Ascensão do movimento nas arquibancadas promove quebra de paradigma e obriga o esporte a repensar relação com estrutura homofóbica.
O futebol é, como qualquer esporte, reflexo da sociedade e de suas estruturas. No Brasil, país que mais mata pessoas LGBTQIA+ no mundo, a homofobia compõe parte estruturante das relações que permeiam a modalidade.
A presença de cânticos e apelidos homofóbicos entre torcidas do futebol brasileiro existe como constante histórica. Nos estádios, grande parte dos xingamentos têm teor preconceituoso. “Não há jogador que escape de ser chamado de ‘viado’ ao chutar fraco, por exemplo”, aponta Cecília Sidrim, torcedora do Flamengo.
Embora essa condição se mantenha, a presença de coletivos LGBTQIA+ nos espaços esportivos provocou uma quebra de paradigma. Se antes esses grupos precisavam se esconder e evitar esses lugares, em prol da própria segurança, agora eles ocupam arquibancadas, com bandeiras e camisas referentes à causa. A luta por representatividade ganha outro contorno quando exposta para milhões de torcedores.
Beatriz França, líder do Vasco LGBTQ+, explica a importância das ações do clube carioca para dar visibilidade ao movimento: “A chave começou a virar quando passamos a fazer camisas de jogo LGBT”. Ela relata que, depois de um árduo início do projeto, com resistência da torcida e de membros da diretoria, chegaram pessoas no Vasco dispostas a resgatar o lado social do time. Em pouco mais de um ano de existência do coletivo, fundado em 2020, o clube estreou seu primeiro uniforme oficial a favor da causa — na partida contra o Brusque, pela Série B 2021.
A torcedora fala, também, a respeito da expansão dessa bandeira para pessoas hétero, sensibilizadas pela compreensão da responsabilidade social daquele contexto. “Em dado momento, chegamos a ter mais pessoas héteros que LGBT no grupo, porque eles se preocupavam com nossa integridade”, afirma Beatriz. Ela ainda acrescenta: “As pessoas passaram a entender que a partir do momento que alguém escolhe o time, ele tem que estar seguro para torcer para esse time”.
Primeiras torcidas LGBTQIA+
As primeiras torcidas LGBTQIA+ a surgirem no futebol brasileiro datam da década de 1970. Durante a Ditadura Militar, a Coligay e a FlaGay, grupos de torcedores do Grêmio e do Flamengo, respectivamente, enfrentaram a repressão do Estado e do meio futebolístico, para dar um passo inédito na luta contra a homofobia no esporte.
A Coligay foi fundada em 1977, por Valmor Santos, dono da casa noturna Coliseu, em Porto Alegre. Apesar da resistência à presença do grupo nos estádios, eles acompanharam o momento vitorioso do time gaúcho na passagem para a década de 1980 e foram aceitos pela diretoria do clube e por parte dos gremistas à época.
Em 1983, Volmar teve que voltar para a sua terra natal, por motivos familiares, e deixou o grupo. Fragilizado pela saída de seu líder, o coletivo encerrou as atividades, mas não sem deixar legado. “Vai ficar para o resto da vida na história do Grêmio”, afirmou o fundador da Coligay em entrevista ao jornal Zero Hora em 2022.
Também criada no final dos anos 1970, a FlaGay sofreu com recepção negativa da torcida flamenguista. Liderada por Clóvis Bornay, fundador do grupo, a organizada compareceu a um clássico contra o Fluminense no Maracanã, que acabou com derrota rubro-negra por 3 a 0. A torcida, então, foi não apenas hostilizada, mas também responsabilizada pelo revés diante do rival. Sem apoio, deixou de existir no mesmo ano de sua criação.
Somente trinta anos depois da formação das primeiras torcidas LGBTQIA+ que o futebol brasileiro voltou a abrir espaço para novos coletivos. Em 2013, a atleticana Nathalia Duarte criou o Galo Queer, inicialmente apenas como página no Facebook, para retomar a pauta entre os torcedores. Ela não esperava, no entanto, que, a partir disso, haveria um impulso para a criação de vários outros grupos pelo Brasil.
