As diversas nuances do primeiro samba brasileiro.
Em 27 de novembro de 1916, Ernesto dos Santos, conhecido artisticamente como Donga, entrava na Biblioteca Nacional com uma missão pouco banal: registrar oficialmente a música que receberia a alcunha de primeiro samba brasileiro. Fruto de uma composição coletiva na casa da Tia Ciata, a canção Pelo Telefone representou um marco na história da música popular e pautou o sucesso do samba, que, em pouco tempo, viria a se tornar um dos pilares da identidade brasileira.
Perseguição
Com a crise do café e a abolição em 1888, criou-se um expressivo fluxo de baianos para o Rio de Janeiro, então capital, em busca de melhores condições de vida. Esse enorme contingente de baianos negros — muitos deles adeptos a religiões afro-brasileiras — não ficou isento do racismo escancarado daquela sociedade que acabara de abolir a escravidão. O “embranquecimento” populacional era uma das principais pautas do Estado brasileiro na época e se manifestou por meio de diversos projetos que visavam a marginalização da população negra, como as reformas urbanas e as perseguições policiais.
Essas perseguições racistas logo tornaram-se institucionalizadas. Em 1890, apenas dois anos após a abolição, foi promulgada a lei dos vadios e capoeiras, que enquadrava como crime “Deixar de exercitar profissão, officio, ou qualquer mister em que ganhe a vida, não possuindo meios de subsistência e domicílio certo em que habite” ou “Fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem”, sujeito a pena de prisão entre 1 a 6 meses. O porte de instrumentos musicais também acarretava em punição, já que a música configurava como ócio e vadiagem. Essa lei logo se transformou em uma desculpa para perseguir abertamente a comunidade negra e, especialmente, os sambistas, que muitas vezes, não tinham ofício e frequentemente circulavam com instrumentos musicais.
África em miniatura
Em um ambiente tão hostil, as casas das Tias Baianas eram um símbolo de resistência. Moradoras da Pequena África — região carioca marcada pela presença afro-brasileira —, essas tias abriam suas residências para celebrar e cultivar a cultura negra, em especial o candomblé, em cerimônias repletas de música e batucadas. A casa Tia Ciata não era uma exceção: os eventos lá sediados reuniam grandes expoentes da música brasileira, como Sinhô, João da Baiana, Pixinguinha e Donga, e contavam com sessões de música coletiva, muitas vezes improvisadas. Em uma delas, nascia Pelo Telefone.
Com letra cativante e melodia envolvente, Pelo Telefone logo conquistou o Rio de Janeiro e protagonizou o carnaval do ano seguinte. Contudo, como toda obra de grande visibilidade, a música é alvo de uma série de polêmicas.
Primeiro…
Os avanços tecnológicos dos últimos anos permitiram uma pesquisa mais aprofundada sobre a história da música popular brasileira e elucidaram a origem do samba. Essas pesquisas recentes, por sua vez, revelaram a presença de outros sambas que foram gravados antes de Pelo Telefone (1916), como Em casa de baiana (1913), A viola está magoada (1914) e Samba Africano (1913). Pedro Aragão, professor de História da Música Popular Brasileira na UNIRIO, comenta: “Hoje em dia, com a revolução digital, é possível redimensionar [a música Pelo Telefone] sem tirar a sua importância, porque ela é muito mais simbólica do que histórica”.
A música é simbólica, porque fez um sucesso nunca antes visto. Apesar de não ter sido — tecnicamente — o primeiro samba, ele foi o primeiro a permear o imaginário da sociedade carioca. Os poucos sambas que o antecederam não tiveram sucesso significativo e permaneceram, em geral, desconhecidos pela população. Ou seja, Pelo Telefone não foi exatamente o primeiro samba, mas, sim, o primeiro samba de sucesso.
