As produções culturais da Coreia do Sul influenciam diretamente os comportamentos e as percepções de pessoas que vivem do outro lado do oceano.
A vinda do cantor e astro das novelas da Coreia do Sul, Cha Eun Woo, para São Paulo no início do mês de junho demonstra a enorme relevância do público brasileiro como consumidor da cultura sul-coreana. A sua primeira vinda ao Brasil foi marcada por um único show da sua turnê solo Just One 10 Minutes [Mystery Elevator] e contou com um público de diferentes regiões do Brasil, além de pessoas de outros países, como do Chile, que vieram a capital paulista apenas para participar do evento.
Hallyu é o nome do movimento que caracteriza a influência exercida pela Coreia do Sul para além de suas fronteiras graças, sobretudo, à sua produção cultural, que induz novos padrões de consumo no mundo todo.
Essa onda de popularidade começou de forma orgânica pela internet. Nas redes sociais, os fãs traduziam de forma autônoma novelas e músicas, além de confeccionar e comercializar seus próprios produtos que fazem referência a esse universo. O movimento gradualmente atraiu a atenção dos grandes empresários, que começaram a investir neste setor de maneira inédita, auxiliando a consolidar a quarta onda da Hallyu, não apenas no Brasil, mas no mundo.
Apesar da influência cultural sul-coreana ter contornos globais, o Brasil ocupa uma posição de destaque entre os impactados. De acordo com o Spotify, o Brasil é o quinto maior país consumidor de K-Pop, com um crescimento de 47% ao ano. Além disso, durante a pandemia, o país tornou-se o terceiro maior consumidor de doramas (novelas sul-coreanas), atrás apenas da Malásia e da Tailândia, segundo dados divulgados em 2020 pelo Ministério da Cultura, Esportes e Turismo da Coreia do Sul.
O consumo em torno desse país não se limita apenas a ouvir músicas e assistir a novelas, o público busca uma maior proximidade com o estilo de vida da Coreia do Sul. Em pesquisa realizada por Amália Costa e Marina Presser, 58% dos participantes revelou já ter comprado algum produto por influência direta de um artista sul-coreano ou porquê remetia a esse universo, sendo que as principais categorias de consumo são: música — álbuns e pôsteres — , comida, cosméticos e vestuário.
Outros profissionais, como os influenciadores digitais, se beneficiam dessa popularidade. Embora produzam conteúdos sobre o outro lado do mundo e nunca tenham ido para lá, eles conseguem transformar o seu carinho pessoal em uma fonte de renda. Esse é o caso da criadora Dani Silva que tem mais de 700 mil seguidores no TikTok e posta vídeos todos os dias com atualizações e opiniões sobre o universo sul-coreano.
Em entrevista para a Jornalismo Júnior, Dani relata que teve um sucesso inesperado nas redes sociais após publicar um vídeo com suas opiniões sobre um dorama. Sobre o alcance desse estilo de conteúdo, ela afirma que “vários outros criadores começaram a fazer conteúdo sobre dorama. Até as próprias plataformas de streaming começaram a investir mais em produções sul-coreanas, porque o público realmente começou a abraçar esse tipo de produção”.
A Coreia do Sul made in Brasil
Para além do digital, não apenas novas lojas físicas e restaurantes em bairros de São Paulo como Liberdade e Bom-Retiro, mas também os prestadores de serviços, como professores de coreano e grupos covers de K-Pop trazem parte da Coreia do Sul ao Brasil.
O perfil daqueles que buscam maior imersão cultural pelo ensino da língua coreana mudou após a quarta onda da hallyu. Em entrevista à Jornalismo Júnior, a tradutora, professora de idiomas e criadora de conteúdo Ara Cho conta sobre a evolução do interesse pela língua. “Quando comecei a dar aula de coreano, era para mais filhos e descendentes de coreanos, o público era totalmente diferente. Tinha pessoas não coreanas também entre os alunos, mas era um número bem menor.”
