Artistas latino-americanos vêm alcançando espaço nos últimos anos, mas o movimento é traçado por um mercado resistente ao “no-english”.
Quem nunca se pegou dançando ao som envolvente de “La Bamba” durante uma festa de família? Essa canção icônica, imortalizada na voz de Ritchie Valens, do grupo “Los Lobos”, é mais do que uma simples melodia festiva; é um símbolo vibrante da rica cena musical latino-americana.
Nos últimos anos, o mercado musical se viu diante de uma revolução. Só em 2022, o setor da música na América Latina fechou em crescimento pelo 13º ano consecutivo, valendo 1,3 bilhão de dólares. Os dados são do “Global Report 2023”, relatório anual feito pela Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI).
Basta pegar o celular, acessar uma plataforma de streaming e, em questão de segundos, terá à disposição um vasto catálogo de músicas que abrange diferentes épocas, línguas e nacionalidades. O Spotify, por exemplo, reúne uma coleção de mais de 100 milhões de faixas. No entanto, essa revolução na forma como consumimos música não apenas reflete as demandas do mercado, mas também as molda com ajuda dos algoritmos, o que faz com que a música chegue mais rápido aos nossos ouvidos.
Quando pensamos em grandes hits, é provável que venham à cabeça canções na língua inglesa. De acordo com André Cerf, diretor e produtor musical da Track1 Studio, o mercado de música inglês, liderado pela indústria cultural estadunidense, exerce grande influência e predominância. Isso pode ser observado a partir do desenvolvimento de estilos como rock, jazz e blues, que nasceram nos Estados Unidos no século XX e pavimentaram o desenvolvimento da música presente no topo das paradas.
A força econômica dessa indústria é também um fator fundamental para a hegemonia linguística. No ano de 2022, o mercado musical dos Estados Unidos movimentou 15,9 bilhões de dólares, segundo relatório da Recording Industry Association of America (RIAA). Com o controle do investimento nos artistas, por meio das grandes produtoras, a indústria norte-americana tem a mão nas rédeas do mercado musical do globo, sendo um dos únicos caminhos que os artistas podem ter a sorte de acessar para serem lançados às grandes paradas globais.
Cerf afirma, porém, que isso não justifica a perda de espaço para outros gêneros. “Acredito que os estilos musicais têm uma origem, assim como a música latina. Então acredito que se igualar não é a melhor forma de fazer comparações”, completa o diretor.
Hegemonia e influência estadunidense latino
A hegemonia das obras em língua inglesa é observada a partir da predominância de artistas que cantam em inglês nas paradas e premiações internacionais. Em muitos casos, artistas que produzem canções em línguas não-inglesas são relegados a posições marginais no mercado da música. No entanto, alguns artistas de países fora do eixo estadunidense conseguem romper essas barreiras, muitas vezes adaptando-se à indústria musical e emplacando sucessos nas paradas. Isso aconteceu nos anos 1990 com artistas como Shakira e Enrique Iglesias, que conseguiram destaque global ao trocarem as línguas maternas pelo inglês. Carmen Miranda também obteve uma trajetória de reconhecimento internacional na indústria nos primeiros anos da Guerra Fria, entre as décadas de 40 e 50, com uma mescla de letras em português e inglês, em meio a apresentações e trajes exuberantes.
Apesar desses artistas terem estourado a bolha da música latino-americana e alcançado o sucesso global, ainda são poucos exemplos em relação ao grande número de talentos que se desenvolvem na região. Fenômenos no Brasil como Cláudia Leitte e Ivete Sangalo também investiram em uma carreira fora do país, mas não tiveram sucesso notável. Para o crítico musical do The New York Times, Jon Pareles, Ivete não ganhou fama com seu DVD lançado no Madison Square Garden, em 2010, pela mistura de gêneros e línguas utilizadas. “Não será fácil para Sangalo expandir seu território e se juntar a performers como Beyoncé, Madonna e Shakira, estrelas do pop globalmente reconhecidas. Existe, inevitavelmente, uma barreira linguística”, afirmou o crítico em setembro de 2010 para um artigo ao jornal, após a apresentação da cantora.
