Créditos de Carbono: para além da molécula

Solução para o aquecimento global? Entenda os desafios e as potencialidades desse novo mercado no Brasil.

Quando a Química e a Economia se juntam para resolver um problema da Biologia, é porque o assunto é sério. O aumento do nível dos oceanos, a desertificação e a alteração do regime das chuvas são só algumas das ameaças do aquecimento global. Para reverter os impactos desse fenômeno, o mundo está correndo contra o tempo em busca de soluções – e uma delas são os créditos de carbono.

Criados a partir do Protocolo de Kyoto, em 1997, os créditos de carbono são unidades que representam a redução das emissões ou a fixação de mais carbono em determinado ambiente. Cada tonelada de gás carbônico que deixou de ir para a atmosfera representa um crédito, que pode ser comercializado e usado para compensar os efeitos da poluição gerada por uma empresa ou atividade econômica.

Frente às ameaças da crise climática decorrente do aumento de gases do efeito estufa (GEEs) na atmosfera, o mercado de carbono é visto como uma maneira de neutralizar emissões e caminhar para a descarbonização da economia. Iniciativas socioambientais, além de mudanças tecnológicas na cadeia produtiva de alimentos e energia, podem contribuir para um futuro sustentável para todos.

A vice-presidente da Future Carbon Group, Cinthia Caetano, explica que os créditos de carbono gerados pela empresa são ativos ambientais que atuam como uma alavanca financeira para redução de emissões: “A crise climática requer muitas soluções, então não tem uma ‘bala de prata’ para resolver isso. A gente tem uma caixa de ferramentas ampla e uma dessas ferramentas é o mercado de carbono”.

Investindo em um futuro sustentável

sexto relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU), publicado em março de 2023,  alerta que ações ainda podem ser tomadas para garantir um “futuro habitável” na Terra, mas que o ritmo atual não é suficiente. A meta é que o limite de aquecimento de 1,5ºC não seja ultrapassado até o final do século – até hoje, já aquecemos cerca 1,1ºC desde a segunda metade do século XIX.

“O mercado de carbono deve contribuir para a geração de resiliência climática, melhoria de qualidade de vida, transformação da economia, conservação da água e da biodiversidade. Tamanha importância que o tema da mudança climática tem hoje para nós”, enfatiza Weber Amaral, professor da Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” da USP. “A gente está melhorando os serviços hídricos, climáticos, reduzindo carbono. Isso tem um preço e a gente pode monetizar por meio dos créditos de carbono”, complementa Cinthia.

De acordo com estimativas do SEEG (Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa), a mudança do uso da terra e da floresta corresponde a 49% das emissões brutas brasileiras, seguida pela agropecuária (25%) e por processos industriais (18%). Esses números são alguns dos reflexos da pressão pelo desmatamento, sobretudo na Amazônia, onde oito dos dez municípios que mais emitem GEEs estão localizados.

“Na Amazônia brasileira há um problema estrutural muito grande de grilagem e roubo de madeira. E não são comunidades tradicionais fazendo isso, são operações em escala industrial, de crime organizado mesmo”, avalia Cinthia Caetano. Ela acrescenta: “Além disso, você tem pressões para converter a área em pastagem, para colocar gado e depois para colocar soja. Tem um ciclo pouco virtuoso de produção nessas áreas, o que pode levar à desertificação da Amazônia”.

Projetos de crédito de carbono, segundo Cinthia, podem ser “um mecanismo de saída também para que as comunidades do entorno não precisem recorrer a essas atividades danosas ao meio ambiente. Então em vez de derrubar a árvore e colocar o gado para pastar, deve-se valorizar as cadeias de produtos não madeireiros da Amazônia”. Ela ainda acrescenta que manter as florestas “em pé” é algo extremamente valioso, em especial em um país como o Brasil, que está sofrendo muito com a pressão do desmatamento.

