O caso da capivara Filó traz de volta a discussão sobre animais de estimação no Brasil.
Nos últimos meses, uma nova polêmica tomou o Brasil subitamente. O influencer Agenor Tupinambá, que havia apreendido uma capivara, tomando-a como animal de estimação, foi multado e teve o animal confiscado pelo IBAMA. De imediato, diversos fãs do influenciador, incluindo a deputada Joana Darc (União Brasil-AM), protestaram contra a decisão, tanto através das redes sociais, quanto diretamente na frente do Centro de Triagem de Animais Silvestres (Cetas), local para onde a capivara foi levada. Como resposta a esses protestos, agências ambientais, ONGs e outros influenciadores digitais entraram para explicar a ação da IBAMA.
Post deletado de Agenor Tupinambá (Imagem: Reprodução/Instagram: @agenor.tupinamba)
A explicação para essa reação era bastante simples. Como dito diversas vezes pelo “Fiscal do Ibama” (@fiscaldoibama), um dos grandes perfis ambientalistas críticos ao influenciador, “Capivara não é PET. Apreender um animal silvestre é crime ambiental”. Isso pode ser confirmado por meio da legislação nacional, de acordo com a Lei N°9.605/98, Artigo 29, é crime contra o meio ambiente “Matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente”.
Mesmo com explicações que justificam a decisão tomada pelo IBAMA, fãs de Agenor continuaram a defendê-lo, argumentando que a capivara era bem tratada e que fora encontrada quando muito nova em situação de perigo. Independentemente da veracidade destas afirmações, nenhuma delas anularia o fato do crime ambiental cometido.
Como repetiram diversas vezes os órgãos legais nesse período: o ato do cativeiro indevido expõe tanto as pessoas quanto os animais envolvidos a diversas doenças, como também pode levar à morte ou maltrato do animal em questão, devido ao desconhecimento técnico (se não a malícia) do “cuidador”.
Mas talvez um dos efeitos mais graves do crime cometido pelo influenciador, exponencialmente piorado na era das redes sociais, se trata da fomentação do tráfico ilegal. Por todo o Brasil, explica Carlos Henrique Camargo, Primeiro Promotor de Justiça ao Meio Ambiente da Capital, em entrevista concedida à Jornalismo Júnior, feiras clandestinas vendem diversos animais em condições cruéis e não sanitárias “(Para qualquer espécie domesticada) existem os criadores oficiais, autorizados pelo IBAMA. Esses criadores clandestinos normalmente maltratam os animais, usam as fêmeas até morrer, produzindo um animal atrás do outro para vender. Não são vermifugados, não são vacinados”.
E esse mercado não é apenas restrito ao Brasil, “Tem também um problema do tráfico de animais nativos ao exterior” explica Luis Felipe, Biólogo graduando da USP, “não apenas para PETs, mas também para zoológicos ilegais ou até mesmo para pesquisa oficial”.
A divulgação de vídeos da capivara, mostrando-a como um animal de estimação inofensivo, fofo e desejável apenas ajuda a fortalecer o mercado ilegal. “É claro que a exposição de um influenciador que traz um animal nativo para sua casa cria a normalização. (Fomenta-se) a cadeia de produção de pets ilegal” explica Rodrigo Jorge, analista ambiental do ICMBio, em entrevista concedida à Jornalismo Júnior. “O tráfico de animais silvestres é uma das ameaças (à biodiversidade). É uma ameaça importante, especialmente para algumas espécies seletas.”
Apenas animais dentro da chamada “lista PET” podem ser legalmente obtidos como animais de estimação/criação. Essa lista é um tanto extensiva, incluindo galinhas, pavões, minhocas, abelhas, cavalos, bois, camelos, avestruzes, cachorros, gatos, coelhos, hamsters, entre outros. Além disso, existem exceções para algumas espécies nativas, como certos papagaios e jabutis, que embora não incluídos na lista, têm a venda e criação autorizada para certos produtores pelo IBAMA.
