Erico Veríssimo utiliza suas inúmeras personagens para retratar diferentes tipos de pessoas.
Aviso: Esta resenha contém spoilers.
O livro Incidente em Antares (Companhia das Letras, 2023) foi publicado pela primeira vez em 1971 por Erico Veríssimo, escritor natural do Rio Grande do Sul, também conhecido por obras como O tempo e o vento (Editora Globo, 1949) e Olhai os lírios do campo (Editora Globo, 1938). O romance apresenta críticas políticas fortes, considerando a época em que foi publicado, e é um exemplo do gênero Realismo Fantástico.
Parte I: Antares
As primeiras duzentas páginas são dedicadas a explorar a fictícia cidade de Antares desde sua fundação e contextualizá-la quanto ao resto do planeta. Há uma extensa construção de mundo e detalhamento da genealogia das personagens que tomarão parte no chamado “incidente” somente ao final do livro. Uma das explicações mais cômicas presentes nesse início é o motivo pelo qual o município não aparece em mapas do mundo real: os cartógrafos esqueceram-se de incluí-lo.
O autor inventa livros científicos e artigos jornalísticos para explicar os acontecimentos dessa época, mas com divergências de informações entre os textos e o uso parcial de adjetivos pelos escritores, evidenciando que os relatos não eram tão confiáveis. A cidade segue a cronologia do mundo real de maneira semelhante às cidades ao redor — ou seja, os municípios localizados na fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai e a Argentina, como São Borja. Algumas personalidades famosas tomam parte nos acontecimentos de Antares, como Getúlio Vargas e Jânio Quadros.
Existe uma rivalidade entre duas famílias principais, os “clãs” dos Vacarianos e dos Campolargos. Nas palavras do professor Martim, personagem que realizou um estudo no município de Antares, “esta cidade em matéria de rivalidades tem um caráter por assim dizer binário”. Vacarianos e Campolargos, Esportivo Missioneiro e Fronteira F.C., Clube Comercial e Clube Caixeiral, a dualidade está presente durante toda a obra, refletindo o próprio cenário brasileiro e mundial da época de publicação.
“Neutralidade, entretanto, era uma palavra inexistente no vocabulário político e social de Antares. O forasteiro que ali chegasse, mesmo para uma visita breve, era praticamente obrigado a tomar logo partido.”– p. 34
Após séculos de mortes e torturas horríveis, o próprio Vargas é responsável por instalar uma trégua entre os dois líderes das famílias — e consegue, visto que ambos estavam interessados nas vantagens políticas que uma boa imagem com Getúlio poderia fornecer.
Essa é uma outra característica presente nas personagens: praticamente todas se preocupam somente com interesses particulares e cometem os maiores absurdos para satisfazê-los. Tibério, representante dos Vacarianos, é talvez o maior exemplo de um antarense nato — ele cria uma amizade forte com Vargas para conseguir cargos no governo. Porém, assim que o presidente perde seu poder político, essa relação é terminada a ponto de Tibério nem ir ao enterro do velho amigo.
“Quando eu morrer não me santifiquem. Sou um homem cheio de defeitos e de alguns deles até me orgulho.” – p. 118
Parte II: O Incidente
O ponto de virada da narrativa é uma greve geral encomendada por três fábricas de estrangeiros em Antares. Grande parte da cidade, conservadora, foi contra, mas os adeptos ao evento tiveram sucesso e barraram, inclusive, o enterro de pessoas no cemitério, para que suas reivindicações fossem atendidas com mais rapidez.
Os seis caixões que não puderam ser enterrados tinham como hospedeiros a dona Quita Campolargo, o advogado Cícero Branco, o sapateiro Barcelona, o pianista prof. Menandro Olinda, a prostituta Erotildes, o pacifista João Paz e um homem apelidado de Pudim de Cachaça.
Durante a noite que deveriam estar enterrados, os mortos inexplicavelmente voltam à vida — não de uma forma espiritual ou fantasmagórica, mas sim com os próprios corpos em decomposição. Hoje em dia, essas figuras poderiam ser chamadas de zumbis, mas esses personagens não eram comuns na mídia da época, o que significa que Erico pode ter sido um dos pioneiros do gênero.
