Não só de golpes perigosos vive um lutador. Conheça a história e os valores das artes marciais mais famosas.
Lendas antigas contam que há milhares de anos, nos tempos da expansão romana, um soldado de habilidades divinas e certo apreço por lutas sangrentas combatia nos campos de batalha. Esse soldado era ninguém menos que Marte — o deus da guerra —, que se disfarçava de humano para brigar por Roma ao lado dos mortais. Ele figurava como um dos mais importantes personagens da mitologia romana e era conhecido por sua estima pela violência.
Foi em referência ao deus que o termo arte marcial surgiu. As artes marciais abrangem diversos esportes como judô, aikido, karatê, kung fu e taekwondo — lutas que se originaram de técnicas de combate em guerras. Atualmente, possuem o aprendizado da auto-defesa e o desenvolvimento da tríade corpo-mente-espírito como foco.
A popularização das artes marciais — e de um olhar deturpado sobre elas
Nos últimos anos, as artes marciais têm ganhado cada vez mais destaque no imaginário das pessoas. Seja por conta dos Jogos Olímpicos — que apresentam a face competitiva desses esportes —, ou da cultura pop — que passou a inserir algumas modalidades em séries de grandes serviços de streaming —, é difícil não se impressionar com todos os chutes e socos perigosos, e um tanto acrobáticos, que um atleta pode realizar.
Ainda que essa fama recente atraia novos praticantes para essas artes, ela também pode trazer uma imagem superficial sobre o que as lutas realmente são e como influenciam na construção do caráter dos lutadores. Comumente, os atletas das artes marciais são associados a figuras violentas — como Marte —, que veem no esporte uma maneira de adquirir força física para sobrepô-la a de terceiros.
Cada uma das lutas possui sua própria filosofia, que deve guiar seus praticantes no caminho para o aperfeiçoamento de suas habilidades marciais e também na moldagem de uma personalidade essencialmente contra a brutalidade. Apesar de primordiais para a evolução constante dos esportistas, tais filosofias poucas vezes são apresentadas ao público leigo como os golpes extravagantes são. Conheça a história e a filosofia de algumas das artes marciais mais famosas no mundo.
A filosofia do “caminho da suavidade”
O judô é uma das principais artes marciais no Brasil e o país é considerado uma das potências mundiais no esporte. Nos Jogos Olímpicos, é a modalidade individual que mais trouxe medalhas para a equipe verde e amarela — 24 no total. Nas competições das categorias de base e das equipes de alto rendimento, os judocas brasileiros costumam ser alguns dos favoritos a figurar no pódio.
Criado em 1882 pelo mestre Jigoro Kano, o judô — que completa 140 anos de história neste ano — é uma arte marcial japonesa originada do antigo jiu jitsu. O objetivo da luta é derrubar o oponente de costas no chão, executando um golpe com força e velocidade ideais. É possível também conquistar o ippon, o ponto completo, imobilizando o adversário pelo tempo de 20 segundos.
Mestre Kano estudou em escolas de jiu jitsu e queria ensinar o desenvolvimento de competências físicas e mostrar um caminho para ser um bom cidadão aos seus alunos: “no meu modo de ver, a finalidade da educação física é desenvolver um corpo forte e saudável, e treinar esse corpo para que venha a ser útil para a sociedade, ao mesmo tempo que desenvolve a habilidade de cultivar a mente”, ressalta.
Nadia Hori, faixa preta 4º Dan, é sensei e compete pela Federação Paulista de Judô e pelo Brasil nas competições de Kata, nas quais as técnicas do judô são apresentadas com perfeição em demonstrações coreografadas. Sensei Nadia treina e ministra aulas no Judô Shinohara — dojô que carrega o nome e o legado do único judoca brasileiro a conquistar o 10º Dan, a maior honraria do judô: sensei Massao Shinohara, falecido em 2020 —, localizado na Vila Sônia, zona Oeste de São Paulo. “O judô é uma forma de vida, pois vai além da prática de exercícios físicos, se aprende a conduzir sua energia com equilíbrio, de forma positiva, pura e simples, aprendendo a controlar a sua mente com a parte corporal na execução das técnicas de defesa pessoal”, relata.