Projeto MapBiomas – Coleção 7.1 da Série Anual de Mapas de Cobertura e Uso de Solo do Brasil, acessado em 05/05/2023 através do link: https://plataforma.brasil.mapbiomas.org/

O setor do agronegócio brasileiro — que corresponde à 21% do PIB (IBGE) e 25% das emissões brutas (SEEG) — tem grande potencial de descarbonização e de participação no mercado de carbono, se problemas como o desmatamento ilegal forem contornados.

“É muito possível desenvolver soluções baseadas na natureza. Atividades associadas à produção de alimento, proteínas e fibras podem contribuir para o clima e gerar incentivos para produtores que realizam práticas inovadoras de reduzir ou fixar o carbono”, afirma Amaral. “O Brasil é muito pioneiro nisso.”

O professor ressalta que o Brasil já conta com uma sólida legislação ambiental que, se seguida, garantiria redução no desmatamento: “Nós temos um arcabouço legal moderno e muito pioneiro que é o Código Florestal, aprovado há dez anos. Não existe outro país do mundo que tenha uma legislação dessa natureza. Pouca gente valoriza, eu diria que mesmo a própria sociedade civil não entende o que isso significa”.

Regulação e certificação

Atualmente, o mercado de carbono no Brasil é operado em um regime voluntário. Isso significa que organizações independentes se articulam para gerar, comprar e vender créditos que compensem suas emissões de carbono. Embora representem um compromisso com o meio ambiente, os créditos gerados nesse regime não são contabilizados para as metas de redução de emissões do país (NDC, na sigla em inglês), além de seu alcance ser limitado.

Amaral acredita na importância da regulação desse mercado no Brasil: “O mercado voluntário é um mercado pequeno, de poucos compradores. Quando a gente abre e regula isso, você ganha musculatura, ganha massa. Com isso, você tende a baixar o custo de transação dos projetos, porque todo mundo vai estar trabalhando junto numa agenda para desenvolver esse mercado. É fundamental pro Brasil ter um mercado regulado”.

Para ele, o mercado funcionaria em um sistema chamado cap-and-trade (do inglês literal, “limite e comercialização”), em que um teto de emissões de GEEs para um determinado setor ou empresa é estabelecido. Caso excedido, a empresa é responsável por compensar a diferença; se as emissões forem inferiores, a empresa pode converter a diferença em créditos e negociá-los no mercado. A ideia é: quem polui mais, paga mais; e quem polui menos, tem suas vantagens.

O professor avalia que o grande desafio a ser superado nesse mercado é acordar esse sistema entre os atores e segmentos. “Não podemos ver isso como uma punição, e sim como um incentivo para reduzir as emissões e de fato estabilizar o aumento da temperatura do planeta em 1,5ºC. Senão, você cria um instrumento perverso de continuar poluindo e, não de mudar essa história.”

A relação entre o mercado regulado e o voluntário, de acordo com Cinthia, é de complementaridade: “A tendência é que eles se encontrem dentro de um mercado internacional, tudo isso de uma forma conjunta. Então, o mercado voluntário serve muito como um ambiente de teste para a criação dessa regulamentação da demanda”.

As formas de geração de créditos de carbono são variadas: hoje, são mais de 170 projetos diferentes. Nesse sentido, Weber Amaral afirma que não existirá apenas um tipo de crédito: “Não vai ter um único preço do carbono, porque ele está envolvendo ativos e externalidades diferentes em cada tonelada equivalente de CO2. Há créditos que vão ter uma pegada mais importante pro social, créditos que vão conservar mais a água, outros que vão melhorar a qualidade de vida”. 

Outro fator importante é a auditoria dos créditos, ou seja, a garantia da sua qualidade. Atributos como a metodologia utilizada, a transparência e o rigor do monitoramento ao longo do ciclo de vida do projeto são importantes para garantirem que de fato houve compensação.

A empresa Verra, que é dona do padrão VCS (Verified Carbon Standard), é a principal certificadora que atua no mercado. “Para cada crédito que é emitido vai nascer um número de série único, exclusivo e certificado de acordo com aquele padrão”, explica Cinthia Caetano.

