “Eu fiz parte do grupo de pesquisadores do Observatório da Covid da Fiocruz. Foi uma fase difícil porque era muito trabalho, mas foi de muito aprendizado, e naquele momento, eu e muitos colegas reconhecemos o papel da comunicação social e do jornalismo para a divulgação científica. Há necessidade de tirarmos um pouco essa capa hermética em torno da ciência e tornar aquilo que fazemos, em termos de construção de conhecimento, alguma coisa […] palatável, traduzida para a população geral. […] Acho que da mesma forma que a gente torna a sociedade ciente do que está acontecendo, de algum modo, também tornamos o gestor.”
O pesquisador também conta sobre um evento marcante em sua carreira. Depois de uma polêmica na mídia sobre uma gestante que morreu, muitas pessoas acreditaram que a morte tinha sido provocada por um efeito da vacina. Isso prejudicou a vacinação das gestantes em larga escala. “Eu me lembro que tivemos um esforço adicional naquela época para poder mostrar a importância que tinha a vacinação. Fizemos análise de dados para mostrar em que momento da gravidez era desejado que se tomasse a vacina. E esse estudo […] foi levado para o Conselho Nacional de Saúde e teve uma repercussão positiva para retomar a vacinação das grávidas. O que a gente fez naquela época ajudou a reverter essa situação, e causou muita felicidade para nós, saber que estávamos conseguindo fazer a nossa base ser útil”.
Imagem de capa: Autor desconhecido/ Wikimedia Commons.
Autora: Gabriela Rocha Nangino.
Fonte: Jornalismo Júnior/USP.