Dessa forma, basicamente todos esses animais são acessíveis para a compra, venda e doação dentro do Brasil, desde que seja feita a documentação e tendo ambiente de cativeiro suficiente para a manutenção do animal, ou seja, com a devida aprovação de instituições regulamentadoras
Capivaras, preguiças e cobras, todos animais que Agenor Tupinambá mantinha em sua fazenda, não estão nesta lista ou têm exceções similares à para papagaios. Esses animais simplesmente não tem criadouros especializados legais com o objetivo de venda e reprodução e, assim, podem apenas ter sido obtidos diretamente da natureza, seja através do tráfico ou pelo apanho pessoal de Agenor. Como explicado por Rodrigo Jorge, animais retirados diretamente da natureza demonstram perigos a humanos e são especialmente vulneráveis a doenças e maus-tratos.
Isso tudo não quer dizer, porém, que as leis ambientais atuais não venham sem críticas ou nuances. Ambos os especialistas entrevistados explicam a existência de discordâncias dentro de suas áreas sobre o assunto. Especificamente, duas discussões importantes aparentam prevalecer: a expansividade da Lista Pet e seu potencial efeito negativo na biodiversidade, devido à difusão de espécies invasivas, e a existência de exceções legais, antes mencionadas, que permitem a comercialização de certas aves e répteis nativos.
Espécies Invasivas
Como explica Rodrigo Jorge, “As espécies exóticas invasoras são aquelas que, por suas características biológicas, têm vantagens competitivas com relação às espécies nativas, e assim levam à perda dessas espécies, com sua introdução”. No Brasil, de todas as questões que afetam a biodiversidade nacional , uma das maiores é a introdução de espécies invasivas. De acordo com a União Internacional de Conservação da Natureza (IUCN), para a grande maioria das espécies extintas globalmente devido à interferência humana, a introdução de espécies invasoras foi a maior causa. Atualmente, apenas a perda de habitat por queimadas e desmatamento supera essa ameaça.
Uma das questões levantadas sobre a temática, no entanto, é o fato de grande parte dos animais selecionados na Lista de Animais Domésticos constituem-se hoje em dia, numa escala maior ou menor, como invasivos “As principais ameaças vêm de animais que foram trazidos com o objetivo de produção. Os javalis, por exemplo, foram muito soltos após se espalharem por conta de sua função pecuária”, Jorge elabora.
Até mesmo nossos pets favoritos, como cachorros e gatos, apresentam um problema. Ambos os animais, e especialmente gatos, são caçadores ativos que se espalharam amplamente por todo o país, invadindo ambientes públicos e reservas e ameaçando diversos animais nativos. Como explica a bióloga Laise Becker, em matéria escrita para a Revista Eco “Na ilha de Fernando de Noronha vivem mais de mil gatos, o que corresponde a um gato para cada quatro habitantes. Nem sempre moradores e turistas notam, mas o lagarto nativo mabuia (Trachelepys atlantica), o rabo-de-junco-de-bico-laranja (Phaethon lepturus) e a cocoruta (Elaenia ridleyana) sentem o perigo.”
Mesmo assim, a discussão sobre o assunto mantém-se confinada longe do debate público, permanecendo apenas dentre especialistas. Como comenta Ricardo Jorge, “Tem uma longa discussão no âmbito do Conselho Nacional do Meio Ambiente sobre a lista de espécies para a qual seria autorizada a manutenção em cativeiro”. Pois mesmo que o efeito do tráfico não possa ser ignorado, há de se compreender a diferença de urgência entre os dois: de acordo com a IUCN, três vezes mais espécies no mundo são ameaçadas pela ação de espécies invasivas do que são ameaçadas pelo tráfico ou pela caça.
Mesmo assim, devido aos vínculos econômicos e emocionais formados com esses animais invasivos, o processo de mudança dessa lista tornou-se complexo, burocrático e indesejado por grande parte da população. Uma minoria das pessoas apoiaria o fim, ou sequer a diminuição, da domesticação de gatos e cachorros; e diversos interesses econômicos impedem qualquer intervenção na legalidade de animais de gado como porcos ou vacas.
Talvez, porém, com o renascimento dessa discussão, seja possível que essa pauta novamente entre em questão. Na luta pela preservação da biodiversidade, o desconforto inicial da população não deveria impedir mudanças necessárias.
