Insegurança alimentar no Brasil: um paralelo entre fome e desigualdade

Mais de 125 milhões de brasileiros não têm garantia de alimentação digna prevista na constituição.

“Quem governa o nosso país é quem tem dinheiro, 

quem não sabe o que é a fome.” –

Carolina Maria de Jesus, Quarto de despejo

Escrita em 1959, a denúncia no relato da escritora Carolina Maria de Jesus parece mais atual do que nunca para a população brasileira. Durante os dois primeiros anos da pandemia de covid-19, houve um empobrecimento recorde da população brasileira. Dados coletados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que mais de 62 milhões de brasileiros estavam abaixo da linha da pobreza em 2021, um crescimento de 11,5 milhões em relação ao ano anterior.

A pandemia teve, e ainda tem, impactos em muitas frentes, como a precarização do trabalho, a redução no consumo de serviços e o endividamento das famílias. Entre eles, está uma consequência diretamente ligada às necessidades básicas do ser humano: a insegurança alimentar (IA). 

Índices de pobreza e extrema pobreza no período entre 2018 e 2021

AnoPobreza (Relativo – %)Extrema pobreza (Relativo – %)
201852 500 000 (25,3%)13 500 000 (6,5%)
201951 742 000 (24,7%)13 689 000 (6,5%)
202050 953 000 (24,1%)12 046 000 (5,7%)
202162 525 000 (29,4%)17 858 000 (8,4%)

Tabela sobre nível de pobreza entre 2018 e 2021. [Imagem: Reprodução / IBGE]

A emergência sanitária, no entanto, não originou o cenário de fome, apenas o intensificou. Longe de ser uma mazela exclusivamente atual, a realidade da insegurança alimentar no Brasil escancara um paralelo entre a alimentação e o poder, enraizado na história brasileira e que tem retornado com intensidade a níveis graves. O quadro da fome do Brasil não apresentou melhoras depois da saída do país do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU) em 2014.

Hoje, o direito à alimentação em qualidade e quantidade suficientes não é garantido para mais de 125 milhões de brasileiros, segundo o relatório II VIGISAN da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Penssan). Desse montante, 33 milhões encontram-se em situação de insegurança alimentar grave, a fome.

Enquanto a maioria da população do País não sabe se terá a próxima refeição, o agronegócio nacional bate recordes de exportação e aparecem escândalos de corrupção do governo federal envolvendo alimentos, a exemplo das 570 toneladas de picanha compradas pelo Exército e dos R$ 15 milhões de leite condensado gastos pelo Executivo. 

Soja, o carro-chefe do agronegócio nacional, tem projeção recorde para a safra de 2022/23. Porém, pouco dela alimenta as bocas brasileiras [Imagem: Reprodução/Instagram/Cepea Esalq USP]

A fome e a insegurança alimentar

De acordo com a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional de 2006 (Losan), criada durante o governo Lula, a segurança alimentar e nutricional é definida como “A realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais tendo como base práticas alimentares promotoras da saúde, que respeitam a diversidade cultural e que sejam social, econômica e ambientalmente sustentáveis”.

João Peres, jornalista fundador do O Joio e o Trigo, um portal de jornalismo investigativo sobre alimentação, saúde e poder, considera a Losan um instrumento emblemático na promoção da segurança alimentar (SA) a nível nacional. “Ela não fala simplesmente em garantir a alimentação adequada, fala em garantir a alimentação adequada e saudável, sem que isso comprometa outros direitos, respeitando o meio ambiente, a cultura alimentar diversa que a gente tem no país”, elabora.

Embora os conceitos de fome e insegurança alimentar estejam interligados, eles têm suas diferenças tanto em determinantes como em consequências. A Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA), que avalia as dimensões da segurança alimentar e nutricional de uma população, categorizando-a em quatro graus:

Definições dos graus de Segurança Alimentar (SA)

Graus de SACaracterísticas gerais
Segurança Alimentar (SA)Os indivíduos têm garantia de acesso pleno aos alimentos.
Insegurança Alimentar Leve (IL)Os indivíduos têm preocupação quanto à possível incapacidade de obter alimentos no futuro próximo e comprometimento da qualidade da alimentação.
Insegurança Alimentar Moderada (IM)Os indivíduos têm insuficiência de alimentos que atendam às suas necessidades.
Insegurança Alimentar Grave (IG) / FomeOs indivíduos têm carência de alimentos que fornecem as calorias e nutrientes básicos para a sobrevivência de um organismo.

