Abdul Jarour: desafios entre a Síria e o Brasil

Conheça a trajetória do refugiado de guerra naturalizado brasileiro que atua há nove anos em prol da causa migratória.

“Minha história foi bastante divulgada na grande mídia. Como todo refugiado, carrego uma dor profunda, mas essa experiência difícil vem me proporcionando grandes aprendizados. Não é fama o que procuro”, afirma Abdul Jarour em entrevista concedida à Jornalismo Júnior. As conquistas de Abdul extrapolam o universo pessoal e amplificam as demandas urgentes da comunidade migrante e refugiada. “Não optei por expor minha vida em benefício próprio, minha visão sempre foi coletiva”, ressalta.

O refugiado sírio e ativista político tem hoje 160 mil seguidores no Instagram, mas esclarece que o número não se traduz, necessariamente, em apoio. “Meu passado comove e por isso atraio pessoas. O interesse delas, por outro lado, parece ser maior em saber o que eu vivi, do que colaborar para garantir a minha estabilidade nessa nova etapa aqui no Brasil”, reflete.

Abdulbaset Jarour nasceu em Aleppo, na Síria, há 33 anos. A família, de sete filhos, possuía uma empresa de construção e ele cursava administração; ainda aos 16, abriu seu primeiro negócio de venda de produtos eletrônicos. Em 2010, entretanto, precisou abandonar os estudos após ter sido recrutado para o exército. “Levei um susto. Fui obrigado a servir o Exército sem jamais ter me interessado pela vida militar”, declara.

Abdul revela que militares podem morrer mesmo em treinamento, devido ao cansaço físico e mental. [Imagem: Arquivo Pessoal/ Abdul Jarour]

Um panorama histórico esclarece a trajetória de Abdul. Há 52 anos, a Síria é governada de maneira ditatorial pela mesma família. O atual presidente, Bashar al-Assad, está no poder desde 2000, em substituição ao então governante Hafez al-Assad, seu pai. No final de 2010, uma onda de manifestações, conhecida como Primavera Árabe, espalhou-se por países do Oriente Médio e trouxe à tona a insatisfação com os governos tirânicos. Na Síria, os protestos começaram em março de 2011, na cidade de Deerã, após crianças serem presas e torturadas por realizarem uma pichação contra o presidente. A brutalidade policial enfureceu a população que começou a mobilizar-se por todo o país. 

“Eu seria liberado em julho mas, depois desse caso, fomos obrigados a continuar no exército para intensificar o controle”, relata. Alguns grupos de manifestantes juntaram-se a militares desertores e formaram milícias armadas. Na medida em que a insatisfação elevou-se, a repressão foi agravada e uma guerra civil instaurou-se no país. “Não esperávamos que isso fosse acontecer, pelo contrário, acreditávamos que a Síria serviria de casa para populações vizinhas em guerra”, recorda. 

Um dos momentos mais difíceis para Abdul foi a noite do dia 5 de maio de 2013. Segundo seu relato, o chão tremeu abruptamente e o céu iluminou-se quando o exército israelense bombardeou um dos quartéis mais fortificados do país, local pertencente ao programa sírio de armas químicas e biológicas. “Eu me lembro do ataque dos raios. Foi terrivelmente assustador e traumático, porque naquele dia perdi 115 pessoas que conhecia e amava”. Abdul era motorista de um general do Exército de Bashar al-Assad e o carro que dirigia foi atingido durante o bombardeio. 

“Acordei, e, como um pesadelo, percebi que estava no hospital. Aquela tragédia e os impactos de tanto horror me deprimiram de tal forma que cheguei a pensar em acabar com a minha vida, não aguentava mais estar lá”, confessa. Com a ajuda de diversas pessoas, Abdul conseguiu organizar-se e, em 2014, foi o primeiro da família a deixar a Síria. Depois de passar pelo Líbano, foi para Beirute e planejava ingressar no Canadá ou na Austrália. O plano não se concretizou, mas o jovem descobriu que o Brasil estava oferecendo um visto humanitário. 