Para isso, o esporte se sustenta em duas máximas principais: seiryoku-zenyo e jita-kyoei. Seiryoku-zenyo é o princípio da eficiência máxima, do melhor uso da energia. É o ensinamento que leva o judoca a colocar sua energia física e mental para trabalhar da maneira mais produtiva. “[O mestre Jigoro Kano] desenvolveu técnicas onde se utilizava a inteligência acima da força física, significando o ‘caminho da suavidade’. A inteligência na prática do judô é não resistir a força, consequentemente o resultado virá com o mínimo esforço”, explica Hori.
No jita-kyoei, há o princípio da prosperidade e do benefício mútuo, ensinamentos que retomam o objetivo do judoca em ser útil para a sociedade. Como define sensei Nadia, “é aprender ou melhorar a convivência com outras pessoas de forma harmoniosa, respeitosa, com humildade, ser colaborativo, buscando a simplicidade, amizade. Por isso, o início do aprendizado no judô é sempre pelo cumprimento (respeito ao local, seu professor e ao próximo), depois aprende a cair (humildade) e se levantar (sucesso na vida)”.
Além disso, Jigoro Kano expressou sua vontade de que os judocas honrassem o espírito samurai. O judô baseia muito da sua moral no bushido — o caminho do guerreiro —, código de honra dos samurais. Coragem, justiça, humildade, lealdade, honestidade, honra e compaixão são valores que devem ser vivenciados pelos lutadores dentro e fora do tatame, assim como foram seguidos pelos guerreiros medievais japoneses.
“O judoca não se aperfeiçoa para lutar, luta para se aperfeiçoar”
A busca milenar pelo auto-conhecimento
Várias gerações se recordam dos impressionantes filmes estrelados pelo artista marcial Bruce Lee. Esses clássicos do cinema auxiliaram na popularização de uma das mais antigas lutas existentes. O kung fu é uma milenar arte marcial chinesa que contém diferentes estilos e pode ser lutado tanto com as mãos livres — utilizando apenas o corpo no combate —, quanto com armas — como bastões e espadas. Nele, são valorizados a meditação, o cultivo do chi (a energia vital de cada um) e o desenvolvimento físico.
Existem diversas teorias e lendas sobre a criação do kung fu. É difícil falar da história dessa arte marcial sem citar o Templo Shaolin. Conta-se que um monge indiano, em peregrinação na China, encontrou os monges do Templo Shaolin em más condições físicas. Para ajudá-los, ensinou exercícios de movimentação para torná-los mais fortes. Com o tempo e a necessidade de defesa pessoal, os monges Shaolin começaram a utilizar esses movimentos como uma arte marcial, treinando-os para usá-los em combates, se preciso.
Marco Serra é sifu (mestre) e fundador do Instituto de Kung Fu Shaolin, no Butantã, zona Oeste paulistana. Ele explica que o termo kung fu, que se difundiu entre os ocidentais, não é o mais adequado para se referir a essa arte marcial. “O termo correto para a gente usar nas artes marciais chinesas é o termo wushu. O termo kung fu estaria ligado a qualquer pessoa que tem extrema habilidade em fazer qualquer coisa.”
Segundo Serra, o kung fu tornou-se um processo de desenvolvimento holístico do ser humano quando houve a junção da parte bélica e filosófica. “Isso aconteceu no Templo Shaolin. Uma das filosofias que mais impactou dentro das artes marciais foi a filosofia budista e também o taoísmo”. Para ele, as filosofias buscam a essência. Por isso, o wushu apresenta valores como o respeito pela natureza — alguns movimentos da arte são baseados nas movimentações dos animais —, o respeito pelo próximo, a paciência e a busca pela perfeição.
