A literatura nacional e o seu papel na construção do brasileiro

Como a identidade cultural e coletiva do Brasil foi representada nos livros.

No dia 13 de maio de 2023, celebrou-se 142 anos do nascimento de Lima Barreto, um dos escritores brasileiros mais revolucionários no campo da literatura pré-modernista. Considerado um dos primeiros autores a abordar o racismo abertamente em suas obras, Lima destaca-se entre os grandes nomes da língua portuguesa. Ele tornou a literatura nacional um instrumento social de denúncia e construção de identidade, por meio de retratos do cotidiano de personagens pobres e marginalizados.

A representação de figuras inspiradas na realidade é uma das principais bases das correntes literárias nacionais. Esse processo possibilita a construção do brasileiro a partir de diferentes óticas, conferindo uma pluralidade sociocultural às criações. O papel dessa escrita se torna fundamental na criação de vínculos de identidade que condizem com a imagem do povo brasileiro – formado por diversas camadas.

Segundo o Ibope, a quantidade anual média de leitura por habitante é de quase 5 livros [Imagem: Reprodução/ pixabay.com]

O Romantismo e a representação do brasileiro na literatura

O Romantismo configura-se como um dos marcos na construção de identidades socioculturais brasileiras, em grande parte como um resultado do processo de formação de um ideal de nacionalidade. O protagonismo na época girava em torno da figura do indígena, sob uma ótica permeada de estereótipos do “bom selvagem” heróico. Ele buscava exaltar e representar a base da formação da sociedade brasileira, ainda que romantizada. 

A personagem Iracema exemplifica esse papel de exaltação da formação nacional, na medida em que representa os povos indígenas como parte da construção desse ideal de pátria, visto que seu nome forma um anagrama da palavra “América”. Ela teve  grande importância na formação de um caráter nacional e mais representativo diante dessa população marginalizada e pouco retratada até então. 

No artigo “Representação literária do indígena no romantismo brasileiro: o caso Simá, de Lourenço Amazonas”, Danglei de Castro Pereira afirma que “Essa ideia de que a literatura é uma ‘transfiguração do real’ ou ‘uma nova realidade’, indica o valor associado ao processo de verossimilhança como fundamental na construção de imagens complexas do real na representação literária.” O pesquisador da UnB explica que esse processo de representação trabalha com o aumento e a alteração do real não sendo necessariamente uma verdade absoluta e, sim, uma associação daquilo que se vê com o que se interpreta, já que existem diferentes caminhos para a representação do real na arte. 

A representação como denúncia social 

No período literário conhecido como pré-modernismo, Euclides da Cunha publicou o livro Os Sertões (Laemmert, 1902), que se firmou como um marco na representação dos excluídos e perseguidos políticos da comunidade do Arraial de Canudos. Para Paulo Venancio Filho, professor do Departamento de História e Teoria da Arte da UFRJ, “O horror da guerra, o confronto entre a ‘civilização’ e a ‘barbárie’ ainda se manifestam cem anos depois do conflito [Guerra de Canudos]. O mesmo confronto que a literatura já pressentia e descrevia.” Essa observação do professor, veiculada no artigo “Os sertões: atualidade e arcaísmo na representação cultural de um conflito brasileiro”, reitera a importância da literatura no retrato de cenários socioculturais históricos.  Euclides da Cunha  evidencia aqueles que são silenciados pelo preconceito, principalmente a figura dos sertanejos interioranos abordada no livro. A descrição das violências sofridas pelas personalidades presentes na obra  ameaçam os discursos da classe dominante e possibilitam uma aproximação maior com a realidade vivida pelas populações pobres, especialmente da região Nordeste.

Além do autor de Os Sertões, Lima Barreto também escreveu livros politizados e lembrados por sua relevância social.. Ele consolidou-se como inaugurador de uma nova linha na literatura brasileira ao relatar em suas obras o preconceito que sofria por ser negro e morador do subúrbio do Rio de Janeiro na primeira metade do século 20, através de figuras como Isaías Caminha, Vicente Mascarenhas e Gonzaga de Sá. Na sua tese “Lima Barreto e sua crítica ao racismo na primeira república: entre a história e a literatura”, Fábio Junior Teixeira Cupertino explica que Lima foi, neste contexto, “uma das poucas vozes vinda dos de baixo, que sobreviveu e conseguiu proporcionar uma visão diferente de uma jovem República, que queria se desassociar de seu passado escravista e se configurar como moderna”.  

Politização do modernismo

O ano de 1922 é considerado como o marco inicial do modernismo brasileiro, movimento artístico preocupado com a ruptura de padrões antigos e em promover críticas mais politizadas à sociedade da época. Alguns autores do período buscavam uma aproximação maior com a experiência dos marginalizados urbanos. Manuel Bandeira, poeta dessa primeira geração modernista, mostra-se como alguém “à frente de seu tempo” por retratar pessoas excluídas do corpo social.

