Popularização dos computadores pessoais transformou a economia, a sociedade e a maneira como interagimos.
A virada do milênio marcou o começo de uma era transformadora: a era dos dados. Com a popularização dos computadores pessoais, a World Wide Web, o início da internet comercial e os primeiros smartphones, o mundo começou a experimentar uma revolução digital sem precedentes.
“É uma definição muito difícil, porque tem muita evolução muito rapidamente. É algo contínuo. De maneira não acadêmica, a capacidade de armazenamento, transmissão e processamento define esse período”, explica Fábio Prates Machado, professor no Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (IME-USP). ”Sempre gosto de brincar com os meus alunos que eu comecei a fazer programação com cartão perfurado”, conta.
Primeiros passos na digitalização de dados
“Na graduação, eu pegava um ônibus para Universidade, chegava, lia no computador o cartão e descobria que eu tinha digitado uma letra errada, e aquilo bloqueava totalmente a computação”
Fábio Prates Machado
Na virada para os anos 90, a digitalização de dados deu seus primeiros passos significativos. Com o início da World Wide Web em 1989 e a popularização dos computadores pessoais, indivíduos e empresas começaram a armazenar e manipular dados de forma mais eficiente. Sites grandes e popularmente conhecidos hoje em dia foram criados; como em 1996, o Bate-papo UOL e em 1998, o Google.
A transmissão de dados digitais no Brasil era via internet discada ou banda larga e operava em velocidades muito abaixo das atuais. A Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP) traz dados de que, em 1992, a primeira rede acadêmica brasileira possuía 64 Kb/s (kilobytes por segundo) e só após 3 anos, em 1995, a rede tornou-se comercial e expandiu-se às capitais com conexões de até 2 Mb/s (megabytes por segundo).
Com a virada do milênio, a tecnologia, ainda prematura, sofreu a ameaça do temido “Bug do Milênio“, devido a incapacidade dos sistemas de computação da época em lidar com a mudança de datas de 1999 para 2000, algo que gerou pânico global. Os anos eram registrados em apenas dois dígitos para poupar armazenamento e os softwares antigos eram incapazes de passar de 99 a 00. Porém, “os técnicos aprenderam a contornar e aquele problema que se previa de fato não aconteceu”, conta o estatístico.
Após esse evento, a internet continuou crescendo rapidamente. Conforme a RNP, em 2000, havia 9,8 milhões de internautas no Brasil. Já em 2009, uma pesquisa feita pelo IBGE contabilizou 67,9 milhões de pessoas online no país. Hoje em dia, conforme dados da pesquisa TIC Domicílios 2023, do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação, 156 milhões dos brasileiros com mais de 10 anos acessaram a internet no último ano.
Os trabalhadores de escritórios e a economia
Luciano Nakabashi, professor de Economia na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto (FEA-RP) da Universidade de São Paulo afirma que “existem vários estudos que mostram que a internet, junto com o computador pessoal e outras tecnologias que estavam surgindo naquele momento, ajudaram a influenciar e impulsionar o crescimento econômico”.
“As empresas puderam trocar muito mais informações entre elas. Ficou muito mais barato você ter interação em diferentes lugares do mundo com essa nova tecnologia, o que ajudou a questão da integração econômica e o crescimento econômico mundial, principalmente para os trabalhadores de escritório com mais escolaridade”, afirma.
Apesar do primeiro smartphone do mundo ter sido lançado em 1992 pela IBM – nomeado de Simon Personal Communicator –, aparelhos como os BlackBerrys eram famosos no meio corporativo desde o início dos anos 2000. O RAZR V3, lançado em 2004, até o estrelato do primeiro iPhone em 2007 também marcaram a indústria e a chamada “era dos dados”. A chegada desses smartphones mais recentes permitiu que a coleta e o armazenamento de dados “explodissem”.
“Essas tecnologias novas e o maior poder de processamento e de armazenamento auxiliaram no grande aumento na coleta e armazenamento de dados, usados para oferecer uma propaganda mais personalizada e até permitir novas análises acadêmicas”
Luciano Nakabashi
Essa revolução tecnológica mudou profundamente a economia global. Empresas começaram a utilizar grandes volumes de dados para desenvolver estratégias de mercado, melhorar a eficiência operacional e criar novos produtos e serviços. A coleta de dados em massa permitiu a personalização de ofertas e a criação de modelos de negócios baseados em dados, como os serviços de streaming e as redes sociais.
Impacto da Era dos Dados
As empresas passaram a utilizar dados para tomar decisões mais informadas e estratégicas. A análise de grandes volumes de dados (big data) permitiu identificar tendências de mercado, melhorar a experiência do cliente e otimizar operações. “Há um ‘tsunami’ de dados e o desafio é passar de uma situação em que o dado era algo raro para uma em que ele é uma coisa gigantesca, que você precisa entender numa escala diferente”, afirma o professor do IME.