Em 2021, o perfil O Contra-Ataque produziu uma linha do tempo da fundação das torcidas LGBTQIA+ no país. O levantamento constatou que, após boom no início da década de 2010, houve um hiato até 2019, quando os torcedores aprofundaram-se de vez no tema e elaboraram a criação de coletivos para times de todas as divisões do Brasileirão.
Data de fundação das torcidas LGBTQIA+ no futebol brasileiro [Arte: Reprodução/Sko]
Visibilidade da causa no futebol
Mesmo com o crescimento dos coletivos e a presença de torcedores LGBTQIA+ nos estádios, demorou até que clubes brasileiros abrissem os olhos para o tema. O jornalista João Abel aborda isso no livro “Bicha! Homofobia estrutural no futebol”, de sua autoria, publicado pela editora Primeiro Lugar em 2019.
Hoje social media e colunista do Estadão, ele trabalhou em empresa que prestava serviço de assessoria ao Palmeiras entre 2015 e 2017 e relata que não havia nenhuma menção à pauta. Introduzido naquela lógica, sequer ele pensava em abordar a temática nos conteúdos produzidos para o clube.
A realidade começou a mudar a partir de 2017, quando quatro clubes brasileiros — Bahia, Flamengo, Grêmio e Internacional — se posicionaram pela primeira vez no Dia Internacional do Orgulho LGBT pelas redes sociais. Embora pareça pouco, o gesto simbolizou a primeira resposta institucional do futebol brasileiro ao progresso do combate à homofobia na sociedade.
Em 2018, o número de times se manteve, mas o Flamengo deu lugar ao Vasco na lista. Já em 2019, 13 dos maiores clubes do país utilizaram as redes para se manifestar em favor da causa. Alguns dos principais times, no entanto, continuaram calados e, dessa vez, a omissão foi sentida mais do que nunca.
Bandeira do PorcoÍris que foi estendida no Allianz Parque [Foto: Divulgação/PorcoÍris]
Esse foi o ponto-chave para a criação do PorcoÍris, coletivo LGBTQIA+ do Palmeiras, revela Carlos Monteiro, representante do grupo. “Em 2019, diversos clubes postaram conteúdos no dia 28 de junho, Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+, e o Palmeiras, não; tendo, em outro momento, postado uma imagem estranha de um casal heterosexual, com a seguinte legenda: ‘A verdadeira família”‘.
Cerca de um ano após sua fundação, o coletivo conseguiu estender no Allianz Parque uma bandeira com as cores do arco-íris pela primeira vez na história do estádio. A ocasião aconteceu durante a pandemia, quando havia restrição total de público nas arquibancadas, mas os torcedores organizavam faixas e bandeiras para simbolizar sua presença durante os jogos.
O episódio demonstra que, hoje, apenas se posicionar nas redes sociais é uma contribuição insuficiente para a causa. Isso, para João Abel, evidencia uma evolução na abordagem do tema. “É sinal de uma evolução saber que em 2020 fazia sentido fazer esse levantamento. Mostrava que os clubes tinham acordado por uma pauta que ignoravam ou rejeitavam. Hoje não faz sentido, os clubes precisam fazer mais”, aponta o jornalista.
Resposta institucional ao movimento
Embora o crescimento de torcidas LGBTQIA+ abra espaço para a causa, ainda são os clubes e as federações os responsáveis por cristalizar este avanço por meio de ações afirmativas. Carlos afirma ser papel das instituições trabalhar pela reeducação dos torcedores e cita: “Promover ações educativas com ídolos que estejam dispostos a colocar sua imagem e seu prestígio a serviço do combate ao preconceito é umas das ideias para mudar esse pensamento”.
