Conheça a história de Nise da Silveira, médica que revolucionou os métodos psiquiátricos e deu início aos princípios da luta antimanicomial, além de ser uma das primeiras mulheres a graduar medicina no Brasil. Apaixonada pela vida, por gatos, pelos livros, pelos amigos, pelos seus internos psiquiátricos e pela arte.
Lobotomia, eletrochoque, internações compulsórias e coma insulínico. Hospitais insalubres, uso da violência, pacientes confinados e médicos sadistas. A descrição é do cenário dos manicômios brasileiros do século XX, até que Nise Magalhães da Silveira introduzisse uma psiquiatria baseada nos vínculos afetivos, nas expressões artísticas e que contemplasse a complexidade do ser humano. ‘’A psiquiatra que ela foi é resultado da mulher que ela era, é indissociável’’, diz Gonzaga Leal, artista, amigo pessoal e aprendiz de terapia ocupacional da doutora Nise, como era mais chamada.
O tratamento psiquiátrico há 100 anos consistia em isolar o ‘’louco’’ do convívio social e escondê-lo nos quartos do fundo da sociedade. Essa foi a fórmula perfeita para o desastre e negligência durante anos. Nise abriu as portas para algo que ninguém queria ver e nem tocar, muito menos lidar. Nascida em Maceió, Alagoas, no ano de 1905, em seus 94 anos de vida, teve muito fôlego para lutar pelo o que acreditava.
Posicionamentos que incomodavam
No ano de 1931, formou-se na Faculdade de Medicina da Bahia sendo a única mulher em uma sala de 157 homens aos 21 anos. Na turma, estava seu futuro marido, o sanitarista Mário Magalhães da Silveira, que era também seu primo.
A médica foi uma das primeiras mulheres a cursar medicina no Brasil, em um contexto histórico que as figuras femininas tinham seus direitos restritos. Após a Constituição de 34, os direitos políticos, inclusive o voto, foram sendo estendidos, o que significava uma maior emancipação da mulher, mas ainda de forma bastante limitada.
Sutil, firme, cirúrgica nas palavras, ávida por conhecimento, empática, atenta e cuidadosa: essas são apenas algumas das características que acompanharam Nise em toda sua trajetória.
Os artistas, atores, cantores, produtores e intelectuais eram grandes aliados de Nise, mas não era a todos que agradava, seus posicionamentos, à frente de sua época, causaram episódios conflituosos, inclusive sua prisão. Em 1936, quando já residia no Rio de Janeiro, uma enfermeira a denunciou à diretoria do Hospício Nacional pela leitura dos livros de Karl Marx. O panorama é o início da Era Vargas, anos antes de iniciar o Estado Novo, momento em que ocorreu uma radicalização e ditadorismo na política. Qualquer sinal de simpatia ao comunismo, portanto, seria reprimido.
No primeiro encarceramento, Nise foi solta no mesmo dia, já na segunda vez permaneceu por mais de um ano. ‘’Recolhida como medida de ordem e segurança política e social’’, também detida por pertencer à União Feminina Brasileira e à Ala Reivindicadora dos Médicos, além de ser filiada ao Partido Comunista Brasileiro. Por não concordar com a totalidade das ideias comunistas, Nise não se considerava uma atuante.
”Lamentei ver a minha conterrânea fora do mundo, longe da profissão, do hospital, dos seus queridos loucos’’, escreveu Graciliano Ramos em seu livro “Memórias do Cárcere”, o encontro se deu por também ter sido prisioneiro político. ‘’Nunca havia me aparecido criatura mais simpática’’, completa o escritor em suas impressões sobre a psiquiatra.
Psiquiatria humanizada
Depois de sair da prisão, viveu por 8 anos na clandestinidade nas regiões Norte e Nordeste do país devido à censura. Após o distanciamento, Nise retorna ao serviço público e começa a trabalhar no Centro Psiquiátrico Pedro II, no bairro Engenho de Dentro no Rio de Janeiro, onde fundou a Seção de Terapêutica Ocupacional por discordar dos métodos de tratamento vigentes e desumanos.
O principal objetivo da psiquiatra era permitir que os pacientes, a quem preferia chamar de clientes, expressassem o mundo interior por meio de ateliês de pintura, desenho, modelagem e outros trabalhos manuais. Durante o momento em que esteve presa, percebeu que o isolamento e as más condições de vida eram motores da loucura. Não à toa, uma de suas palavras preferidas era ‘’liberdade’’. O trabalho produzido pelos internos do hospital psiquiátrico mereceu diversas exposições realizadas pela doutora e, posteriormente, deu origem ao Museu de Imagens do Inconsciente.
Nise chamava os gatos e cachorros de co-terapeutas por acreditar que o convívio entre os bichinhos e os humanos era muito positivo. Para ela, os gatos eram ótimos companheiros de estudo, aumentavam a concentração e compartilhavam do silêncio. Autora de diversas obras, os felinos inspiraram Nise a escrever um livro chamado “Gatos, a emoção de lidar”.
Os pacientes cuidavam dos cachorros, davam comida, banho e brincavam. A relação fica bastante evidente no filme ‘’Nise – O coração da loucura’’, dirigido por Roberto Berliner e estrelado pela atriz Glória Pires. A produção cinematográfica é uma aula de humanidades e bastante fidedigna ao trabalho da psiquiatra.https://www.youtube.com/embed/UeAUNvcM_xk?feature=oembed
”Fiquei trabalhando com ela e foi uma das coisas mais lindas, mais enriquecedoras, mais profundas e mais plenas que eu vivi na minha vida’’, ainda em entrevista com o amigo de Nise. Gonzaga conta ter ficado assombrado com a primeira vez que viu o Museu de Imagens do Inconsciente, que hoje é centro de estudos e pesquisas na área de saúde mental aberto ao público.