Tabela sobre graus de Segurança Alimentar. [Imagem: Reprodução / Rede PENSSAN]

A insegurança alimentar compreende os três últimos graus, nos quais a disponibilidade e acesso de alimentos não é permanente. Como parte da categorização, a fome ou insegurança alimentar grave deve ser destacada por ser ligada diretamente à sobrevivência. 

Para esquematizar os graus, são consideradas quatro dimensões de segurança alimentar: a disponibilidade do alimento, o seu acesso, a sua utilização e a estabilidade, que refere-se ao caráter temporal da IA. A disponibilidade diz respeito à produção de alimentos, comércio interno e externo, o abastecimento e distribuição desses alimentos. O acesso refere-se à capacidade de obtenção dos alimentos produzidos, envolvendo preços, quantidade disponível, por exemplo. O preparo e condições biológico-nutricionais estão ligadas à utilização, enquanto a estabilidade pode determinar se as demais dimensões são afetadas de forma crônica, sazonal ou temporária.

As experiências da fome

Para Josué de Castro, médico, nutrólogo e ativista do combate à fome no século XX, são dois os tipos de fome: a aguda, também denominada inanição, é aquela na qual o grupo não se alimenta e definha até a morte; e a crônica, marcada pela falta permanente de componentes nutritivos e que não ocorre em crises ou surtos de fome, mas que atinge de maneira contínua parte da população.

Falta de peixes no litoral do Pará é efeito da pesca industrial [Imagem: Reprodução/Instagram/Cátedra Josué de Castro]

“O Brasil nunca extinguiu a fome crônica, oculta, endêmica, esse fenômeno acontece nas diversas regiões do país através de uma combinação de fatores locais e específicos e através de estruturas mais amplas em nível nacional e até mesmo internacional”, declara Lis Blanco, coordenadora do GT (grupo de trabalho) “Comida e Cultura” da Rede PENSSAN.

A escritora Carolina Maria de Jesus caracteriza a fome com uma cor – a amarela. Em Quarto de despejo, ela relata: “Eu, que antes de comer via o céu, as árvores, as aves, tudo amarelo, depois que comi, tudo normalizou-se aos meus olhos”. Incapaz de nutrir seus filhos por completo, a escritora também lidava com a fome crônica, decorrente da pobreza na qual estava inserida.

“A frase comida ficou eclodindo dentro do meu cérebro. 

Parece que o meu pensamento repetia: ‘Comida! Comida! Comida!’

Dizem que o Brasil já foi bom. Mas eu não sou da época do Brasil bom… 

Hoje eu fui me olhar no espelho. Fiquei horrorizada. 

O meu rosto é quase igual ao de minha saudosa mãe. 

E estou sem dente. Magra. 

Pudera! O medo de morrer de fome!” –

Carolina Maria de Jesus, Quarto de despejo

A realidade em 2022 continua alarmante. Sem poder de compra, muitas pessoas foram obrigadas a limitar a variedade e quantidade dos alimentos consumidos.

“A gente vai diminuindo as coisas que a gente come até que chega num ponto em que a gente só come arroz com ovo e em pequenas quantidades. Nem todos os dias a gente tem pão no café da manhã. A gente só come isso durante todo mês”, conta Pedro Carmo, morador da favela no Jardim Cláudia, bairro de São Bernardo do Campo.

O desalento diante da falta de recursos para se alimentar e a frustração por não conseguir uma fonte de renda afetou as mesas e o ânimo dos famintos. Carmo descreve que a insegurança alimentar cessa perspectivas de melhora na condição de vida, sobretudo pelas mudanças individuais terem pouco efeito. Ele confessa que “é quase uma sensação de humilhação, só que sem espectadores. Às vezes, muito além de uma humilhação, causa uma sensação de desesperança em relação ao futuro.”

