A limitada presença de personagens não brancos em filmes românticos é fortemente marcada por estereótipos e narrativas repetitivas.
Os filmes de romance tiram suspiros de milhões de fãs pelo mundo. Como resultado, conquistaram um grande espaço na indústria do cinema, com inúmeros títulos de muito sucesso ao longo das décadas. Mesmo com uma variedade imensa de tramas, o gênero romântico ainda deixa a desejar na diversidade de suas histórias, especialmente quando se trata da representatividade não branca em papéis protagonistas.
Já vimos esse filme antes
Os títulos mais famosos do romance contam com vários clichês queridos pelo público: amores à primeira vista, buquês de flores, e especialmente, finais felizes. Seja ele mais voltado para a comédia ou capaz de acabar com uma caixa de lenços, um bom filme romântico amolece os corações dos espectadores com a história de duas pessoas apaixonadas. Embora o amor seja o principal detalhe em comum entre os mocinhos mais famosos do gênero, está longe de ser o único.
Ao procurar por filmes na categoria de romance em serviços de streaming, plataformas de pesquisa e até no site favorito dos fãs da sétima arte (Letterboxd), é possível notar rapidamente uma norma nos pôsteres dos títulos que surgem: duas pessoas se abraçando, sorridentes, apaixonadas — e brancas. E o Vento Levou (Gone with the Wind, 1939), Casablanca (1942), Dirty Dancing – Ritmo Quente (Dirty Dancing, 1987), Titanic (1998), Como Perder um Homem em 10 Dias (How to Lose a Guy in 10 Days, 2003), Diário de Uma Paixão (The Notebook, 2004), Todos Menos Você (Anyone But You, 2024) e incontáveis outros sucessos seguem o mesmo padrão de protagonistas em suas capas.
Até mesmo filmes que entrelaçam vários núcleos narrativos, como Ligados Pelo Amor (Stuck In Love, 2012) e Simplesmente Amor (Love Actually, 2003), não apresentam sequer uma pessoa não branca entre os múltiplos casais representados em seus pôsteres.
A presença dominante, para dizer o mínimo, de protagonistas brancos no romance passa uma mensagem à parte do público que não se enxerga nas capas desses filmes. “Faz você pensar que apenas aqueles que cresceram em Notting Hill com olhos azuis podem ser amados por estrelas do cinema, e sinceramente isso não é justo”, declara Petal, estudante ugandesa que está à frente do clube de cinema de sua faculdade, em referência ao clássico Um Lugar Chamado Notting Hill (Notting Hill, 1999), estrelado por Julia Roberts e Hugh Grant.
Ao longo das décadas, o estereótipo do casal branco tornou-se mais um dos velhos clichês característicos do romance. Estabeleceu-se em Hollywood que a receita para um sucesso de audiência contava com um par romântico que se encaixasse nessa fórmula, e o protagonismo do gênero ficou reservado a um grupo seleto de pessoas. “Todos nós queremos ser amados. Todos queremos rosas, café da manhã na cama, declarações de amor na chuva, serenatas, tudo aquilo”, afirma Petal. “Porém, quando nós vemos apenas um grupo de pessoas [pessoas brancas] recebendo isso, o sonho morre.”
O que torna um amor impossível?
O Motion Picture Production Code (Código de Produção de Filmes), vigente entre 1930 e 1967 nos Estados Unidos, proibia explicitamente a representação de relações entre uma pessoa branca e uma pessoa preta no cinema. Mesmo décadas depois do fim das restrições do código, colocar os holofotes sobre casais inter-raciais permaneceu sendo uma aposta arriscada na visão dos executivos hollywoodianos.
Em Hitch – Conselheiro amoroso (Hitch, 2005), por exemplo, Cameron Diaz havia sido cotada para interpretar o interesse romântico de Will Smith, mas foi descartada devido à preocupação dos produtores com a reação do público ao ver um homem preto e uma mulher branca envolvidos romanticamente. A atriz escolhida para o longa acabou sendo Eva Mendes, que possui ascendência cubana.
Em casos de filmes românticos com um par inter-racial nos papéis principais, o foco da narrativa frequentemente está em ressaltar divergências culturais existentes entre os personagens, como em A Família da Noiva (Guess Who, 2003) que é uma refilmagem de Adivinhe Quem Vem Para Jantar (Guess Who’s Coming To Dinner, 1967). Separadas por mais de 30 anos, ambas as versões centram-se na desaprovação da família da protagonista ao descobrir que a mulher está em um relacionamento inter-racial.
“Isso contradiz a história de almas gêmeas, porque as almas não veem raça, mas os roteiristas garantem que o espectador apenas veja a cor da pele deles”, diz Petal. Outro exemplo é No Balanço do Amor (Save The Last Dance, 2001), que descreve em sua sinopse a história de um casal que deve “superar os obstáculos de um relacionamento inter-racial”. O enredo desses filmes pretende retratar o amor entre duas pessoas comuns, mas acaba por reafirmar constantemente o quão impossível o relacionamento parece, apenas por causa da cor da pele dos personagens.
Nota-se também que, para Hollywood, um romance inter-racial é praticamente sinônimo de uma narrativa envolvendo uma pessoa branca e uma pessoa preta, tornando extremamente raros os casos de representatividade de pessoas com ascendência asiática, indígena ou árabe, por exemplo.
