O caminho entre a busca pela perfeição e a chegada à obsessão.
A presença de filmes que retratam a história de artistas nas telas dos cinemas é comum e, na grande maioria das vezes, essas peças recebem grande engajamento e avaliação positiva do público. Contudo, em algumas dessas produções é possível observar um padrão — que não segue uma linha tão glamourizada quanto o esperado — na carreira desses indivíduos. É isso o que acontece na história de Cisne Negro (Black Swan, 2010); Whiplash: Em Busca da Perfeição (Whiplash, 2014); Eu, Tonya (I, Tonya; 2017) e na produção nacional Bingo: O Rei das Manhãs (2017). Esses filmes refletem o percurso de artistas que, na busca pelo sucesso, encontram a obsessão e desviam suas jornadas para caminhos que os afastam da procura pela excelência anteriormente desejada.
As histórias
Cisne Negro conta a história de Nina (Natalie Portman), uma bailarina de uma grande companhia de dança, que vive em Nova Iorque com sua mãe. Quando uma nova temporada de apresentações está prestes a começar, é revelado que a peça que será interpretada para a abertura dos espetáculos é O Lago dos Cisnes, composição que apresenta o cisne negro como personagem principal e é o papel desejado pela grande maioria das bailarinas— inclusive Nina.
É a partir desse momento que a bailarina começa a passar mais tempo em treinos, se aproxima do professor e diretor da peça — que frequentemente apresenta relações com suas alunas —, desenvolve fortes crise de ansiedade e se afasta da imagem de si apresentada no início do filme: uma moça inocente, extremamente focada e que apresentava uma próxima relação com sua mãe.
Nina consegue o papel desejado, contudo, ao contrário da calma e claridade que essa conquista deveria levar à personagem, nota-se que nos próximos momentos do filme a obsessão da artista se torna ainda maior e a tensão no longa aumenta a cada minuto. Isso ocorre devido ao seu constante medo de ser substituída e não apresentar perfeição na performance. É importante destacar que o transtorno adquirido por Nina tem um forte elo com a presença de sua mãe, Erica (Barbara Hershey), uma ex-bailarina que não consegue realizar seus sonhos após engravidar.
Um cenário semelhante pode ser observado em Whiplash: Em Busca da Perfeição que conta a história de Andrew (Miles Teller), um jovem baterista que estuda em um conservatório de música e que, após conseguir entrar para a orquestra do prestigiado professor Terence Fletcher (JK Simmons), transforma seu amor pela música em uma obsessão que desgasta o garoto mentalmente e fisicamente a cada segundo do longa.
É importante salientar que a autodestruição de Andrew é motivada por seu treinador o tempo todo, isso acontece pois o mentor humilha, grita e agride seus alunos a todo momento e usa como justificativa o argumento de que tais abusos ajudariam seus alunos a melhorarem as suas performances. Assim, além da busca por uma perfeição que parece quase inalcançável, o menino parece também buscar a aprovação do professor — o que parece acontecer no fim do filme, após extremas ondas de esgotamento sofridas pelo personagem.
Além disso, nota-se que a jornada do artista obcecado não se prende apenas ao espectro ficcional. Prova disso é a história de Eu, Tonya, protagonizada por Margot Robbie, que narra a trajetória de Tonya Harding, uma patinadora estadunidense e protagonista de um dos maiores escândalos esportivos do mundo. O filme conta a história da atleta desde sua infância e revela a criação da garota com a presença de uma mãe extremamente violenta e um pai que se torna ausente precocemente em sua vida.
Tonya e sua mãe, LaVona Golden, passam a viver com dificuldades financeiras e o pouco dinheiro que conseguem obter é investido na carreira da menina. Os abusos físicos e verbais continuam fazendo parte da vida de Tonya durante toda a sua infância e adolescência e é apenas quando a menina conhece Jeff Gillooly, primeiro namorado de Tonya e que futuramente se torna seu marido, que um breve momento de tranquilidade parece entrar na vida da patinadora.
Contudo, logo percebemos que a violência presente na vida de Tonya, anteriormente materializada pela figura materna, passa a encontrar voz e figura em seu marido. As angústias e problemas presentes na vida da atleta parecem fazer com que o desejo por atingir performances cada vez melhores aumente. Assim, a sua primeira grande conquista acontece quando ela se torna a primeira mulher estadunidense a realizar o triple axel com sucesso em uma competição.
É nesse momento que Tonya, junto a Jeff e seu guarda costas, cometem o maior erro da carreira da atleta. Seu marido e Shawn Eckhardt — o segurança da patinadora — planejam um ataque à Nancy e agridem a atleta com um bastão de metal na perna, com a intenção de impossibilitar a participação da garota nas Olimpíadas. Pouco tempo depois, os sujeitos foram descobertos no caso e o nome de Tonya é imediatamente ligado ao ocorrido.
Desse modo, a garota é julgada e possui a sua participação em competições de patinação banida. Assim, revela-se que a busca pelo sucesso demonstrado em Eu, Tonya leva a protagonista ao fracasso e a obsessão torna-se mais uma das muitas frustrações da personagem.
O cenário presente em Eu, Tonya se assemelha a história, também baseada em fatos reais, apresentada em Bingo: O Rei da Manhãs, protagonizado por Vladimir Brichta, que conta a história de Arlindo Barreto — ator que interpretou o palhaço Bozo durante alguns anos da década de 1980.