O panorama atual 

Em 2013, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) revelou que 48 milhões de brasileiros (23,9% da população total do País) não tinham pleno acesso aos alimentos, seja em quantidade seja em qualidade.  Desse montante, mais de 8 milhões de pessoas (4,2%) passavam pela privação severa no consumo de alimentos – a fome – no Brasil.

“Foi a partir da pandemia [da covid-19] que as coisas começaram a realmente ficar ruins, os preços dos alimentos foram aumentando bastante”, conta Carmo. Consequência direta do empobrecimento gradual da população brasileira, a insegurança alimentar tem se agravado, sobretudo desde o início da pandemia do covid-19. De acordo com dados do relatório II VIGISAN, captados em abril de 2022, 125,2 milhões de brasileiros (58,7%) encontram-se nessa situação. 

Gráfico da divisão percentual dos níveis de segurança alimentar no Brasil e a localização dos domicílios, com base nos dados do Relatório II Vigisan 2022 – Inquérito nacional sobre insegurança alimentar no contexto da pandemia da Covid-19 no Brasil em 2022 [Infográfico: Tulio Shiraishi / Jornalismo Júnior]

No período de um ano e quatro meses, entre dezembro de 2020 e abril de 2022, o contingente de pessoas em estado de insegurança alimentar grave passou de 19,1 milhões de pessoas para 33,1 milhões – crescimento de 73%. Desde 2013, houve uma queda vertiginosa na SA das mesas dos domicílios brasileiros. Nos últimos nove anos, 73 milhões de brasileiros passaram a vivenciar a restrição de alimentação adequada.

Peres acrescenta que o atual ciclo de fome vem depois de o Brasil ter alcançado um baixo nível de insegurança alimentar e nutricional grave em comparação com o início dos anos 2000. “É mais grave porque a gente conhece as políticas públicas que são necessárias para superar essa fome. A gente simplesmente desmontou as políticas, o que seria impensável”, reflete.

O enfrentamento à fome em nível nacional

No dia 1 de janeiro de 2019, o primeiro dia de mandato do presidente Jair Bolsonaro,  foi promulgada a Medida Provisória n°870, que, na prática, extinguiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). O órgão era responsável pelo monitoramento e articulação de programas de políticas públicas de segurança alimentar e nutricional e de combate à fome nas três instâncias de governo: municipal, estadual e federal. 

Mesmo com a criação de uma Comissão Especial Mista – nome dado às comissões temporárias com objetivo de emitir parecer às MPVs adotadas pelo Presidente da República – não foi permitida a recriação do Consea. Bolsonaro vetou o inciso sob a justificativa de invasão das competências no que diz respeito ao remodelamento de “regras de competência, funcionamento e organização de órgão do Poder Executivo”. O Congresso Nacional votou a favor da decisão do chefe do Executivo. 

Jair Bolsonaro, presidente da República, discursa ao lado de Luiz Henrique Mandetta, ex-ministro da Saúde, em maio de 2019 [Imagem: Reprodução / Wikimedia Commons/ Carolina Antunes]

“A extinção do Consea deu o tom das medidas que viriam a seguir, tanto relacionadas à aprovação de diversos agrotóxicos, como na diminuição de investimento para agricultura familiar e redução dos estoques de grãos, quanto em relação às políticas mais diretas de combate à fome”, avalia a coordenadora Lis Blanco.

Com uma composição estruturada em ⅔ dos membros provenientes da sociedade civil e ⅓ do governo, o conselho surgiu da reivindicação popular nos anos 1990. Criado durante o governo de Itamar Franco, o órgão foi extinto no mandato de Fernando Henrique Cardoso e reabilitado com Lula. Blanco descreve que o Consea não se resume a um órgão de articulação, é também um órgão de participação social, com representação de instituições, grupos, entidades e movimentos de toda a sociedade civil.

Além do abandono do Consea, órgãos como o Sisan (Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional), planos como o Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN) e o Programa Fome Zero – liderado pelo antigo programa de transferência de renda Bolsa Família, atual Auxílio Brasil  – também deixaram de favorecer a soberania alimentar brasileira.

