A história da primeira brasileira a ganhar duas medalhas em uma única edição de Olimpíadas.
A história de Rebeca Andrade começa em Guarulhos, região metropolitana de São Paulo, onde nasceu, no dia 8 de maio de 1999. A ginasta morava na periferia, juntamente com seus seis irmãos. Sua mãe trabalhava como faxineira para conseguir cuidar de sete filhos sozinha, já que seu pai se afastou da família, deixando-a sozinha.
Com quatro anos de idade, Rebeca ingressou na ginástica artística por meio de um projeto local de incentivo ao esporte. No entanto, as coisas não foram fáceis para a pequena ginasta. Em determinado momento de sua infância, sua mãe não conseguia arcar com as despesas da passagem de ônibus, fazendo com que Rebeca precisasse andar duas horas por dia para conseguir chegar aos treinos. Seu irmão a acompanhava, visto que ela era pequena e que sua mãe estava trabalhando.
Em entrevista para a Forbes, em 16 de novembro de 2023, Rebeca contou que “tinha chão para chegar no ginásio, tinha chão para a gente comer, mas tudo valeu a pena. O apoio dos familiares foi fundamental, eles faziam isso porque me amavam e acreditavam em mim”.
Com dez anos de idade, Rebeca foi para Curitiba sozinha, na esperança de conseguir uma melhor qualidade de treinamento. Um ano depois, em 2011, Rebeca mudou-se para o Rio de Janeiro e foi treinar no Clube de Regatas do Flamengo, onde encontrou uma melhor estrutura, que a permitiu treinar com mais intensidade e participar de competições internacionais.
[Reprodução / YouTube: Clube do VAR]
Primeiras conquistas
A menina prodígio fez sua estreia internacional aos treze anos de idade em Medellín, na Colômbia, no Campeonato Pan-Americano de Ginástica Artística de 2012. Rebeca conquistou, junto com suas companheiras da seleção brasileira, uma medalha de prata no evento por equipes. Além da sua participação em conjunto, a ginasta conquistou a medalha de ouro em outras três provas: individual geral, salto e solo, além de uma medalha de bronze na trave.
No ano seguinte, Rebeca manteve seu sucesso nas provas, conquistando o ouro na categoria individual da competição Nadia Comăneci Invitational, em Oklahoma, nos Estados Unidos. Em agosto, ajudou a equipe brasileira a conquistar uma medalha de ouro no Campeonato Sul-Americano Júnior, além de ter ganhado ouro individual no salto e nas barras assimétricas, prata na trave — atrás apenas da brasileira Flavinha Saraiva —, e bronze na categoria individual geral, atrás das brasileiras Lorraine Oliveira e Flávia Saraiva.
Em novembro, a atleta participou da Gimnasiada, em Brasília, como parte da equipe brasileira que conquistou o vice-campeonato atrás da Rússia. Rebeca também conquistou o bronze na competição individual geral, atrás da russa Alla Sosnitskaya e da brasileira Flávia Saraiva. Nas finais por aparelho, ela conquistou medalha de ouro no salto e o sexto lugar no salto.
Em 2014 a ginasta brasileira sofreu uma fratura no dedão do pé, que a tirou dos Jogos Olímpicos de Verão da Juventude daquele ano, em Nanquim, na China. Rebeca foi substituída por Flavinha Saraiva, e encerrou a temporada precocemente.
Com o decorrer dos anos, Rebeca acumulou medalhas em diversas competições, mesmo com duas lesões entre os anos de 2014 e 2019, que impossibilitaram a atleta de aumentar seu portfólio de conquistas.
O emblemático Baile de Favela
A prova do solo é marcada pela fusão da dança com as acrobacias. Além disso, é a única etapa da competição que permite o uso do som para complementar sua apresentação, sendo considerada parte dos quesitos avaliativos para a nota final. Segundo o regulamento da FIG (Federação Internacional de Ginástica), a música escolhida deve ajudar a ginasta a destacar suas características únicas e estilo próprio, e o caráter da música deve guiar a ideia central da coreografia.
Em 2021, no palco de 12×12 metros na região central do ginásio, Rebeca estreou oficialmente o trabalho feito pelo coreógrafo Rhony Ferreira, misturando a trilha sonora de Bach com Baile de Favela. O uso do funk foi uma inovação,já que o ritmo do hit de 2015 pouco havia sido visto em competições de nível internacional. A expectativa eram músicas clássicas ou eletrônicas, como grande parte dos atletas escolhem, por ser mais fácil de se adequar às regras da FIG: a música escolhida não pode conter trechos cantados ou palavras enunciadas, a voz humana deve ser considerada um instrumento musical na composição.
Essa jogada colocou a cultura periférica performada por uma mulher negra brasileira no centro de atenção do mundo inteiro, em um palco conhecido pela música “erudita”. Anteriormente, a maior referência de uma performance brasileira tão marcada na mídia foi a apresentação de Daiane dos Santos, com Brasileirinho, nas olimpíadas de Atenas, em 2004. O duplo twist carpado, a cuíca e o samba na arena conquistaram, não apenas quatro medalhas de ouro em competições mundiais, mas o mundo todo.
Em entrevista para a Folha de São Paulo, em 2021, Rebeca desabafou: “O funk é nossa cultura, um dos estilos mais escutados no Brasil, e eu sou muito brasileira raiz, gosto de me mostrar. Saber que eu vou levar isso para fora [do país] é ‘mó responsa’. Mas assim como gosto de conhecer culturas de outros países, quero que as pessoas também conheçam mais do nosso estilo”.
