“Não é porque o Brasil não protagoniza uma guerra desde o Paraguai, que podemos falar que não há violência”, diz especialista sobre trabalho análogo à escravidão no Brasil.
“Nós não podemos conhecer os nossos filhos! Saímos de casa às seis horas da manhã. Eles estão dormindo. Chegamos às dez horas. Eles estão dormindo. Não temos férias! Não temos descanso dominical”, reclama um operário durante uma reunião sindical. O trecho foi retirado do livro “Parque Industrial”, publicado por Pagu, em 1933, como uma forma de denunciar a exploração sofrida pelos trabalhadores da época. Quase um século depois, a situação nos ambientes de trabalho permanece a mesma.
No dia 18 de maio de 2023, José Vinicius Santos urinou na própria roupa dentro do seu posto de trabalho. A câmera filmava a poça acumulada nos seus pés e a roupa empapada enquanto sua voz sobressaía-se ao fundo: “Eu não posso sair daqui, porque se eu sair do quiosque, levo advertência. A segunda vez, levo suspensão. E, a terceira, levo uma justa causa”. O funcionário aracajuense do Burger King relatou que, além das constantes ameaças de demissão, a situação chegou ao extremo após uma série de reprimendas por não fazer hora extra.
Seu caso não é isolado. Segundo pesquisa da Confederação Sindical Internacional (CSI), entre abril de 2021 e março de 2022, o Brasil foi o décimo país a registrar mais casos de violações dos direitos trabalhistas. Alexandre Tranjan, doutorando em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo (USP), explica que a ocorrência revela uma problemática que vai muito além da falta de conhecimento do trabalhador com relação aos seus próprios direitos:
“Evidentemente, quem tem poucas oportunidades de ganhar sustento vai prescindir de todo e qualquer tipo de proteção jurídica, por mais míseras que sejam as suas condições. Na medida em que ele percebe que, se procurar os seus direitos, estará possivelmente condenado à fome, também se sente inseguro em entrar com uma ação trabalhista e nunca mais conseguir um emprego.”
Além dos descumprimentos das leis trabalhistas, a remuneração, na maioria das vezes, não é adequada. Segundo o jornal O Globo, quase 70% dos trabalhadores brasileiros recebem até dois salários mínimos. A porcentagem equivale a 66,7 milhões de pessoas e o número dos que recebem até um salário mínimo chega a 37% (35,5 milhões) da população.
Dos cidadãos que têm ocupação – cerca de 98 milhões -, 13 milhões não possuem carteira assinada. Em 2022, esse número atingiu seu recorde desde o início da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (Pnad), em 2012. Esses índices, segundo a especialista Adriana Beringuy para a Agência Brasil, refletem “a recuperação do impacto que a pandemia da Covid-19 teve no mercado de trabalho brasileiro e mundial”.
As ofertas para empregos com carteira assinada, em maioria, requerem baixa escolaridade e pagam salários mais baixos. São vagas para ocupações comumente marginalizadas, por exemplo, para serviços de limpeza, porteiros e zeladores. Situações abusivas são recorrentes neste tipo de relação trabalhista – mesmo com a proteção da CLT – a qual o trabalhador se sujeita por questões de carestia.
Segundo Tranjan, isso se explica na dualidade da CLT, uma vez que ela garante proteção jurídica aos colaboradores ao passo que têm sido evitada pelos empregadores pela mesma razão. Aqueles aceitam serviços com menos direitos e vínculos empregatícios porque é a única opção que possuem: “A legislação trabalhista serve como horizonte de legitimação da exploração do trabalho assalariado na medida em que há um estatuto que estabelece os limites dessa exploração. Apesar de existir proteção legal, há muita gente querendo emprego, passando fome.”
Paralelamente ao crescimento da exploração, surge uma romantização do trabalho informal. Para o doutorando, há um interesse na propagação desse discurso que parte da classe de trabalhadores mais confortáveis com sua situação, como analistas e gerentes de grandes empresas, em direção a entregadores de comida ou pessoas que enfrentam condições extremas de exploração. “O trabalhador se vê submisso ao discurso de que ele vai enriquecer com sua força de vontade, e, ao mesmo tempo, ganha força a ideologia de que quem faz greve é ‘vagabundo’ e que quem critica o capitalismo tem inveja dos ricos”.