Outros autores do modernismo brasileiro se consolidaram principalmente a partir da produção dos “romances de 30” – obras de viés político com o foco voltado para a figura dos nordestinos e migrantes. Livros como Capitães da Areia (José Olympio, 1937)Vidas Secas (Record, 1938) e O Quinze (José Olympio, 1930) contribuem para a exploração e o entendimento das diversidades étnicas, sociais e culturais presentes no Brasil daquele período.“Existência miserável de trabalho, de luta, sob o guante da natureza implacável e da injustiça humana”, relata Graciliano Ramos em entrevista à Gazeta no ano de 1938.

O brasileiro atual

No final do século 20 e começo do 21, inicia-se um processo de transição do protagonismo da figura do sertanejo interiorano para a dos marginalizados urbanos. Autores da contemporaneidade, como Fernando Bonassi e Ferréz, lançam um olhar sobre a marginalidade e a boemia nos centros urbanos, em obras como Subúrbio (Objetiva, 2006) Capão Pecado (Planeta, 2000).

O brasileiro da atualidade é a representação coletiva de uma série de vozes e questões relevantes [Imagem: Reprodução/ pixabay.com]

literatura contemporânea busca enfatizar a arte popular e marginal através de um engajamento social cada vez mais crítico. O brasileiro da atualidade não possui uma forma específica – é a representação coletiva de uma série de vozes e questões relevantes. Segundo Ana Cláudia Viegas, professora da UERJ, trata-se de um reflexo das “configurações contemporâneas da subjetividade”, na qual não se faz necessária a existência de personagens concretos ou heróicos para essa formação identitária moderna.

O escritor Luiz Antonio de Assis Brasil propõe que “grande parte das personagens não são nominadas, diferentemente do que acontecia antes […] Mas para além disso, a inominação, as personagens executam ações aparentemente triviais: é o gari que varre a rua, o motoboy numa fila de banco, é a professora que vara madrugadas corrigindo provas, é o soldado que tira guarda ao sol. Enfim, não há ações ‘grandiosas’, ao estilo antigo; se as houvesse, o leitor desconfiaria.” O diferencial dessa nova literatura é que a mensagem que se deseja passar é transmitida de maneira ampla e sem a necessidade de um protagonista específico, atingindo todo um grupo social retratado.

Literatura como instrumento construtor de sensibilidade 

Em entrevista à Jornalismo Júnior, Marcos Vinícius Ferrari, Mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP, destaca que essa nova corrente literária surgida nos últimos anos “abre caminhos para que essas pessoas representadas também tenham uma voz”. Para ele, o surgimento desse fenômeno, no qual os excluídos se tornam os autores de suas próprias narrativas, permite trazer as experiências da periferia à tona, tanto na literatura quanto na música, como é o caso do grupo de rap Racionais MC ‘s, formado em 1988. Segundo Marcos, “ler esses percursos mostra como a gente parte de uma idealização no romantismo, para uma ótica mais negativa e preconceituosa no naturalismo até chegar ao século 20, no qual esses personagens assumem suas próprias narrativas como autores”.

Para João Pedro Augusto, jovem negro e membro da comunidade LGBTQIA+, essa representação sociorracial na escrita brasileira faz com que pessoas como ele se sintam integradas num grupo social e acolhidas também pela literatura. “Principalmente dentro de uma realidade na qual a grande maioria dos protagonistas em livros são brancos e heterossexuais”. O estudante ainda relata que essa representatividade mais fiel à realidade é um fator que interfere diretamente no interesse de jovens leitores, especialmente pessoas pretas e periféricas.

Pesquisas feitas entre 2004 e 2014 revelaram que apenas 6,9% dos personagens representados nos romances eram negros, sendo que só 4,5% eram protagonistas da história. [Imagem: Reprodução/ pixabay.com]

No texto “A literatura como arte construtora da sensibilidade: propostas de atividades baseadas na leitura de ‘Tragédia no Lar”, de Castro Alves, é proposto que “A capacidade de se sensibilizar frente aos fatos pode ocorrer de maneira escalar, sendo essa gradação diretamente proporcional à maneira como os sujeitos são incentivados a analisar a realidade em que se inserem”. A fala de Castro Alves reitera a importância da leitura como instrumento de construção e formação da sensibilidade, a partir da identificação com o conteúdo lido. 

Ainda que fundamental para a inclusão social, a representação de personalidades que “fogem ao padrão” dentro dos livros ainda é majoritariamente estereotipada, o que contribui para uma generalização de figuras complexas e profundas. A difusão de novas correntes literárias contemporâneas preocupadas em questionar essa realidade, muitas vezes distorcida, tem sido o caminho para a ruptura com padrões preconceituosos, a fim de se criar uma literatura essencialmente brasileira e para todos. 

Autora: Beatriz Haddad.

Fonte: Jornalismo Júnior/USP.