Ao cantar Human Nature, um clássico do álbum Thriller de Michael Jackson, Ivete usou uma batida do samba reggae baiano que, segundo Pareles, não a favoreceu. “Muitos dos sucessos dela no Brasil, como ‘Cadê Dalila’, usam o ritmo rápido e retumbante da música do carnaval baiano, o axé – um ritmo que poucos fora do Brasil conseguem acompanhar. Ela tentou uma estratégia de crossover internacional: colocar sintetizadores e uma batida de clube comum de 4/4 em um medley de sucessos. No entanto, abrir mão completamente dessa propulsão brasileira neutralizaria sua música. É o dilema do crossover, e um que a Sra. Sangalo ainda precisa resolver.”
Cerf concorda com o crítico. Ritmos como arrocha, funk e, até, o brega funk são os mais populares no Brasil e estão presentes em algumas das produções da discografia de Ivete. “Se nós pegarmos artistas que já têm relevância na indústria, percebemos também outras adições de sonoridades, como Ivete Sangalo, que coloca pop, entre outros artistas que vêm colocando esse tipo de estilo”, analisa o produtor.
Contudo, isso não significa uma incompetência da cantora. A dupla Sandy e Júnior, Michel Teló, Jota Quest e Kelly Key também entram na lista de artistas que não conseguiram deslanchar numa carreira internacional e voltaram a focar somente no Brasil.
Os idiomas estrangeiros, a falta de conhecimento acerca do dia a dia do público internacional, pouca relação com artistas já sucedidos globalmente, a ausência de conexão entre as letras das músicas e a realidade de quem as escutam são alguns pontos que dificultam aos latino-americanos o sucesso fora de seu país. No entanto, não torna impossível.
Recentemente, assistimos a uma reviravolta no cenário da música latina. Segundo a Variety Magazine, a partir de uma pesquisa da Luminate, empresa de dados por trás dos charts da Billboard, revelou que a música latino-americana foi a 5ª mais ouvida no primeiro semestre do ano nos Estados Unidos. Artistas como Bad Bunny, J Balvin e Anitta estão ganhando espaço nas plataformas de streaming e alcançando prêmios internacionais, enquanto mantêm suas línguas de origem, principalmente o espanhol.
Há dois anos, no lançamento do single “Paradinha”, Anitta revelou que já havia feito pesquisas sobre o futuro das músicas em espanhol no mercado e previa que o sucesso logo chegaria. “O que eu precisava era fazer o brasileiro a se acostumar com a música em espanhol”, revelou a cantora.
Furacão 2000 à carreira internacional
De origem carioca, a artista Larissa de Macedo Machado, mundialmente conhecida como “Anitta”, tornou-se uma das maiores cantoras com grandes números e alcance nacional e internacional. A “funkeira”, como era conhecida no início da carreira, foi descoberta através de seus vídeos postados nas redes sociais, no momento em que a internet estava em ascensão.
Carregando o prefixo “MC”, Anitta iniciou no funk carioca realizando shows pelo grupo “Furacão 2000”. Depois de uma quebra de contrato, a cantora lançou o seu primeiro videoclipe solo com “Meiga e abusada”, em 2013, levando a gravadora Warner Music a apostar suas fichas na jovem. No mesmo ano, Anitta lançou seu primeiro álbum individual que levava o nome “Show das Poderosas”, um mix de pop/funk que notabilizou as habilidades da cantora e garantiu o surgimento da legião de fãs, especialmente na comunidade LGBTQIA+.
Em 2014, a cantora apostou em parcerias com nomes da música nacional, como Projota, Simone e Simaria, Nego do Borel e Caetano Veloso, que foram inseridos em seu segundo álbum “Ritmo Perfeito”. As primeiras aparições do desejo internacional surgiram por meio do lançamento “Sua Cara”, canção gravada pelo trio americano Major Lazer com a participação de Pabllo Vittar.