“O kung fu é um caminho de evolução constante, de autoconhecimento em todos os seus campos”, conta o sifu. A prática desse esporte não é um estímulo a violência, mas uma forma de combatê-la, já que existe nela um processo ético. “A violência começa a se desmanchar no processo que o praticante tem de autoconhecimento e entende qual é o caminho do artista marcial. Então, ele mesmo se torna uma pessoa mais centrada, mais calma e com outros objetivos. Ele vai realmente apurando o processo de autocontrole. Se um praticante de qualquer arte marcial precisar se defender, a gente sempre incentiva que ele faça isso se a vida dele correr risco. Fora disso, não existe razão para ele usar a violência”, destaca.
Karatê: “sem compaixão” — ou será que não?
O karatê é uma arte marcial que também surgiu no Japão. A teoria mais aceita é a de que teria sido criado por meio da junção das técnicas de auto-defesa praticadas e transmitidas como arte secreta em Okinawa e de antigas artes marciais chinesas — e, com o passar do tempo e a difusão da modalidade, diversas escolas, com diferentes estilos, apareceram.
O karatê competitivo teve a sua primeira participação em uma edição dos Jogos Olímpicos em Tóquio 2020 e consiste em lutas com pontos ganhos por meio de golpes em partes específicas do corpo, como cabeça, pescoço e abdômen. Há também a competição de apresentações do kata.
A modalidade se sustenta sobre três bases: o kihon, técnicas básicas do karatê e o meio pelo qual se corrige alguns fundamentos como a respiração, a intensidade da força utilizada nos movimentos, a postura e a velocidade; o kata, no qual são feitas repetições constantes dos movimentos do kihon, em uma simulação de luta, até que o corpo aprenda a movimentar-se instintivamente; e o kumite, em que há o enfrentamento de adversários para a demonstração das técnicas, uma aplicação do kata.
Os katas são considerados de extrema importância para a prática do esporte e podem mudar de acordo com o estilo do dojô em que for ensinado. Além das escolas de karatê de contato, existem quatro principais escolas representativas do karatê tradicional: Shotokan, Goju-ryu, Shito-ryu e Wado-ryu.
O Shotokan é o estilo de karatê mais difundido no mundo. Criado por Gichin Funakoshi, o pai do karatê moderno, é a escola que o sensei Carlos Rocha, 6º Dan JKA, ensina na Mushinkan Karatê, localizada na Vila Mariana, zona Centro-Sul da capital paulista. Sensei Carlos explica que os princípios do karatê começam a mudar o praticante por meio do tempo de treinamento: “uma coisa que vai permeando a pessoa que pratica há muito tempo é a persistência dela, a capacidade de resiliência, de suportar as dificuldades. A outra coisa é a busca da perfeição. Quando você vai aprendendo essa perfeição na arte que você pratica, em todas as outras coisas que você faz na vida, procura ter uma excelência daquele tipo”.
O karatê ganhou muita relevância na mídia após o lançamento da série Cobra Kai, em 2018. A obra, baseada na franquia de filmes Karatê Kid, retoma a antiga rivalidade entre Johnny Lawrence — antagonista dos filmes de 1984 — e Daniel LaRusso — o Daniel-san, protagonista. Na história, Lawrence reabre o dojô em que aprendeu a lutar, o Cobra Kai, e com isso traz de volta a filosofia dos cobras: “acerte primeiro, acerte firme, sem compaixão”. Muitos jovens, atraídos pela série, começaram a praticar o esporte nos últimos anos. “A minha academia tinha muito pouca criança. Agora com o Cobra Kai — que eu confesso que não assisti, mas tenho que assistir porque as crianças me cobram isso — tá cheio de criança”, afirma.
As falas de praticantes experientes mostram que a filosofia do dojô que dá nome à série não se parece com a realidade: o “acerte primeiro” é o oposto do ensinamento de Funakoshi: karate ni sente nashi — “no karatê não existe atitude ofensiva” —, que diz que se uma luta é evitável, então ela deve ser evitada.
E mesmo a piedade floresce no lutador conforme ele avança em sua prática. “Às vezes, esse poder que você pensa que adquire para vencer um adversário te traz uma compaixão pelo ser humano. Como você se sente frágil e vê como o outro é frágil e impermanente, você começa a ver a beleza em coisas simples”, finaliza Rocha.
Autora: Ingrid Gonzaga.