Virginia Woolf, Emily Dickinson, Patricia Highsmith: o que essas e outras grandes escritoras têm em comum?
A palavra “sáfica” é utilizada atualmente entre a comunidade LGBTQIAP+ como um termo guarda-chuva para englobar todas as mulheres que se relacionam com mulheres, sejam elas lésbicas, bissexuais ou panssexuais. O termo vem da poetisa Safo, da ilha grega de Lesbos. Seus poemas, datados de cerca de 2600 anos atrás, sobreviveram ao teste do tempo e tornaram-se famosos entre a comunidade sáfica por tratarem do amor entre mulheres. A palavra lésbica, inclusive, tem o sentido original de “alguém de Lesbos”. Se na Grécia Antiga Safo poderia expressar seus desejos homoeróticos e mesmo assim ter seus poemas reconhecidos, na idade contemporânea os estudos sobre essa personagem histórica insistem em apagar sua lesbianidade.
Da Antiguidade até hoje, muitas escritoras não-heterossexuais surgiram, mas poucas foram e são reconhecidas como tal. Para Luísa Caron, mestre em Estudos da Literatura pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e autora do artigo “Uma flor em metamorfose: A existência lésbica em ‘Momentos de ser: Os alfinetes de Slater não têm pontas’, de Virginia Woolf”, isso é resultado de um projeto: “Existe um reforço constante de certos setores da sociedade, aqueles que detêm o poder, em preservar a ideia de que a heterossexualidade é o ‘normal’ enquanto qualquer outra manifestação afetiva e sexual que se distancie dessa norma é desviante, problemático e deve ser, por isso, rechaçado, ‘consertado’ ou simplesmente ignorado”.
Os corpos na escrita
No dia 2 de outubro de 1928, Virginia Woolf publicou Orlando, uma de suas obras mais famosas e aclamadas até hoje. O livro é um marco para os estudos de gênero e foi grande objeto de estudo a partir da revisão feminista das obras de Virginia, acontecida nos anos 1970. No entanto, o que na época de lançamento poucos sabiam e, até hoje, poucos se preocupam em considerar, é que Orlando foi escrito para o grande amor da vida de Woolf, a poetisa Vita Sackville-West.
O relacionamento entre as duas escritoras foi documentado através de cartas trocadas por elas durante quase 20 anos, até o suicídio de Woolf em 1941. Nelas, as autoras não só falavam de amor, mas também de seus novos escritos e pensamentos. Vita foi uma grande influência na vida de Virginia. Porque, então, não se fala dela quando se pensa em Virginia Woolf? Para Caron, “é uma via fácil de invisibilização colocar a relação dela [Woolf] com a Vita como uma coisa menor, ou dizer que não é importante ressaltar isso, que o fato da literatura dela ser grandiosa passa longe das questões de sexualidade”. Ela explica que “o corpo está sempre implicado na escrita”, isto é, a constituição dessas autoras enquanto mulheres sáficas sempre influenciará em suas leituras de mundo e, consequentemente, em suas escritas. Ignorar isso é deixar de ler algo importante em seus textos.
Um século antes de Woolf, Emily Dickinson também tinha uma musa inspiradora para grande parte de seus poemas, sua cunhada e amiga de infância Susan Gilbert. No entanto, a sexualidade de Dickinson sempre foi motivo de polêmica entre os pesquisadores de sua obra. Isso se reflete também nas diversas cinebiografias já feitas sobre Emily. Enquanto, por exemplo, Dickinson (2019-2021), a série da AppleTV+, é construída em torno do relacionamento das duas, filmes como Além das Palavras (A Quiet Passion, 2016) ignoram quase completamente sua relação.
Um exemplo mais contemporâneo é Patricia Highsmith, que ficou conhecida por seus livros de suspense psicológico como O Talentoso Ripley (1955), mas antes desse ela lançou, sob o pseudônimo de Claire Morgan, um romance sáfico, ignorado até pouco tempo atrás: The Price of Salt (1952), que em 2015 foi relançado como Carol. O período de escrita do livro coincide com o momento em que Highsmith duvidava da própria sexualidade, e o fato de ele ter um final feliz foi uma quieta revolução na década de 1950, quando a homofobia ainda era institucionalizada nos Estados Unidos.
O resgate
Se, como afirma Caron, “é curioso que ainda não haja muitos trabalhos acadêmicos que coloquem a sexualidade como questão central na obra dessas autoras mais consolidadas”, a ficção tem feito um importante papel de resgate da história dessas escritoras. Nos últimos anos, foi lançado um filme sobre o romance entre Woolf e Sackville-West, Vita e Virgínia (2018), além da série Dickinson, que é renovadora ao retratar Emily com alegria, humor e paixão. Em 2015, chegou aos cinemas, também, a adaptação cinematográfica de Carol, que recebeu 6 indicações ao Oscar, inclusive de Melhor Atriz e Melhor Atriz Coadjuvante, fazendo com que uma nova geração descobrisse o livro.
Na internet, seja em fóruns de discussão ou em redes sociais como o Twitter, as mulheres que se sentem representadas pelas autoras e suas histórias também trabalham para manter suas verdadeiras histórias vivas. Um exemplo disso são os perfis @VitaVirginiaBot e @emilydicknsnbot no Twitter, dedicados a divulgar excertos das cartas trocadas entre Vita e Virginia e dos poemas e cartas escritos por Emily Dickinson para Sue, respectivamente.
O presente e o futuro
É fácil para alguns ignorar que pessoas LGBTQIAP+ existiam no passado, mas hoje isso se tornou cada vez mais difícil. Para Caron, “esse movimento da indústria cultural de abordar personagens LGBT, por pressão do próprio público, e para vender produtos para esse nicho da “diversidade” faz com que haja essa ilusão de que hoje existem mais pessoas LGBT, quando na verdade, essas pessoas sempre existiram, só não puderam escrever suas histórias e, se escreveram, tiveram essas histórias apagadas ou não reconhecidas”. Apesar da literatura sáfica ainda ser considerada uma literatura de nicho, escritoras que abordam questões LGBTQIAP+ em seus textos, como Angélica Freitas e Conceição Evaristo, são reconhecidas dentro da academia brasileira e outras tantas escrevem sendo assumidamente lésbicas. É um indicativo que o caminho futuro é de evolução.
Virginia, Vita, Emily, Patricia e tantas mais abriram caminhos para que outras escritoras que amam mulheres pudessem se sentir livres para escrever o que sentem. Retirar a perspectiva LGBTQIAP+ de suas obras é reduzir seu conteúdo e negar que essas escritoras possam ser vistas em sua completude. É, também, perpetuar a falácia de que ser LGBT é algo novo, porque, sim, nossos artistas preferidos do passado poderiam ser gays, bissexuais, lésbicas, ou qualquer outra orientação que não a heterossexual, como muitos, de fato, eram.
Autora: Ana Mércia Brandão.
Fonte: Jornalismo Júnior/USP.