As diferentes metodologias usadas para medir quantos créditos de carbono foram gerados ainda não são um consenso e são alvo de críticas. O jornal britânico The Guardian, por exemplo, publicou em janeiro de 2023 uma reportagem investigativa que apontava inconsistências em determinados projetos de créditos de carbono.

Cinthia Caetano rebate dizendo que a reportagem não foi revisada por pares na academia, mas que, de fato, as metodologias não são perfeitas. “Toda metodologia científica tem limitações, então é super importante que a academia continue nos ajudando e que a imprensa continue colocando luz nessas questões.”

Ela acrescenta que “é impossível fazer um contrafactual de floresta mantida em pé porque a gente precisaria de uma máquina do tempo para olhar o que poderia ter acontecido em 2030. Não dá para a gente ver o que aconteceu no futuro, então a gente trabalha com modelos e eles são bastante rigorosos. A gente geralmente trabalha com premissas bastante conservadoras”.

O professor acredita que a certificação não é a garantia dos créditos, mas não deixaremos de conviver com esses regimes: “O problema é que a gente precisa ter metodologias acordadas e o Brasil tem um papel super importante na formatação e construção dessa agenda. Uma vez que você encaixou na metodologia ferramentas digitais para trazer transparência e conformidade, esses erros no percurso tendem a diminuir”.

Ele também ressalta que as metodologias desenvolvidas não podem ter um custo maior do que a oportunidade gerada pelo crédito. “Esse é um problema, então você tem que ter uma metodologia robusta o suficiente, mas escalável e de baixo custo. Você não pode ter a melhor metodologia do mundo para medir coisas com precisão sendo que aquela precisão impede você de desenvolver o mercado”, explica.

O futuro depende da sociedade do presente

Além do mercado e de governos em diferentes níveis, o envolvimento da sociedade civil no mercado de carbono é importante para definir responsabilidades no processo de regulação. “A sociedade civil é sempre importante para trazer governança e o entendimento do que ela gostaria”, afirma Amaral. “Então, você precisa ter essa conscientização do papel da sociedade civil no entendimento do que é esse mercado e onde tem oportunidade para gerar qualidade de vida e para contribuir na diminuição do risco associado ao clima, associado a perda de vida.”

A vice-presidente da Future Carbon relata: “A gente percebeu que também precisava de uma unidade de negócios que nos ajudasse a disseminar conhecimentos sobre esse tema porque era uma demanda dos nossos parceiros, da mídia, de eventos…”.

Para o professor, é necessário “capacitar as pessoas para capturarem um pouco desse momento que a sociedade vive: a transformação necessária para que se tenha novos negócios, novas inovações e o entendimento pleno de onde existem essas oportunidades para serem trabalhadas.” Ele acrescenta que esse desconhecimento significa duas coisas: uma é esconder a narrativa sobre o que se faz de coisas boas; e a outra é uma miopia de alguns atores que não tem interesse de que essas histórias positivas e concretas possam ser compartilhadas sem barreiras técnicas.

Os créditos de carbono fazem parte do futuro e o futuro depende dos créditos de carbono. Cinthia enfatiza que o mercado de carbono tende a crescer de forma exponencial: “A quantidade de reduções necessárias para cumprir a meta do Acordo de Paris precisa de muito muito esforço. Você precisa fazer tudo ao mesmo tempo e agora”.

Para o professor Weber Amaral, “o futuro do mercado de carbono no Brasil passa pela regulação, passa por, coletivamente, se engajar com esse assunto e pelo entendimento de que o carbono é um vetor da transformação que vai além da molécula de carbono em si”.

Ele ainda ressalta a necessidade de garantir outros fatores como a conservação da biodiversidade, a resiliência climática, a conservação da água e a melhoria da qualidade de vida. “O carbono é aquilo que é tangível agora, mas ele tem que envolver essas outras variáveis importantes associadas a essa transformação.”

Autor: Lucas Lignon.

Fonte: Jornalismo Júnior/USP.