As criaturas ressuscitadas apresentam o mesmo raciocínio e formas de pensar que tinham em vida, com a diferença de que não precisam mais se preocupar com a própria imagem. “A morte me confere todas as imunidades”, afirma Cícero Branco. Eles utilizam essa oportunidade para expor todos os segredos, políticos ou sexuais, dos poderosos de Antares, e provocam reflexões sobre a morte e a podridão humana.
“Será que a verdade fede e é só da mentira que se evolam os doces perfumes da vida? Será que o famoso poço da lenda, em cujo fundo se esconde a verdade, é feito de lodo e podridão?” – p. 396
Uma das situações expostas nessa noite foi a morte de João Paz. Ele foi considerado um comunista e, por isso, foi torturado até a morte pelo delegado antarense. A viúva grávida do pacifista só não foi também torturada porque concedeu os nomes dos participantes de uma suposta organização — que não existia, mas a mulher foi obrigada a conceder informações falsas. O livro foi publicado durante o governo Médici, logo após o estabelecimento do AI-5, e Erico não poupa palavras para descrever as cenas horríveis que João vivenciou. Na verdade, o autor é bem descritivo mesmo com alguns dos acontecimentos sensíveis da obra, como pedofilia, estupro e prostituição.
Quase todos os cidadãos de Antares são afetados pelas confissões dos mortos. Se a personagem não estava diretamente envolvida na questão, certamente tinha conhecimento dela e fechava os olhos para a situação. O próprio Cícero Branco teve envolvimento na tortura de João Paz, e após a morte tornou-se responsável por divulgar essa informação na frente de todos.
“Nenhum de nós ignora os crimes do delegado de polícia e de seus especialistas em torturas. Fechamos sempre os olhos e a boca por comodismo, indiferença ou covardia.”– p. 438
Outra situação exposta foi o roubo das jóias do cadáver de Quita, que tinha explicitamente comunicado em vida que gostaria de ser enterrada com elas. Os ladrões foram os próprios filhos, que inclusive começaram a brigar pelas peças. A mulher recupera seus enfeites e os mortos retornam aos caixões quando terminam de falar, mas no momento em que Quita é enterrada está novamente sem as jóias.
O último roubo exemplifica o que ocorreu após o enterro dos mortos. O prefeito fez um esforço enorme para que todos acreditassem que aquilo tudo foi apenas uma alucinação coletiva dos moradores, e as pessoas rapidamente começaram a esquecer dos acontecimentos. Os casais que se separaram após as exposições de traição são reatados, os poderosos que cometeram crimes não sofrem nenhuma penalidade e a ditadura é instalada no Brasil.
“Sete anos após aquela terrível sexta-feira 13 de dezembro de 1963, pode-se afirmar, sem risco de exagero, que Antares esqueceu o seu macabro incidente. Ou então sabe fingir muito bem.”– p. 545
Dinossauros e seres humanos
Um detalhe interessante na construção da narrativa é a utilização das eras geológicas e dos dinossauros para se referir a uma suposta pré-história de Antares. Esses conceitos aparecem até o final do livro, em diferentes contextos, comportando-se como uma piada interna. Por exemplo, quando dois senhores importantes na política de Antares morrem, o autor se refere a eles como os “gliptodontes” e “megatérios” que se extinguiram no final do Pleistoceno, e Antares entra em seu “Eoceno político”. Essas analogias ilustram bem a máquina política ultrapassada e estagnada do mundo real.
A obra tem incontáveis personagens, o que poderia ser perigoso por causar pouca profundidade ou confusões de nomes. Porém, o autor tem o trabalho de fornecer características peculiares que se destacam em cada uma, como o prefeito que tem uma paixão enorme por orquídeas. Esse aspecto traz uma personalidade à figura do antarense, sem possuir protagonistas específicos e sem deixar de lado a individualidade.
No momento em que os mortos caminham pela cidade, são mostradas as reações individuais de cada morador, e não uma única reação coletiva de espanto ou surpresa. Outro detalhamento feito é a repercussão das confissões dos mortos pela cidade, vista pelos olhos da telefonista, que escuta todas as brigas de casais e tiradas de satisfação pelas chamadas de áudio. Erico consegue descrever o caráter e partes do passado de forma a construir certa empatia e reconhecimento por todas as personagens.
Autora: Gabriela Cecchin.
Fonte: Jornalismo Júnior/USP.