Para lidar melhor com a pauta, diversos clubes criaram departamentos específicos, a exemplo de Santos e Cruzeiro, que fundaram núcleos afirmativos. De acordo com o time mineiro, o Comitê de Diversidade e Inclusão, formado em 2020, é conduzido por colaboradores que têm autonomia para realizar ações internas e nortear o clube nesta área.
Pioneiro em ações de grande porte contra a homofobia no esporte, o Vasco foi além e abriu as portas para o Vasco LGBT elaborar, em conjunto com o clube, a primeira camisa em homenagem ao movimento. Com a eleição de Jorge Salgado, ao final de 2020, a nova diretoria vascaína empenhou-se em dar destaque para temas sociais durante o mandato.
Campanha de lançamento da camisa LGBTQIA+ do Vasco [Arte: Divulgação/Vasco]
Com a criação do novo uniforme, outro elemento entrou em jogo para os times: o apelo comercial. Sucesso imediato de vendas, a primeira leva da camisa esgotou em menos de uma hora, segundo reportagem do jornal Extra. Em seguida, Flamengo e Bahia também aderiram à ideia e lançaram versões próprias.
A utilização da causa pró-marketing é discutida pelo movimento e não há consenso. “Tenho a camisa do Vasco e não sou vascaíno. Os clubes entenderam que isso é importante, também, como uma questão financeira. Discute-se se isso é algo que a gente precisa se preocupar, se é por causa da grana. Na minha visão, não tem problema nenhum. Se eles estão levantando essa bandeira, passando a mensagem para milhões de fãs, já está bom”, pondera João Abel a respeito do tópico.
Abordagem jornalística da causa
Além de torcedores e clubes, a imprensa esportiva também tem grande papel neste cenário. De acordo com o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, os profissionais da área, no cumprimento da função, devem atuar em prol da democracia e da defesa das minorias. Sendo assim, é de incumbência de todo jornalista promover o combate à homofobia nos meios de comunicação. Como difusores da informação, profissionais da área são responsáveis também por denunciar casos de discriminação.
Fundado em 2014, o Observatório da Discriminação Racial no Futebol cumpre importante função de registrar ocorrências de atos preconceituosos de todos os tipos no esporte. São feitos relatórios anuais, com a descrição detalhada dos casos e um compilado das informações expostas em infográfico.
Se comparados os relatórios de 2017 e 2021, mais recente publicado, é possível perceber um aumento considerável dos casos de LGBTfobia. No primeiro ano, foram registradas 10 ocorrências; enquanto na outra data, 24. Embora o dado ligue um alerta, esse acréscimo também se justifica, em partes, à maior notificação dos casos gerada por mais vigilância no combate à discriminação no esporte.
Relatório de casos de discriminação e preconceito no futebol brasileiro em 2017 [Imagem: Reprodução/Observatório da Discriminação Racial no Futebol]
Relatório de casos de discriminação e preconceito no futebol brasileiro em 2021 [Imagem: Reprodução/Observatório da Discriminação Racial no Futebol]
O jornalista João Abel acredita que a imprensa esportiva está acompanhando o progresso da causa LGBTQIA+ na sociedade. “Acho que, caso um jogador de um clube de elite se assumisse homossexual, entre imprensa, clubes e torcida, a imprensa seria a primeira a apoiar a decisão. Porque a gente aprendeu a falar sobre isso”, afirma.
Em contrapartida, Carlos, do PorcoÍris, aponta que, embora haja evolução no tema dentro da imprensa, “existem barreiras no comando das editorias”.
“Poderia ser muito melhor. A gente percebe dentro da imprensa que existe uma boa vontade, mas ainda existe também um discurso moralista”, complementa.
As redações e equipes de televisão, no geral, apresentam ainda uma diversidade muito baixa. E o primeiro passo é ampliar a diversidade das fontes, para depois fazer o mesmo com sua própria estrutura. Essa, para João Abel é uma das principais maneiras do setor de contribuir com a causa: “Quanto mais diversa for a imprensa, melhor será o conteúdo que será produzido”
Autor: Artur Abramo.
Fonte: Jornalismo Júnior/USP.