Com a eleição de Lula, que colocou o combate à fome como compromisso número um em seu primeiro discurso como presidente eleito, João Peres considera os próximos anos como primordiais na conjuntura de segurança alimentar. “Acho que reverter essas medidas e descobrir o que é uma matriz econômica do século 21 também é um desafio porque a gente vai ter, em 2023, um governo presidido pelo Lula. 20 anos atrás, ele tentou um conjunto de políticas públicas que funcionava naquele contexto.” 

Em números: regionalização da IA

Desassistidos de ações de combate à fome, 15,5% da população sentem o vazio no estômago todos os dias. Em comparação, o número equivale a três vezes o total de habitantes em Cuba e supera a Venezuela, por exemplo. Se considerada a IA no Brasil como um todo, o montante de pessoas em tal condição equivaleria a 12ª maior população do mundo.

O relatório II VIGISAN exibe que as regiões Norte e Nordeste, somadas, possuem sete a cada dez habitantes com algum grau de vulnerabilidade alimentar(quase 53 milhões de pessoas). No Norte do país, 71,6% dos domicílios experienciam IA e quase 26% passam fome. Por sua vez, o Nordeste abriga 12 milhões de pessoas com baixo acesso pleno aos alimentos. Maranhão, Alagoas, Pernambuco e Amazonas são os estados com maior percentual de pobreza, respectivamente.

Diretamente associada ao emprego e à renda, a fome no Brasil também engloba questões como a educação, saneamento e saúde. “Esses processos têm características regionais mas seguem uma tendência nacional associada ao desemprego, precarização, informalização, racismo e desigualdade social, o que faz  com que a fome crônica continue assombrando o país”, explica Blanco.

É no meio urbano onde concentra-se o maior contingente populacional de famintos: 27 milhões de brasileiros sem a garantia do direito humano. De acordo com levantamento do IBGE com base em cálculos do Banco Mundial, em 2021, 1 a cada 4 pobres (pessoas vivendo com menos de US$ 5,50, isto é, R$ 28,00 por dia) no Brasil habitava a região Sudeste, por exemplo. Ela reforça seu ponto: “Acho importante vermos que o estado de São Paulo tem um número impressionante de pessoas que sobrevivem cotidianamente com fome e olharmos para os dados sobre desemprego, informalidade e renda.”

Nas áreas rurais, o quadro de insegurança alimentar atinge 63,8% dos domicílios e o de fome 18,6%. Em um recorte mais específico, nos domicílios de agricultores familiares/produtores rurais a IA grave atingia mais de ⅕ dos moradores. Entre outros fatores, o principal motivo para a calamidade foi a desvalorização nos preços dos alimentos vendidos pelos produtores, embora essa queda não tenha se refletido no bolso dos consumidores brasileiros.

A agricultura familiar é responsável por 70% dos alimentos no prato do brasileiro, segundo o IBGE [Imagem: Reprodução /Instagram / Cátedra Josué de Castro]

Protagonista no abastecimento interno de alimentos, a agricultura familiar abrange pequenos produtores rurais, povos e comunidades tradicionais e assentados da reforma agrária. Esse tipo de produção prioriza o desenvolvimento econômico regional e sustentável, principalmente ao incentivar a diversidade de alimentos em lavouras policultoras e impedir o uso de agrotóxicos. 

A intersetorialidade do setor agrícola familiar viabiliza o vínculo com as merendas escolares através do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), por exemplo.  O inciso V do artigo 2° da Lei N° 11.947/09 formaliza como diretriz da alimentação escolar: “O apoio ao desenvolvimento sustentável, com incentivos para a aquisição de gêneros alimentícios diversificados, produzidos em âmbito local e preferencialmente pela agricultura familiar e pelos empreendedores familiares rurais, priorizando as comunidades tradicionais indígenas e de remanescentes de quilombos”.

O PNAE garante alimentação adequada e saudável a, aproximadamente, 40,3 milhões de estudantes diariamente. Sem reajuste desde 2017, o limitado orçamento de R$ 0,32 a R$ 2,00 para a alimentação escolar de cada estudante da educação básica pública, por dia letivo, é incumbido de satisfazer as necessidades nutricionais de jovens e adolescentes. 