Pelo Telefone teve um sucesso comercial incomparável, que o elevou ao status que tem; o Rio de Janeiro foi tomado por multidões que, no carnaval, cantavam a plenos pulmões a divertida letra:
O chefe da polícia pelo telefone manda me avisar…
— Pelo Telefone
… samba?
O gênero da música também não saiu ileso das polêmicas. Apesar de conhecida como “primeiro samba”, a música Pelo Telefone, nos parâmetros atuais, não é exatamente um samba. Os estudiosos da música atualmente classificam-na como um maxixe, gênero musical dançante que precedeu o samba. Quanto a isso, Aragão explica que há frequentes reinvenções e repadronização na música: o conceito de samba evoluiu de tal forma que o que era tido como tal, no início do século XX, não o é mais. “O tipo de levada do samba das escolas de samba, esse tipo de padrão, só surge lá pra 1928, 1929. (…) Antes disso, a gente chamava outras coisas de samba”, afirma Aragão. Pelo Telefone, para os parâmetros atuais, não é efetivamente um samba, mas era considerado na época de sua criação.
É de quem pegar primeiro?
A questão da autoria é, sem dúvidas, a maior polêmica que envolve a música Pelo Telefone. Composto coletivamente na casa da Tia Ciata, o samba foi registrado como sendo de autoria somente de Donga. Alguns meses depois, o próprio Donga incluiu Mauro de Almeida, jornalista, como coautor da música, mas não reconheceu a autoria de nenhum dos outros músicos que participaram da composição. Isso, naturalmente, provocou tensões no mundo artístico do Rio de Janeiro, e vários músicos diferentes buscaram reivindicar sua autoria, especialmente após a canção ter se tornado um grande sucesso.
Sinhô já dizia: “Música é como passarinho, de quem pegar primeiro”. Mas será que é mesmo? Victor Di Sessa, advogado da área de propriedade intelectual, explica que a autoria da obra é concedida no momento em que ela é veiculada para um público — por menor que seja —, independendo do registro formal. “Ainda que Donga tenha feito um registro na Biblioteca Nacional em 1917, isso não significa que ele é o autor, mas sim que ele foi a primeira pessoa a registrar essa obra”, conta o advogado. A autoria de Pelo Telefone, dessa forma, seria de todos aqueles que participaram de sua composição, e não somente de Donga e de Mauro de Almeida.
Contudo, talvez Donga não seja o vilão da história afinal. A tradição popular — em especial, do samba — se pauta nessas construções coletivas e de autorias incertas. A tarefa de creditar fielmente todos aqueles que participaram de uma composição espontânea não é fácil hoje em dia, e certamente não o era no começo do século 20, com tecnologias limitadas. Mas essa autoria deveria ser atribuída para alguém, como explica Pedro Aragão: “Isso é até uma questão capitalista, você tem que ter alguém que vai receber o direito”. Para o professor, o advento da autoria no samba representou melhores condições para seus compositores e criou um ambiente mais propício para a eclosão do gênero musical. “As pessoas começam a perceber que existe um mercado para uma profissionalização”, afirma.
Donga, ao registrar a música Pelo Telefone, inaugurou uma tradição de autoria e oficialização da música popular brasileira, inserindo-a no ciclo comercial. Se o samba antes era perseguido e criminalizado no Rio de Janeiro, com a popularização do gênero — propiciada pelas gravações — ele passou a ser mais respeitado e, em pouco tempo, elevado à posição de ícone nacional. Apesar de todas as controvérsias, a música Pelo Telefone representou um movimento de valorização da tradição popular e da cultura afro-brasileira e, ao fim e ao cabo, quebrou uma série de paradigmas opressivos da época.
Como dizia já Donga — ou sabe-se lá quem — no primeiro samba brasileiro: “Deixa as mágoas para trás, ó rapaz”. Pelo Telefone segue sendo revolucionário e imprescindível.
Autora: Laura Pereira Lima.
Fonte: Jornalismo Júnior/USP.