‘Refugiado Reconhecido – Autorização de Viagem’ 

Em fevereiro de 2014, aos 24 anos, Abdul Jarour desembarcou em São Paulo. Mesmo sozinho e sem saber português, descobriu como adaptar-se à cultura e à realidade brasileira. Por dois meses conseguiu morar sem pagar aluguel, ao desenvolver um projeto de hostel com o dono do lugar; em um mês Abdul conquistou outros 10 refugiados clientes para ele. “Aos poucos os interesses do dono do empreendimento divergiam dos meus, então saí de lá”, conta.

Depois de certo tempo, ainda sem oportunidades de emprego, o jovem não conseguiu mais bancar o novo aluguel e, por quase um ano, morou com amigos que o acolheram. Abdul revela que sobreviver no Brasil como refugiado é muito difícil. “Estou submetido a uma reorganização permanente. Aos poucos uma rede solidária vem se formando, mas ainda é muito tímida.” Ele acrescenta que é fundamental alcançar uma estabilidade não apenas financeira, mas emocional.

Desde 2020, Abdul Jarour é naturalizado brasileiro. Ele expressa sua gratidão e respeito pela nação que o acolheu, mas confessa que, mesmo assim, não se sente totalmente integrado. “Eu estou sobrevivendo, mas não consigo ter a vida que eu gostaria ou aquela que tinha na Síria. Não digo isso me comparando com os demais irmãos refugiados, mas comigo mesmo, como eu era ontem e como estou agora.” 

Mesmo diante das adversidades, Abdul envolveu-se em diversos projetos sociais e culturais, como a Copa dos Refugiados e Imigrantes [Imagem: Arquivo Pessoal/ Abdul Jarour]

Ainda em 2014, tornou-se membro-fundador da organização chamada Pacto pelo Direito de Migrar – PDMIG, anteriormente conhecida como África do Coração, junto com um refugiado congolês. O objetivo do projeto é integrar imigrantes e refugiados ao novo país, oferecendo suporte para o exercício da cidadania e defesa da causa migratória. Na PDMIG, respondeu pela vice-presidência e direção de Projetos, com destaque na função de coordenador-geral da Copa dos Refugiados e Imigrantes. 

Abdul também é membro-fundador da organização Identidade Humana, que neste ano ganhou o primeiro lugar no Conselho Municial de Imigrantes (CMI) de São Paulo. Atualmente, ele realiza palestras em todo o território com temáticas de Migração e Refúgio, Mundo Árabe e Causas da guerra na Síria. O “brasi-sírio”, como é popularmente conhecido, é empreendedor, administrador, artista e cursa Direito na Escola Paulista de Direito (EPD). Hoje, também atua como assessor na Defensoria Pública da União – DPU/SP.

Abdul oferece assistência jurídica para refugiados sobre questões relativas à naturalização, documentação e processos civis [Imagem: Arquivo Pessoal/ Abdul Jarour] 

Ao perceber que o preconceito e a discriminação adentravam as barreiras institucionais, ele decidiu articular-se politicamente. De acordo com Abdul, “é necessário representatividade nas esferas políticas para fazer a diferença. São esses os espaços de proposição e decisão das leis que interferem diretamente nas nossas vidas”. Em 2021, filiou-se ao Partido Socialista Brasileiro (PSB) e, nas últimas eleições, concorreu a deputado estadual por São Paulo. 

“Me candidatar foi uma experiência muito forte, pois além de mergulhar de cabeça, precisei lidar com eventuais frustrações, mas valeu muito a pena”, relata. Mesmo reconhecendo que lutar por espaço nesse meio incomoda muita gente, Abdul ainda acredita no poder transformador da política. “Foi um período de grandes questionamentos. Certamente amadureci e me sinto fortalecido para seguir enfrentando os desafios”, declara.

Para ele, eleger-se foi uma oportunidade de trazer visibilidade e protagonismo à causa migratória. “Nós refugiados temos um potencial enorme de ajudar na economia do país. Mas, para isso, é necessário ir além da inclusão e garantir uma integração real.” Ele destaca que integrar, de fato, só é possível com a implementação políticas públicas de regularização e capacitação.