Mais recentemente, Para Todos os Garotos que Já Amei (To All the Boys I’ve Loved Before, 2018), obteve grande popularidade contando a simples e divertida história de amor adolescente entre Lara-Jean Covey (Lana Condor), jovem de família coreana, e Peter Kavinsky (Noah Centineo), um garoto branco. Porém nem o imenso sucesso do filme, que ganhou 2 sequências e uma série spin-off, foi suficiente para garantir uma mudança significativa na escalação dos atores principais dos romances desde então.
O trauma rouba a cena
O pioneiro na representação de histórias de amor preto no cinema foi o renomado diretor Spike Lee, com o longa Ela Quer Tudo (She’s Gotta Have It, 1986). Na época, o lançamento do filme simbolizou um importante começo para a popularização de tramas estreladas por atores pretos em Hollywood, abrindo espaço para títulos icônicos que surgiriam na década seguinte, como Os Donos da Rua (Boyz n the Hood, 1991). Contudo a representatividade de protagonistas pretos no romance também veio acompanhada de estereótipos que ainda estão presentes na indústria.
O longa de 1991 retrata o amor vivido entre os personagens de Cuba Gooding Jr. e Nia Long, mas o verdadeiro enfoque do filme está nas dificuldades sociais enfrentadas por eles e na dramática realidade em que estão inseridos. “São sempre pessoas marginalizadas socialmente ou economicamente”, aponta Maykon, estudante de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo, sobre a típica representação de pessoas não brancas com arcos românticos.
A personalidade e o comportamento desses personagens muitas vezes se resumem a atitudes em resposta a traumas adquiridos durante a juventude. Esse é o caso observado em títulos como Perigo para a Sociedade (Menace II Society, 1993) e Escritores da Liberdade (Freedom Writers, 2007), em que a atenção do espectador acaba sendo direcionada às pautas socioculturais levantadas pelos roteiros, tendo o romance entre os personagens como um mero mecanismo de enredo. Tal fenômeno está atrelado à histórica caracterização estereotipada de personagens não brancos presente em todos os gêneros do cinema.
O prestigiado Moonlight: Sob a Luz do Luar (Moonlight, 2016) não se distancia desse padrão. A narrativa do longa tem como destaque o romance, mas a trajetória do protagonista também está fortemente associada a traumas de seu passado, relacionados a abusos, vícios e questões familiares. “Os estereótipos criados acerca do amor marginalizam o corpo preto”, continua Maykon.
Acerca de personagens LGBTQIA+, como é o caso do protagonista do filme vencedor de três estatuetas do Oscar, esse padrão se mantém. Petal ressalta que, frequentemente, nos enredos desses papéis, “suas escolhas de vida os rotulam como uma vergonha para suas comunidades”, e assim experiências traumáticas relacionadas ao preconceito e à discriminação também entram em cena. O amor como principal motivador das trajetórias dos personagens não brancos é quase inusitado no cinema hollywoodiano.
O que os olhos veem o coração sente
Muitos anos se passaram desde o primeiro beijo da história do cinema, encenado por John Rice e May Irwin em 1896 e registrado pelo cinetoscópio de Thomas Edison. Milhões de baldes de pipoca depois, as discussões sobre o impacto da sétima arte no nosso cotidiano cresceram significativamente.
Um estudo conduzido pela Universidade de Michigan concluiu que as visões românticas de uma pessoa derivam muito do conteúdo consumido por ela em produções audiovisuais. As respostas dos entrevistados mostraram que altas exposições a filmes de romance fortalecem a crença em um amor verdadeiro, que sempre encontra um caminho de acontecer. Ver-se representado nas pessoas que protagonizam tais produções aproxima ainda mais o espectador da possibilidade de viver a própria história de amor.
“A única representatividade que eu tive enquanto crescia foi A Princesa e o Sapo (The Princess and the Frog, 2009), e eles eram sapos durante a maior parte do filme. Eu nunca tinha realmente assistido um filme onde pessoas com lábios do tamanho dos meus se beijavam. Eu sempre acreditei que beijos seriam melhores se você tivesse lábios menores e isso me deixava envergonhada dos meus”, relata Petal, que sentiu uma virada de chave ao assistir títulos como A Pequena Sereia (The Little Mermaid, 2023), cuja protagonista é interpretada pela atriz e cantora Halle Bailey. “Isso me lembrou que não havia nada de errado comigo ou com os meus lábios, eu só tinha que ver com os meus próprios olhos”.
Sobre sua experiência, Maykon conta que “pessoas LGBT, negras do cabelo crespo, como eu, estão acostumadas a ver os casais cis, heteros, brancos e dos olhos azuis, e isso cria um bloqueio na nossa mente, porque aquele padrão passa a guiar nosso inconsciente. É algo libertador; o sentimento de poder se espelhar, se ver nas telas e saber que você de, alguma forma, é importante, que você existe, que você merece ser visto, e principalmente que existem outras pessoas como você em lugares como este”, referindo-se à posição de destaque nas produções românticas de Hollywood.
Autora: Maria Clara Ramos.
Fonte: Jornalismo Júnior/USP.