Além da importância simbólica da música periférica brasileira estar sendo vista pela primeira vez em um ambiente de protagonismo, o solo também marcou a carreira de Rebeca. A coreografia fez parte da conquista do segundo lugar no individual geral das Olimpíadas de Tóquio de 2020, primeiro lugar no individual geral pelo Pan-Americano Rio 2021, primeiro lugar no individual geral e terceiro lugar no solo pelo Mundial de Liverpool.
No mundial de ginástica de 2023, realizado na cidade de Antuérpia, na Bélgica, Rebeca apresentou outro solo na final por equipes, também ao som do funk, mas, desta vez, o ritmo da vez era o instrumental de “Movimento da Sanfoninha” por Anitta. Essa coreografia levou duas pratas para casa pelo individual geral e pela prova do solo.
Ao escolher Baile de Favela ou Movimento da Sanfoninha, Rebeca e sua equipe mandam uma mensagem clara: o funk é brasileiro e devemos ter orgulho dos nossos ritmos, culturas e diversidade. Abrem-se as portas para abrasileirar um esporte dominado por nações europeias e atletas estadunidenses.
O ouro em Tóquio
Para os Jogos Olímpicos de 2020 — que ocorreram em 2021 devido à pandemia do Covid-19 —, o Time Brasil de ginástica chegou com o peso de um histórico de poucos sucessos. Apesar de ter produzido destaques no esporte de acrobacias, e ter conquistado diversos pódios em campeonatos sulamericanos, panamericanos e mundiais, o Brasil nunca obteve sucesso nas olimpíadas.
“O maior resultado da história da ginástica feminina no brasil”
Galvão Bueno, para o documentário “É Ouro! O Brilho do Brasil em Tóquio”, da Globoplay.
Para vencer a norte-americana Simone Biles, quatro vezes medalhista de ouro em Olimpíadas, Rebeca sabia que seria necessário aumentar a dificuldade dos saltos. O salto realizado pela atleta é chamado de Salto Cheng, batizado em homenagem à primeira ginasta que o realizou, a chinesa Cheng Fei, campeã olímpica em Pequim 2008. Seu grau de dificuldade é alto, de 6,00 pontos.
Rebeca fez um excelente Cheng, com um pequeno desvio de direção que levou a ginasta a pisar um pouco fora da área, mas alcançando a pontuação de 15,166.
Seu segundo salto foi o “Amanar”, realizado pela primeira vez pela romena Simona Amanar. Ele começa com a entrada de “Yurchenko”, família de saltos realizados na ginástica artística em que a ginasta realiza um arredondamento no trampolim e uma cambalhota para trás, no cavalo ou na mesa de salto, com a adição de mais duas piruetas e meia na segunda parte do voo. Sua dificuldade é 5,80.
Com a ansiedade de realizar o salto já havia causado duas lesões em seu joelho, Rebeca executou o salto de maneira quase perfeita na visão dos jurados, mas, para os brasileiros, foi essa acrobacia que elevou a autoestima nacional ao conceder a medalha de ouro para a atleta. Rebeca escreveu seu nome nos livros do esporte, como a primeira brasileira a conquistar medalhas olímpicas na história da modalidade feminina.
Importância de Rebeca Andrade para o incentivo ao esporte
Com uma história de títulos e superação, a ginasta brasileira conquistou não só a torcida brasileira, mas pequenas ginastas ao redor do país. Layla Vilela é uma menina de oito anos, que atualmente treina no Centro de Treinamento do Flamengo, assim como Rebeca o fez em 2009. Em entrevista ao Arquibancada, a mãe de Layla, Vitória Vilela, contou um pouco sobre como as crianças enxergam a atleta: “As meninas se inspiram muito na Rebeca, todas sonham em um dia serem reconhecidas e vitoriosas mundialmente, como ela tem feito de uns tempos pra cá”.
Ela também acredita que a história de Rebeca tornou o sonho de diversas ginastas mais próximo da realidade:“Com certeza abriu caminhos, mas ainda acho que a ginástica artística deveria ser muito mais valorizada, pela carga de treino, esforço das meninas que começam desde nova e abrem mão de muita coisa para estarem ali , mas nossas meninas estão lutando para isso e tenho certeza que Rebeca foi a porta de entrada para esse esporte continuar no topo e chegar literalmente no patamar que ele merece”.
Além de inspirar jovens a praticar e a amar a ginástica, Rebeca também é sinal de resistência negra no esporte brasileiro. Durante a transmissão da medalha de ouro, realizada pela Rede Globo, Daiane dos Santos parabenizou Rebeca e afirmou: “Durante muito tempo as pessoas disseram que pessoas negras não poderiam fazer alguns esportes. E a gente ter hoje a primeira medalha pra uma menina negra, tem uma representatividade muito grande atrás de tudo isso”.
Além de ícone da ginástica brasileira, Rebeca é força, é superação, é alegria e simplicidade. Parabéns, Rebeca, que seus sonhos acompanhem suas conquistas, pois esse ano, você veio de Guarulhos para Paris 2024.
[Reprodução/Instagram: @rebecarandrade]
Foto de capa: [Reprodução/Instagram: @rebecarandrade]
Autora: Malu Vieira.
Fonte: Jornalismo Júnior/USP.