É assim que forma-se a figura do “pobre de direita” como uma clara contradição entre os interesses da classe, explica Tranjan: “Na prática, eles são criados subjetivamente, pelos aparelhos ideológicos que constroem um horizonte de representação do mundo capitalista, que se afirma meritocrático”. O pesquisador interpreta que há uma perpetuação histórica desses discursos, construídos a partir de interesses materiais e ideológicos, que são repetidos nos espaços de convivência social, como as escolas, as igrejas e os núcleos familiares. “A maioria dos aparelhos são os mantenedores do status quo e, estrutural e funcionalmente, vinculados à burguesia”.
TRABALHO ANÁLOGO À ESCRAVIDÃO
Além de casos corriqueiros de infrações dos direitos dos trabalhadores, quadros de trabalho análogos à escravidão repercutiram no país. Segundo o artigo 149 do Código Penal, elementos que categorizam essa condição são: a submissão a trabalhos forçados ou a jornadas exaustivas, a sujeição a condições degradantes de trabalho e a restrição de locomoção do trabalhador. No caso do vídeo de José Santos, funcionário do Burger King de Aracaju citado no início da reportagem, o trabalho, apesar de remunerado, contém todos os elementos que configuram o crime.
Como Tranjan aponta, há diversas formas de submissão do trabalhador. A restrição de liberdade e a imposição de regimes duríssimos e não compensados de trabalho são questões que tipificam o caso como uma condição análoga à escravidão. No entanto, apesar da definição legal, é difícil para o trabalhador se reconhecer vítima desse cenário. Muitas vezes, o explorado opta por permanecer na situação, porque a expectativa de que sua vida melhore, caso ele se liberte, é muito baixa.
Em março deste ano, as empresas da Vinícola Aurora foram flagradas usando trabalho escravo, no Rio Grande do Sul. O grupo, até então, era premiado pelo selo Great Place to Work (GPTW), que reconhece os ambientes com as melhores condições de trabalho.
A maioria das pessoas mantidas escravizadas nas colheitas de uva eram nordestinos. Três deles conseguiram fugir e, em operação feita em conjunto entre a Polícia Rodoviária Federal (PRF), a Polícia Federal (PF) e o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), duzentos foram resgatados e levados ao seus estados de origem. Além das agressões físicas, os trabalhadores eram constantemente vítimas de ofensas xenofóbicas e racistas. Ao jornal Folha de São Paulo, um dos resgatados relata ter ouvido: “Mata os baianos, porque eles acabaram com a gente”.
Essa realidade reflete o conceito de colonialismo interno, cunhado pelo antropólogo e sociólogo mexicano Rodolfo Stavenhagen. O termo descreve dinâmicas de poder desiguais e relações de dominação perpetuadas dentro das fronteiras de um país. O caso da Vinícola Aurora ilustra como a opressão, a exploração econômica e a marginalização de um grupo étnico ou regional alimentam um ciclo de desigualdade e violação de direitos humanos.
Para Tranjan, isso explica que, além da luta de classes, há uma luta de raças eminente no plano global. Assim, um grupo de indivíduos é relacionado a uma caracterização sub-humana para ser submetido à condição de explorado: “Aconteceu com os negros e indígenas, ao longo da história, e, nesse caso, com os nordestinos. É parte do processo de exploração em seus níveis mais extremos”.
No Brasil, outros setores também são marcados pelo trabalho escravo. No ramo da indústria têxtil, por exemplo, diversos casos já foram denunciados e apurados. A Repórter Brasil indicou, em 2012, que a maior parte dos trabalhadores nessas condições eram bolivianos. Essa relação de violência e exploração coloca o Brasil em uma posição imperialista, interna e externamente, mesmo que entre dois países considerados periféricos em relação às grandes potências.
Na opinião do especialista, o Brasil reproduz as condições de exploração que sofre como periferia no plano global. Para ele, a adoção de uma exploração capitalista tão intensa rompe com o imaginário do país enquanto nação acolhedora e pacífica, o que caracteriza uma “mutilação simbólica”.
“É uma espécie de sequestro do tempo do trabalhador, dos seus esforços vitais e da sua energia. Não é porque o Brasil não protagoniza uma guerra desde o Paraguai que podemos falar que não há violência, porque elas estão materializadas, o tempo todo presentes na realidade social brasileira.”
Autores: André Albuquerque, Arthur Ferreira, Isabella Placeres, Lara Sanchez e Maria Clara Nunes.
Fonte: Cásper Líbero.