Além de alimentar estudantes, os agricultores familiares promovem campanhas de assistência e solidariedade por todo o país. Agente central no abastecimento interno, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) doou cerca de 100 toneladas de alimentos com a Jornada Solidária do Natal Sem Fome. Segundo a página do movimento, desde o início da pandemia, foram doados mais de 8 toneladas de alimentos, 10 mil cestas básicas e 2 milhões de marmitas no combate à insegurança alimentar.

O papel do movimento não se limita à assistência de caridade e chega à mesa do consumidor rural e urbano. O MST cultiva café, cana-de-açúcar, grãos, sementes, entre outros produtos. O arroz, base do prato brasileiro, se destaca na cadeia produtiva: o movimento é o maior produtor do grão orgânico na América Latina. 

A renda importa

A correlação entre o rendimento familiar e o acesso à alimentação adequada e saudável retrata diretamente as desigualdades socioeconômicas no Brasil, que foram ainda mais acentuadas com a pandemia. Sem sustentação de políticas públicas ou estabilidade profissional, os domicílios brasileiros de menor renda foram assolados pela insegurança alimentar e, em casos mais severos, pela IA grave.

Desde a saída do Brasil do Mapa da Fome, o governo brasileiro desarticulou políticas públicas de garantia alimentar e desmembrou órgãos intersetoriais que auxiliam as classes mais pobres da sociedade. Como exemplo, é possível mencionar o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA), que articula a SA com a agricultura familiar, segmento indispensável nas refeições do brasileiro.

Campanha “Vacina contra a fome” promove doação de alimentos em drive-thru de vacinação contra a Covid-19 em abril de 2021 [Imagem: Reprodução / Flickr Commons/ Governo do Estado de São Paulo] 

Carmo considera que a má gestão do governo brasileiro durante a pandemia agravou a situação dos habitantes. A falta de assistência, como a aplicação de programas de transferência de renda e a resposta rápida ao alastramento da covid-19, não facilitaram o cotidiano do trabalhador. “O Brasil não fez isso, ele fez o contrário”, analisa.

Como confirmação da falta de assistência no aumento do rendimento salarial, o relatório II VIGISAN indica que 91% dos domicílios com até ¼ de salário mínimo per capita (SMPC) passavam por algum tipo de insegurança alimentar. Entre o final de 2020 e abril de 2022, a fome dobrou nessa classe. Por outro lado, a SA esteve presente em 2 a cada 3 nas casas com mais de 1 SMPC.

“Ficou bem complicado sustentar as contas porque novamente era só um salário mínimo [em casa] e um salário mínimo não sustentava mais as coisas como sustentava antes. A gente passou a diminuir a quantidade do que a gente comia cada vez mais e diminuir também as carnes que a gente comia. Passamos a comer mais ovo nessa época”, diz Pedro Carmo.

Em novembro de 2022, o valor da cesta básica era de R$ 782,68 na cidade de São Paulo, segundo pesquisa realizada pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). O custo dos alimentos básicos corresponde a 65% do salário mínimo vigente de R$ 1.212,00. Em outubro de 2022, o salário mínimo necessário para uma família de quatro pessoas deveria ter sido de R$ 6.575,30.

No Brasil, o rendimento médio domiciliar per capita em 2019 atingiu R$ 1.520, mostram dados da Síntese de Indicadores Sociais, do IBGE. Contudo, foram observados dois decréscimos seguidos no rendimento: 4,3% em 2020 e 6,9% em 2021. A média de R$ 1.353, registrada em 2021 foi a menor da série histórica, calculada desde 2012.

A fome no Brasil: um ato político

Segundo Josué de Castro, em seu livro Geografia da Fome (1951), a fome seria resultado da relação desarmônica entre o homem e o meio, provocada por fatores sociais. Ao contrário do que se propunha na época, a fome não era resultado da natureza, mas fruto das ações e decisões econômicas humanas. Portanto, a insegurança alimentar, em seus mais variados níveis, é uma medida política.