As Exceções
A existência de exceções para araras, papagaios e jabutis, porém, é uma questão mais aberta e controversa. O motivo por trás das exceções, basicamente, se trata de uma prática clássica de “redução de danos”. “O objetivo (dessa autorização) é conter o tráfico de animais”, explica Carlos Camargo, “essa legislação tenta fazer com que (os animais silvestres) sejam criados em cativeiro, para que não se compre mais dos clandestinos”
De acordo com o Criadouro Comercial Guarubá, um dos maiores vendedores de aves nativas, autorizado pelo IBAMA, do Estado de São Paulo “Com a finalidade de diminuir esse impacto (o tráfico) à nossa fauna, o IBAMA, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, criou leis que autorizam a reprodução em cativeiro das espécies mais procuradas como animais de estimação com o intuito de atender a essa demanda de maneira legal.”
A arara, espécie nativa e característica do Brasil, é comumente vendida em criadouros legais. (Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons)
A estratégia se assemelha a um método de contenção de tráfico utilizado pelo mundo inteiro para diversos bens ilícitos; seja através da legalização, ou apenas da descriminalização do bem. Provavelmente o caso mais famoso é o do tráfico de drogas, no qual, especialmente no caso da maconha, vem se discutindo a implementação desse sistema.
Porém, semelhante ao caso da discussão sobre drogas, o processo não vem sem sua polêmica. Ambos os especialistas entrevistados, por exemplo, demonstraram discordância com a atual autorização do comércio desses animais silvestres. “Se o animal tem asas, é para ele voar” opinou Camargo, e “mesmo com essa política, ainda vemos muita falsificação de documentos e captura ilegal desses animais”. Mas, como visto, o IBAMA apresenta reflexões diferentes sobre a temática e a presença desses cativeiros legais continua pelo país inteiro.
O motivo de por que a mesma exceção não existe para espécies como a capivara não é muito exato. Por um lado, se trata de um animal grande com diversas necessidades, tendo assim manejo mais complexo, por outro, pela inexistência de vacinas e tratamentos específicos, acaba por ser um ótimo vetor para doenças transmissíveis ao humano. Mas provavelmente o maior motivo está simplesmente na baixa demanda; animais maiores já foram domesticados e novas tecnologias podem ser criadas, mas se não há tráfico suficientemente robusto, não existe motivo para implementar a estratégia de redução de danos. A autorização do IBAMA para papagaios e araras, como vimos, veio primariamente como resposta ao tamanho do tráfico já existente, não a qualquer facilidade inerente da domesticação desses animais.
A discussão sobre o assunto, então, está longe de ser finalizada. Ao mesmo tempo que a lista PET está sujeita a futuras alterações, que podem ser desejáveis, o tráfico de certas espécies nativas, hoje ilegal, pode muito bem ser autorizado com o objetivo de regulamentação do mercado pelos órgãos responsáveis. Porém, é quase impossível sabermos no momento quando e se essas alterações, de fato, acontecerão.
É importante ressaltar, de qualquer maneira, a autoridade e competência de órgãos ambientais, como o IBAMA e o ICMBio. As discussões aqui mencionadas estão sendo feitas por especialistas dentro dessas instituições, que compreendem os detalhes e especificidades de cada espécie, exótica ou nativa, com grande profundidade.
Com o decorrer do caso da capivara Filó, vimos incessantes ataques a essas organizações ambientais, especialmente por pessoas que ou não compreendiam o assunto, ou tinham interesses contrários a seus objetivos. Essas críticas, em grande parte dos casos de má fé, tem fortalecido uma longa antagonização de tais agências, que no fim são essenciais para a preservação da biodiversidade brasileira. Por isso, é importante relembrar que as nuances aqui trazidas não deveriam ser tomadas como necessariamente problemas, e muito menos como condenações, dessas instituições essenciais. Mas é importante que se mantenha uma mente aberta e informada, especialmente para uma discussão de caráter transformativo e não resolvido como essa.
Autor: Marcelo Teixeira.
Fonte: Jornalismo Júnior/USP.