“Devemos ter os mesmos direitos e assistência básica que qualquer outro cidadão, como está previsto no artigo quinto da Constituição federal”Abdul Jarour

“É difícil conviver com a saudade quando ela não é uma escolha”

Logo que Abdul chegou em São Paulo, recebeu  uma ligação. “Me contaram que minha irmã mais velha havia perdido uma perna em um bombardeio e seu marido estava morto”, relembra. Frente ao perigo crescente na Síria, seus irmãos partiram cada um para um país. Hoje, a família Jarour encontra-se dividida entre 7 fronteiras: Brasil, Canadá, Egito, Iraque, Líbano, França e Alemanha. 

Depois de cinco anos separados, Abdul reencontrou sua mãe e irmã caçula [Imagem: Arquivo Pessoal/ Abdul Jarour] 

Ele pontua, contudo, que foi difícil trazê-las para São Paulo, tanto pela questão financeira, quanto pela burocracia. Mesmo com a família próxima, alguns problemas persistiram. “Nenhuma das duas conseguiu se integrar aqui, a cultura é completamente diferente e ambas tiveram muita dificuldade na adaptação. Continuavam deprimidas pelo trauma da guerra e suas consequências”, recorda.

Em fevereiro de 2020, Abdul conseguiu comprar uma passagem de avião para a irmã, que viajou para o Líbano, e estava renovando o passaporte da mãe para que ela também regressasse. Em março, entretanto, a refugiada síria precisou ser internada por conta de um quadro de saúde delicado e não resistiu. Khadouj Makzum foi uma das primeiras vítimas do coronavírus no Brasil. “Foi um momento especialmente desolador. Seguir sem seu calor, seu carinho e conselhos foi, e continua sendo, muito duro. É difícil conviver com a saudade quando ela não é uma escolha”, compartilha Abdul.

Desde então, o filho dedica-se ainda mais em promover a integração da cultura árabe-brasileira. “Estamos aqui por algum motivo ou propósito maior. Já é tempo de os povos conseguirem viver em paz e comunhão, compartilhando e celebrando suas diferenças”, clama Abdul. Entre seus objetivos, o “brasi-sírio” busca motivar e incentivar as pessoas a fazerem a diferença na própria vida e na sociedade onde estão inseridas.

“Lutem pela liberdade” 

Abdul preocupa-se com a guinada dos extremismos e a crescente tendência ao individualismo. De acordo com ele, ambos podem contribuir para a ascensão de líderes tirânicos que se utilizam da manipulação para permanecerem no poder. O acesso à informação, entretanto, é capaz de interromper esse processo.

Ele sugere manter-se atento e acompanhar o que acontece no mundo: “Seja pelo jornal, televisão, rádio ou mesmo pelas redes sociais, temos de seguir alertas e vigilantes”. Abdul enfatiza a importância de lutar pela liberdade e cultivar senso crítico diante das decisões dos governantes.

“Se cada um buscar apenas o aparente sucesso individual, estaremos em uma direção totalmente perigosa”, adverte. Para ele, é fundamental pensar o indivíduo dentro da sociedade e o país dentro da amplidão que é o mundo. Assim, será possível compreender a vida humana com verdadeiro respeito às pessoas e seu direito de existir e transitar.

O entrevistado encerra com uma reflexão acerca do sucesso, assinalando-o como uma faca de dois gumes, capaz de abrir e fechar portas. “O que é, de fato, ser uma pessoa bem-sucedida? Eu já tive dinheiro e o perdi, hoje sei que ele não é tudo.” A respeito da pergunta retórica, ele mesmo traz à luz a resposta. Saber quem se é, fazer o que se deve e trabalhar motivado para conquistas coletivas de bem-estar e desenvolvimento humano, para Abdul Jarour, é ter sucesso na vida.

Autora: Marina Giannini.

Fonte: Jornalismo Júnior/USP.