A catalogação de artes dos pacientes, os gatos e cachorros andando e criaturas convivendo absolutamente felizes fizeram com que ele soubesse, naquele momento, que era aquilo que queria fazer, e foi muito bem acolhido. Luiz, como a amiga costumava chamá-lo, relembra o pedido de Nise quando já não estava enxergando muito bem: queria que fizesse a leitura de uma revista em francês. A busca por conhecimento era traço inseparável da personalidade da doutora.
‘’O trabalho dela lá no Engenho de Dentro, a forma com que ela administrava as crises dos pacientes nos hospitais que ela atuou foi muito importante para mim, porque eu tenho um paralelo também, tenho esquizofrenia. E eu fui internado várias vezes’’. O depoimento é de Nestor Lampros, artista plástico, cartunista e escritor atibaiense, Nise é uma grande inspiração em sua arte.
Desde suas primeiras memórias de infância, Lampros esteve com um pincel e lápis na mão. ‘’É uma necessidade de me expressar através da arte. Acho que se eu não tivesse isso já estava morto há muito tempo’’, o artista, assim como Nise, acredita que dentro de cada pessoa há alguma coisa que possa ser canalizada através da arte, da música, da poesia e de tudo.
Nise e Carl Jung
A psicologia junguiana, formulada pelo psicanalista suíço Carl Gustav Jung, foi trazida ao Brasil por Nise da Silveira. Tendo percebido que mandalas eram recorrentes nas pinturas dos internos psiquiátricos, a doutora decide enviar uma carta ao psiquiatra, que já abordava os desenhos e símbolos como forma de compreender o inconsciente e a psique.
Nise encontrou base teórica para sua atuação na psicologia junguiana e destacou a importância de um entendimento do outro que se dê no campo não verbal. Em 1952, o Museu de Imagens do Inconsciente participou do II Congresso Internacional de Psiquiatria, em Zurique. Devido a ocasião, Nise pôde conhecer Jung pessoalmente, que prestigiou a exposição e fez interpretações sobre os desenhos dos pacientes da doutora.
Luta antimanicomial
O movimento da luta antimanicomial está pautado na defesa dos direitos das pessoas com sofrimento mental e seu lema é ‘’por uma sociedade sem manicômios’’.
‘’Quando a gente fala de manicômio, a gente está se referindo a qualquer espaço fechado ou qualquer lógica que insere o sujeito numa compreensão meramente da doença, da pessoa reduzida à doença’’, explica Melissa de Oliveira, psicóloga, doutora em saúde pública e autora de livros sobre a temática. Melissa entende que ao dizermos não ao manicômio, dizemos sim às políticas públicas e à vida integral do indivíduo, que está para além do diagnóstico.
Nise da Silveira, assim como outros precursores da psiquiatria humanizada, abriu as portas para o que acontece hoje dentro do movimento antimanicomial. A Casa das Palmeiras, criada em 1956 por ela, é um pequeno território livre no Rio de Janeiro e nasceu com os mesmos princípios do CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) atual, buscando preservar a cidadania e vínculos sociais de pessoas com transtorno mental. A atuação de equipes multiprofissionais visa considerar e englobar as condições concretas e materiais de vida.
A partir da década de 70, com a redemocratização do país, o movimento de Reforma Psiquiátrica começou a tomar formas mais definidas e a Lei de Reforma Psiquiátrica foi promulgada em 2001, assegurando direitos dos pacientes e adotando uma Política Nacional de Saúde Mental. Um dos propósitos do movimento é trazer inquietação para a sociedade em torno da questão, de forma que todos entendam a importância e apoiem a causa.
O Brasil é destaque internacional na luta antimanicomial por suas conquistas e melhorias alcançadas. Melissa de Oliveira, no entanto, acrescenta: ‘’Sofremos um dos piores momentos da reforma psiquiátrica no Brasil, com ataques severos que se aproximam muito mais do momento da ditadura do que do momento democrático brasileiro.’’
Um legado
‘’O que eu sinto, por exemplo, nas clínicas que eu passei,
é que faltava a Nise da Silveira lá’’ –
Nestor Lampros, artista plástico, cartunista e escritor atibaiense
Museus, livros, filmes, exposições, matérias jornalísticas e movimentos nasceram em homenagem à Nise Magalhães da Silveira, reconhecida nacional e internacionalmente por suas realizações. ‘’O que eu sinto, por exemplo, nas clínicas que eu passei, é que faltava a Nise da Silveira lá’’, conta Nestor Lampros, que gostaria que em todo cuidado houvesse os ensinamentos e o coração de Nise.
“Não se cura além da conta. Gente curada demais é gente chata. Todo mundo tem um pouco de loucura. Vou lhes fazer um pedido: vivam a imaginação, pois ela é a nossa realidade mais profunda. Felizmente, eu nunca convivi com pessoas ajuizadas demais’’, nas palavras de Nise da Silveira, uma psiquiatra loucamente revolucionária.
Autora: Luana Takahashi.
Fonte: Jornalismo Júnior/USP.