Bingo é filho da atriz, Marta de Windsor (Ana Lúcia Torre), que não consegue alcançar grande sucesso em sua carreira nas telas da televisão. O palhaço segue os passos da figura materna e também tenta atuar no meio artístico, contudo, a ausência de papéis e ofertas de trabalho fazem com que o ator passe a atuar em filmes adultos e, com isso, as frustrações do artista aumentam a cada dia.
Augusto, nome do palhaço no filme, após ter uma conversa com seu filho — em que o menino expressava o desejo de poder assistir seu pai nas telonas com seus amigos — decide fazer uma audição para um papel em uma novela. Contudo, ao chegar no set de gravação, o ator se depara com a possibilidade de ser o apresentador de um novo programa de televisão, Bingo: O rei das manhãs, atração televisiva que já apresentava grande sucesso no mercado estadunidense.
O ator, surpreendentemente, conquista o papel do palhaço e passa a apresentar o show infantil. A princípio, Augusto parece não estar fazendo um trabalho tão bom quanto o esperado, contudo, nota-se que a partir de certo período — e com algumas mudanças no roteiro do programa, feitas pelo próprio artista — a audiência aumenta cada vez mais e o sucesso parece chegar nas mãos do ator.
Assim, cria-se um cenário em que Augusto (Arlindo, na vida real) e Bingo (o Bozo) parecem se confundir a todo momento, fator que afeta não só a vida pessoal do ator, como também a profissional. Panorama que se torna mais claro quando o ator perde o emprego e sofre com uma overdose devido ao uso indiscriminado de drogas. É apenas nesse momento que o artista parece entender a dimensão de seus atos e, com isso, afasta-se da vida problemática que passou a levar.
Dessa forma, Augusto se distancia dos palcos da televisão e do cinema e passa a fazer partes dos palcos de igrejas e instituições religiosas — ação que segue sendo feita, até os dias de hoje, pelo Bozo da vida real.
Padrões nos roteiros
É possível notar que as quatro histórias apresentadas possuem algumas semelhanças e paralelos entre si. Assim, é interessante observar que ao avaliar as características dos filmes, verifica-se quase que uma receita cinematográfica para a construção dos roteiros das obras.
O primeiro exemplo disso pode ser observado quando consideramos que todos os personagens sofrem com a ausência de um dos seus pais. Em Cisne Negro a menção à figura paterna de Nina nunca é feita, deixando ao espectador interpretar que ele não fez parte da criação da garota. O mesmo acontece em Whiplash, a menção à mãe do garoto é feita uma única vez e é revelado que ela abandonou Andrew ainda quando bebê. Em Eu, Tonya a menção ao pai da patinadora é feita de forma clara e é revelado que ele fez parte da vida da menina durante um período de sua infância — a relação de Tonya com o pai exibe grande afeto, e ele parecia ser um dos poucos indivíduos, que se importavam verdadeiramente com a garota — até o divórcio com Lavona, mãe da atleta (momento em que perdem o contato). E em Bingo: O rei das manhãs, assim como em Cisne Negro, a menção à figura paterna também nunca é feita.
Além disso, apesar da negligência por parte de uma das figuras parentais, nota-se a presença de outro sujeito que representa a motivação desses artistas e que, muitas vezes, parece ser a força que dá continuidade à história. É isso o que acontece na história de Nina que possui a presença de uma mãe superprotetora e que parece projetar seus sonhos na filha. É também o cenário de Andrew que conta com seu mentor, Terence Fletcher, que parece ser o estímulo para a obsessão do menino, sendo extremamente importante para a continuidade da história.
A psicóloga também comenta que, para evitar a formação de transtornos, é essencial que o sujeito esteja aberto ao autoconhecimento. Dessa forma, o uso da psicoterapia é importante para evitar a busca pelos excessos e a formação de uma vida profissional que possua equilíbrio.
O elo criado com o público
As semelhanças observadas nas obras cinematográficas são evidentes e formam um padrão extremamente interessante com relação a história dos personagens. Contudo, além de apresentarem esses fatores em comum, é possível notar que todas as obras apresentam um forte laço com o público que acompanha a trama. Fator que pode ser comprovado a partir de uma análise de bilheteria desses longas — sendo a maior delas a de Cisne Negro que arrecadou cerca de 330 milhões de dólares, seguida por Eu, Tonya com 53,9 (US$) milhões, Whiplash com 49 milhões (US$) e, por fim, Bingo: O rei das manhãs que contou com uma bilheteria de 2,8 milhões de reais (valor relativamente baixo, mas acima do esperado para um filme nacional).
Por isso, é interessante entender que o grande sucesso desses filmes se relaciona com a representação de um artista que, mesmo sem existir — na grande maioria das vezes— na realidade, demonstra os problemas e dilemas vivenciados diariamente por pessoas comuns com determinada obsessão. Dessa forma, o público parece se perder nesses enredos, pois, além de enxergarem a tela do cinema, observam também um reflexo do que já foram ou do que gostariam de ser.
É assim, que notamos a grandeza das quatro obras e o poder que o cinema, de forma geral, apresenta ao conquistar o público e transformar aquilo que parece comum, aos olhos de um observador desatento, em arte.
Autora: Júlia Galvão.
Fonte: Jornalismo Júnior/USP.