Como as técnicas de iluminação fazem parte da história do cinema e influenciam a construção da narrativa dos filmes.
A luz é a mãe de todas as artes visuais. Foi com um reflexo de sol que Vermeer transferiu suavidade a um brinco de pérola e ganhou seu espaço na história. Através do claro-escuro, Caravaggio evocou a dúvida de São Tomé e fortificou a santidade de Cristo. Sem o domínio da luz, não haveria fotografia. Não haveria sequer a visão — afinal, é por meio de um feixe de luz que a imagem atravessa a córnea e alcança o cristalino, para ser focada sobre a retina, onde células fotossensíveis enviam mensagens químicas ao cérebro e, finalmente, enxergamos.
No cinema, a história do uso de técnicas de iluminação coincide com as tendências e necessidades de cada época, sendo impossível dissociá-la da história da sétima arte como um todo. Com um bom manejo da luz, o diretor de fotografia é capaz de transferir para a imagem plana as emoções e a profundidade da realidade multidimensional. Para o espectador, compreender e apreciar a arte da iluminação é, também, abrir-se para novas experiências ao assistir a um filme.
A iluminação na história do cinema
“O contraste mais elevado exacerba as diferenças, cria camadas, ajuda a perceber o espaço retratado como mais tridimensional” Thiago André, coordenador de produção audiovisual e tecnologia do CINUSP.
Com a invenção da lâmpada por Thomas Edison e o desenvolvimento de filmes fotográficos mais sensíveis à gravação das imagens, a experimentação com iluminação aumenta seu protagonismo. Na década de 1920, o expressionismo alemão traz para o cinema a subjetividade do romantismo, revolucionando o uso da luz.
Em entrevista com Luiz Nazário, historiador e professor de Cinema na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), ele diz: “No cinema expressionista alemão, a iluminação ganha uma dimensão muito grande na narrativa do filme. Os personagens estão ligados à luz. Os heróis têm um tipo de iluminação, os vilões tem outro, com mais escuridão envolvida”, explica Nazário. Assim, a escolha pelo contraste acentuado, com sombras em destaque, enfatiza a subjetividade. É o auge do uso da luz como recurso para a produção de emoções no espectador.
A liberdade criativa encontra ainda mais limitações, nesse momento, com a massificação da produção pela indústria. Tandré esclarece que “o uso inicial do som estava acompanhado de um sistema de produção em Hollywood altamente padronizado pelos grandes estúdios, que impunham uma estética praticamente fixa em todos os seus filmes, para maximizar a eficiência da produção em grande volume, o que também impactava as possibilidades de inovação artística”.
Com o tempo, a busca por uma padronização de estilo ganhou como aliadas as inovações tecnológicas. Por meio da iluminação incandescente, introdução dos refletores, instrumentos de medida de intensidade de luz (os fotômetros), entre outros instrumentos, a fotografia cinematográfica retomou as possibilidades de iluminação do cinema mudo, consolidando padrões estéticos que perduram até hoje.
“Só é possível ver o que está iluminado e, quanto mais escuro, menos percebemos os detalhes”.
Thiago André, coordenador de produção audiovisual e tecnologia do CINUSP.
É nesse momento, entre as décadas de 1940 e 1960, que se tem o ápice do cinema noir, responsável por retomar as técnicas de iluminação do expressionismo alemão para a construção de narrativas policiais. Um dos seus legados é uso de uma única fonte de luz para a produção de cenas com alto contraste entre luz e sombra, a fim de produzir efeitos dramáticos. “O contraste mais elevado exacerba as diferenças, cria camadas, ajuda a perceber o espaço retratado como mais tridimensional”, ressalta Tandré.
A lenta adaptação às mudanças propostas pelo cinema em cores fez com que esse recurso demorasse a se consolidar na indústria. Enquanto muitos cineastas eram receosos com a presença das cores, nomes como Alfred Hitchcock e seu parceiro Robert Burks aproveitaram das possibilidades oferecidas pela dinâmica cromática para fazer novas experimentações estéticas. A partir daí, a iluminação passou a ser indissociável da paleta de cores, consolidando o que é hoje a direção de fotografia, também chamada de direção de cinematografia.
O trabalho de fotografia em Blade Runner (1982) é um exemplo de combinação harmônica entre a iluminação e a paleta de cores. Combinando elementos do cinema noir, como o alto contraste, com o uso da luz néon de tons frios, o filme é responsável por produzir uma dinâmica futurista que será central na estética cyberpunk.
Tendências atuais
As técnicas de iluminação das produções atuais, assim como as escolhas estéticas de fotografia em geral, são exploradas de acordo com o estilo traçado pelo diretor de fotografia, em parceria com o diretor do filme. Nesse sentido, não é incomum vermos parcerias de longa data para a consolidação de um estilo próprio de cinematografia. É o que acontece, por exemplo, entre Roger Deakins e Denis Villeneuve, que produziram juntos Blade Runner 2049 (2017), Sicario (2016) e Os Suspeitos (Prisoners, 2013), e entre Emmanuel Lubezki e Alejandro González Iñárritu, que produziram juntos Birdman (2015) e O Regresso (The Revenant, 2015).
No trabalho desses diretores, a percepção e interpretação dos elementos da iluminação dependem de uma sensibilização do olhar pelo espectador. Assim como o enquadramento, a iluminação tem efeitos de direcionar a visão de quem assiste. “Só é possível ver o que está iluminado e, quanto mais escuro, menos percebemos os detalhes. Toda a construção de sentido da iluminação parte desse princípio”, analisa Tandré. Por essa razão, ater-se ao que a iluminação busca ou não destacar também faz parte da experiência cinematográfica.
Hoje, considerado o grande avanço das tecnologias de iluminação, as escolhas de fotografia passaram a depender mais de aspectos como o público alvo, o orçamento e a criatividade dos diretores do que das técnicas disponíveis.
“A técnica continuou evoluindo, mas a imaginação parou.” Luiz Nazario, professor de cinema na Escola de Belas Artes da UFMG
Filmes com alto orçamento para a direção de arte e destinados para um público com maior repertório sobre cinema aproveitam dos avanços possibilitados pela evolução dos iluminadores de LED. Tandré ainda ressalta: o aproveitamento de luz dos sensores das câmeras digitais melhorou muito, atingindo patamares superiores a qualquer película e até do que o olho humano. Cenas em lugares apertados ou iluminadas por uma fonte de luz pequena são cada vez mais viáveis.
Novos desafios da iluminação
Assim como tem ocorrido com outros setores da indústria, a iluminação enfrenta o desafio de ressignificar alguns de seus paradigmas tradicionais para a construção de um cinema mais diverso e inclusivo. Tandré explica que técnicas como o desenvolvimento de películas foram historicamente direcionadas para favorecer personagens brancos, reforçando a desigualdade racial. Sobre isso, ele comenta: “as técnicas de iluminação estão longe de ser o principal fator de construção e reforço dos estereótipos, uma atribuição muito mais das escolhas de personagem, que vêm da direção e roteiro”.
O coordenador ainda complementa: “hoje em dia há um grande esforço dos fabricantes e artistas em testar e aproveitar equipamentos que valorizem os diferentes tons de pele, acompanhando a atual e muito bem-vinda onda de aumento da representatividade étnica nas produções audiovisuais”.
Autora: Valentina Moreira.
Fonte: Jornalismo Júnior/USP.