O setor de saúde também foi transformado por essa “tsunami” de dados com a capacidade de armazenar, transmitir e analisar dados de pacientes. Essas mudanças vieram a facilitar o desenvolvimento de tratamentos personalizados, acompanhamentos à distância, a pesquisa médica e a gestão eficiente de recursos na saúde. Não só a saúde, como conta o economista:
“Pessoas agora compram sem ir presencialmente nos lugares, nos shoppings virtuais, nas plataformas de vendas das grandes empresas”
Luciano Nakabashi
As grandes empresas de tecnologia, como a Meta com o Facebook, Whatsapp e Instagram, cresceram rapidamente ao aproveitar suas próprias inovações e economias de escala. Muitas vezes, adquiriram concorrentes para manter seu poder de mercado. Conforme o economista, certas empresas, como a própria Meta, compraram muitas das suas concorrentes para que não perdessem poder de mercado, como a aquisição do Whatsapp em 2014, ou a do Instagram em 2012.
“Isso levou à predominância de poucas grandes empresas em setores como redes sociais e serviços de transporte e entrega”, continua. Essas mudanças transformaram setores tradicionais como os de táxis e de entregas, com empresas como Uber e iFood centralizando mercados. Até mesmo o setor hoteleiro foi afetado, muito pelo surgimento do AirBnb.
A revolução na coleta, transmissão e o armazenamento massivo de dados também foram essenciais para o desenvolvimento da inteligência artificial (IA). Algoritmos de aprendizado de máquina (machine learning) dependem de grandes volumes de dados para treinar modelos e realizar tarefas complexas. A IA começou a ser aplicada em diversas áreas, desde a automação industrial até a criação de assistentes virtuais. Essa última leva a discussões sobre uso de dados de redes sociais para criação de IA´s e o colonialismo de dados.
O Caso Cambridge Analytica
Apesar dos benefícios dessas tecnologias, Nakabashi alerta que “as grandes questões são sociais: como você controla esses dados, a questão da privacidade das pessoas e das fake news. Esses são os grandes desafios. E até que ponto essas tecnologias não podem ser utilizadas também para golpes virtuais?”. Já Machado ressalta que “o desafio é como vamos passar de uma cultura de prospecção de dados para uma cultura proteção”.
Um dos casos mais emblemáticos e controversos do uso de dados foi o da Cambridge Analytica. Em 2018, foi revelado que a empresa utilizou dados pessoais de milhões de usuários do Facebook sem consentimento para influenciar o comportamento eleitoral em várias campanhas, incluindo a eleição presidencial dos Estados Unidos em 2016 e o referendo do Brexit no Reino Unido.
Cambridge Analytica coletou informações através de um aplicativo de quiz no Facebook, que não só extraía dados dos usuários que o usavam, mas também de seus amigos na rede social. Essas informações foram utilizadas para criar perfis psicológicos detalhados e direcionar anúncios políticos altamente personalizados.
O escândalo trouxe à tona questões cruciais sobre privacidade, ética no uso de dados e o poder das plataformas sociais. Também destacou a necessidade de regulamentações mais rígidas para proteger os dados pessoais e garantir que as empresas utilizem essas informações de maneira ética e transparente. O caso repercutiu a ponto de fomentar leis nos Estados Unidos.
O estatístico discute as potencialidades e os riscos envolvidos nas análises de Big Datas atuais. “Podem ajudar a diminuição da pobreza, trazer mais saúde para as pessoas, melhorar o nível de satisfação e felicidade. Mas, por outro lado, podem ter um mau uso devido aos interesses complexos de uma sociedade complexa.”
Ele reconhece que, embora o treinamento ético aos estatísticos seja crucial, ainda há um longo caminho a percorrer, porque “o treinamento ético dos estudantes ainda não é uma disciplina formal”.
A proteção e o futuro dos dados no Brasil
O aumento das violações de dados e dos ataques cibernéticos destacou a necessidade de medidas robustas de segurança digital no Brasil e no mundo. Além disso, a privacidade dos dados tornou-se uma preocupação central, com debates sobre o uso ético das informações pessoais que levaram à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), de 14 de agosto de 2018 e que entrou em vigor em setembro de 2020.
“Educação e divulgação científica também são cruciais. Não adianta um monte de cientistas que só conversam entre si. A ciência tem que chegar no dia a dia das pessoas”
Fábio Prates Machado
O estatístico, que já visitou a Inglaterra e realizou seu doutorado com orientação de um professor da Universidade de Cambrigde, destaca a importância da divulgação científica bem estruturada que existe lá. “A diferença que me chamava atenção era a divulgação científica muito profunda. O treinamento dos jornalistas é voltado para a ciência”.
Ele também observa que seu treinamento está se tornando cada vez mais interdisciplinar. “O treinamento de estatística não é só para estatísticos. Os biólogos, pessoal das ciências humanas, todos precisam ter treinamento estatístico. Estatística é uma linguagem de comunicação.” Essa abordagem interdisciplinar é essencial para garantir que os dados sejam compreendidos e aplicados corretamente em várias disciplinas.
Autor: Jean Silva.
Fonte: Jornalismo Júnior/USP.