Retirantes camponeses abandonam o sertão cearense para fugir da fome derivada da Grande Seca, o mais intenso fenômeno de seca na história do Brasil, entre 1877 e 1879 [Imagem: Reprodução / Flickr Commons]

Na última década, o declínio na porcentagem de domicílios com SA evidencia o desmonte das políticas públicas de combate à fome e o empobrecimento da população, principalmente das classes mais pobres. O Pnad 2022 expõe que a parcela de 10% da população brasileira mais pobre teve uma queda de 31,3% no rendimento domiciliar per capita entre 2012 e 2021. Peres aponta que a inviabilidade do direito humano à alimentação adequada e saudável é fruto de uma série de decisões políticas e econômicas tomadas, especialmente, pelo Governo Federal. 

Apesar disso, a questão da insegurança alimentar não é recente na história do país. Para Lis Blanco, desde a colonização até hoje em dia, é possível entender que está vigente um modelo de desenvolvimento baseado em exploração, das pessoas sobre as pessoas e delas com a natureza, o que resulta na fome. “O Brasil nasceu fruto de uma desigualdade sistêmica, em que até mesmo a nutrição era um artifício de hierarquização e subjugação dos europeus sobre os povos indígenas e africanos.”

João Peres vê o histórico de insegurança alimentar como uma “questão de escolhas políticas, mais uma vez pautadas por elites que se transformaram”. Da elite rural fixada no campo para uma elite financeira, a relação entre a produção de alimentos e o capital afastou a garantia de um direito humano seguindo caminhos distintos.

“No Brasil, ninguém dorme por causa da fome. 

Metade porque está com fome 

e a outra metade porque tem medo de quem tem fome” –

Josué de Castro, Geografia da Fome

O acesso à terra é a peça central no tabuleiro – e um instrumento político concentrado nas mãos de poucos jogadores. A Lei de Terras de 1850 impediu o acesso da população escravizada e a distribuição igualitária de terrenos, exemplifica Peres. Seja cana-de-açúcar, seja café ou soja, o modelo latifundiário de monocultura para exportação de produtos agrícolas primários se tornou regra no país. 

Na segunda metade do século 20, a modernização das tecnologias rurais– vide a criação da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) – desenvolveu o setor agropecuário e culminou no agronegócio. Um campo unificado, o agronegócio não interfere apenas no âmbito econômico como também é uma força política definidora das próprias dinâmicas de poder do Brasil. 

“É todo mundo junto nessa mesma concepção e que tem uma força política e econômica capaz de eleger e ‘deseleger’ governos”, atesta Peres, que coloca como fundamental a participação do setor no impeachment de Dilma Rousseff e na sustentação de Jair Bolsonaro. A Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), apelidada de Bancada Ruralista, tem 176 parlamentares garantidos até 2026. 

O ex-presidente, Michel Temer, recebe a Frente Parlamentar Agropecuária em agosto de 2017 [Imagem: Reprodução / Wikimedia Commons]

Ao optar pela exportação das monoculturas, o agronegócio não alimenta o mercado interno brasileiro, aprova milhares de agrotóxicos e promove a especulação imobiliária. “Houve uma série de mudanças de alguns instrumentos jurídicos nos últimos dois, três anos que deram um boom no atrelamento das terras brasileiras ao mercado financeiro”, alega João Peres. Ele menciona como exemplos o Certificado de Recebíveis do Agronegócio (CRA), a Letra de Crédito do Agronegócio (LCA) e a Cédula de Produto Rural (CPR).

“Sem um questionamento dessa forma de desenvolvimento, entendendo terra e trabalho como centrais para a vida humana, pensando em reforma agrária, soberania alimentar, fim das monoculturas, questionar somente a exportação é tentar resolver só uma parte do problema”, critica Lis Blanco.

Além de violar o direito humano de uma alimentação adequada e saudável, garantido pela Constituição, a insegurança alimentar é também um mecanismo político. Lis Blanco ainda pontua: “A fome era central no processo de colonização e segue sendo uma forma de governo até hoje.”

Autor: Tulio Gonzaga.

Fonte: Jornalismo Júnior/USP.