Sete anos atrás, Anitta uniu forças com o colombiano J Balvin na faixa “Ginza” e, no decorrer do mesmo ano, colaborou com o cantor colombiano Maluma, no sucesso “Sim ou Não”. Já em 2017, Anitta fez sua estreia no mercado americano com “Switch”, uma colaboração com a rapper Iggy Azalea que não atingiu o sucesso esperado. Redirecionando sua estratégia, Anitta continuou a investir em parcerias com músicos latinos.
Entretanto, foi com “Envolver”, a faixa principal do álbum “Versions of Me”, de 2022, que Anitta solidificou seu lugar como uma estrela global. A música se tornou um fenômeno viral, especialmente no TikTok. A coreografia provocante, criada pela artista, inspirou um desafio que foi amplamente adotado por celebridades e fãs, que impulsionou a faixa a quebrar recordes e alcançar o primeiro lugar no Spotify mundial.
Segundo Lilian Contreira, professora especializada na língua espanhola e licenciada pela Universidad de Cádiz, na Espanha, Anitta teve mais entrada no mercado internacional quando começou a cantar em espanhol do que por sua fama e personalidade. “Tem mais a ver com a língua, que fica fácil para as pessoas entenderem, do que pela pessoa chamativa. Mesmo que sejamos latinos, às vezes não nos identificamos. Mesmo que a sensualidade seja muito marcada, isso não acontece em toda a América Latina.”
O impacto de “Envolver” elevou Anitta a um patamar de destaque não só no Brasil, mas também nos Estados Unidos e em outros países. Isso garantiu sua presença em programas de televisão americanos e europeus. A canção “Girl From Rio”, lançada em 2022, carrega uma mistura de pop e MPB, de Tom Jobim, por meio da melodia de “Garota de Ipanema”.
O The New York Times publicou um artigo que descreve a jornada da artista desde o início no funk até a ascensão internacional. O título do artigo levanta a questão de se uma estrela pop brasileira poderia conquistar o mercado americano, Anitta respondeu com um enfático “sim”.
Ao longo de mais de uma década de carreira, Anitta conquistou uma trajetória de conquistas e troféus, tanto nacionais quanto internacionais, o que totaliza mais de 200 premiações. Entre eles, a cantora marcou história ao se tornar a primeira brasileira a receber o VMA da MTV EUA na categoria “Melhor Música Latina”. O mérito foi atribuído à música “Envolver”, acompanhada do reconhecimento pela coleção de recordes mundiais do Guinness. Pelo segundo ano consecutivo, Anitta ganhou destaque no VMA e foi premiada com a estatueta de “Melhor Clipe Funk Rave”.
“Pela segunda vez, nós estamos aqui, muito obrigado a todos os meus fãs, sem vocês, eu não seria nada. Devo a vocês tudo o que sou”, agradeceu a cantora.
Bad Bunny e Rosalía
Mesmo com a evidência do sucesso de Anitta ao cantar músicas em espanhol, o idioma ainda enfrenta barreiras para entrar nos hits dos E. A apresentação do cantor porto-riquenho Bad Bunny na premiação do Grammy de 2023 foi marcada por um momento emblemático dessa tensão entre cantores falantes de línguas distintas do inglês. Enquanto o premiado artista se apresentava no palco do evento, as legendas de formato closed caption liam “speaking non english” (falando em “não” inglês), o que incomodou o público e o artista. Bad Bunny ironizou a atenção para o ocorrido durante seu monólogo no programa Saturday Night Live (SNL). Enquanto ele falava em espanhol, a mesma legenda apareceu na tela para, sob protestos do cantor, ser substituída por outra: “speaking in a sexier language” (falando em uma língua mais sexy). Provocando risos na plateia, o Spotify também aderiu ao movimento em apoio ao cantor, criando uma playlist oficial com o título “speaking non-english”, com músicas de Bad Bunny e outros artistas de língua espanhola.
O seu álbum “Un Verano Sin Ti” alcançou números recordes no seu ano de lançamento (2022) e obteve mais de quatro bilhões de reproduções nas plataformas, tornando-se o álbum de maior audiência do planeta naquele período. Contudo, a disposição a empurrar esses artistas para espaços periféricos no mercado musical ainda se vê efetiva, impossibilitando a ascenção de artistas latinos de maneira plena no mercado musical mundial. O episódio no Saturday Night Live (SNL) foi emblemático para ilustrar o fenômeno, colocando a música e a língua inglesa como se fossem um fim que poderia deliberadamente agregar elementos das outras músicas, sem as impulsionar.
Apesar da repercussão, o caso de Bad Bunny no cenário atual não é isolado: a música de língua espanhola também conta com expoentes como J Balvin e a cantora Rosália. Juntos, ambos reuniram mais de três bilhões de streams nas plataformas digitais de distribuição, o que representa a força de propulsão do mercado de línguas latinas no cenário global.
A cantora espanhola Rosalía venceu na categoria de “Melhor Álbum Latino Rock ou Alternativo” no Grammy Awards que aconteceu em fevereiro do ano passado. O álbum é o terceiro de estúdio da cantora e compositora, lançado em 18 de março de 2022. Mas, não, Rosalía não é latino-americana. Então, por que uma cantora europeia ganharia um Grammy Latino?
Lucas Marques, professor de história formado pela Universidade de São Paulo (USP), afirma que existem diferentes definições para o termo. “Rosalía é de língua latina e, teoricamente, é possível chamá-la de latina. Mas existe uma diferença. Italianos, espanhóis, portugueses, romenos são latinos, mas temos que tomar cuidado para esse termo não ser confundido com latino-americano”. Portanto, linguisticamente, ela é de uma língua de família latina.
Harmonias transculturais
Diversos fatores exercem influência no crescimento de artistas em escala global e transcendem fronteiras culturais. Nos últimos anos, destacam-se as características singulares de artistas que incorporam elementos culturais como diferencial, seja utilizando sua língua de origem nas músicas, adotando ritmos típicos de seus países ou explorando a estética cultural de cada região. Esses elementos alimentam uma expansão cultural que, por sua vez, é habilmente comercializada.
Apesar de diagnosticar uma falta de familiaridade entre os países da América Latina, o professor Lucas acredita que a homogeneização cultural do mundo afeta positivamente a disposição dos brasileiros em consumir música latina. “Nós temos movimentos de resistência, que não são de hoje. Atualmente, com as redes sociais e tecnologias de bolso, temos acesso a esses coletivos. E é importante lembrar que, quando nos reconhecemos como latinos-americanos, começamos a perceber as semelhanças entre nós.”
Com a ideia de manter outros estilos de música ativos, Raphael Nascimento e mais quatro DJs se juntaram em outubro de 2017 para formar um grupo chamado Quack!, que promove festas em casas de música eletrônica. Eles são focados no downtempo – gênero que abarca a multiculturalidade latina, como o andes beat, um micro gênero musical influenciado pela música andina, de origem peruana.
“A Quack, inicialmente, se formou juntando vários DJs da cena eletrônica que estavam querendo eventos focados em um som específico de downtempo, que é um termo genérico para as musicas eletrônicas de bpms mais baixos, mas que abraça vários sub-gêneros musicais, como o Organic House ou Psychill e várias vertentes com influências latinas”, afirma Nascimento.
A cena do downtempo no Brasil é pequena, comparada com o resto da América Latina. Mas em São Paulo, ainda há algumas casas de música que apostam no estilo musical. A Zaragata e a Organu são do mesmo produtor e estão localizadas no centro da cidade, nos bairros da Luz e da República, respectivamente. Também existe a Quack e, em menor proporção, a Probleminha, ambas do produtor e DJ Raphael Nascimento.
A música latina está mais presente no Brasil e no mundo do que se imagina. Artistas como Bad Bunny, Anitta e Rosalía, e os estilos musicais que eles produzem seguem apostando na pluralidade de outras culturas fora da influência estadunidense e manejam equilíbrio entre adequação ao modelo predominante e as referências regionais. Para Contreira, que começou a estudar espanhol ainda na adolescência por influência familiar, o que existe no setor não é preconceito, é ignorância.
Autores: Beatriz Cyrino, Gabriel Vallilo, Giovanna Machado, Lívia H. Magalhães e Luigi Di Fiore.
Fonte: Cásper Líbero.