Ela acrescenta que, em um momento inicial, os fãs de entretenimento coreano escondiam a motivação por trás de seu interesse pelas aulas. “Hoje em dia, acho que como é muito mais comum o interesse pelo K-Pop, as pessoas estão mais abertas, deixam bem claras que são fãs de K-Pop e da novela coreana. Não é mais um tabu”, expõe.
Além da crescente busca por aprender o idioma, os hábitos alimentares dos brasileiros que consomem a cultura sul-coreana também têm apresentado mudanças. “Depois que comecei a experimentar comida coreana, passei a gostar e agora quero cada vez mais”, exemplifica a influenciadora Dani.
A economia coreana conta com esse público
Segundo a pesquisa do artigo “Consumo de Cultura de K-Pop: uma análise do consumo de produtos culturais coreanos a partir da quarta onda Hallyu”, o público que tem sido influenciado e que, do mesmo modo, influencia a economia, são jovens entre 20 e 25 anos. Essas pessoas são predominantemente do gênero feminino, autodeclaradas brancas e estudantes empregadas com uma média de consumo diário de 2 à 3 horas apenas de K-Pop, fora as outras produções coreanas.
Tendo em vista esse padrão, a hallyu não apenas agrada o mercado brasileiro, como beneficia a economia sul-coreana, já que a maioria dos consumidores, além de ser maior de idade, possui renda própria.
Conforme dados da revista Forbes, o produto interno bruto (PIB) da Coreia do Sul tem uma intensa relação com a indústria do K-Pop, que é avaliada em 10 bilhões de dólares. Sendo assim, quando ocorrem alterações nesse setor, elas podem influenciar o país como um todo.
Em 2022, quando o grupo BTS anunciou uma pausa temporária para os membros focarem em suas carreiras solo, a economia do ano inteiro sofreu por essa decisão. Os sete integrantes, quando juntos, por meio de turnês, músicas, venda de produtos de suas marcas e incentivo ao turismo, geram mais de 3,6 bilhões de dólares todos os anos ao governo coreano e após o pronunciamento isso foi diretamente afetado.
Devido ao carinho intenso dos fãs, o governo da Coreia do Sul vê o turismo como uma grande chave para recuperar sua economia após os prejuízos causados pela pandemia da covid-19. O relatório do Conselho Mundial de Viagens e Turismos prevê que esse setor sul-coreano crescerá a uma taxa média de 4,8% ao ano até 2032, indo além da taxa projetada para a economia nacional, de 1,8%.
As iniciativas para que isso se torne realidade já são evidentes. Em abril de 2022, o governo brasileiro aprovou o uso do K-ETA (Autorização Eletrônica de Viagem), que permite viagens de turismo de até 90 dias sem visto com destino à Coreia do Sul.
Além disso, na segunda metade de 2024, o governo sul-coreano lançará o K-Culture, um visto de até dois anos para quem se matricular em academias de arte cênicas para um estudo aprofundado da cultura do país, o que inclui K-Pop e outras produções.
A recepção e a percepção dos estrangeiros
Para os nativos coreanos, a relação com essa nova quantidade de imigrantes pode ser conflituosa. Segundo a professora Ara Cho, “tem muita gente da geração dos mais velhos que são preconceitos e xenofóbicos e, como essa onda está atraindo muitos estrangeiros para a Coreia, tem gente que não gosta”. Ainda assim, Ara Cho acredita que a maioria dos coreanos aceita o crescimento do país: “essa ideia ajuda tanto na economia quanto na visibilidade da Coreia”.
“Os doramas mexem muito com a irrealidade”Dani Silva
Outro desafio que os estrangeiros podem enfrentar ao visitar esse país é a quebra de expectativa, pois as representações idealizadas criam no público uma visão irreal sobre o país sul coreano. “Eu não sei de onde sai essa expectativa, porque, quando a gente assiste uma novela do nosso país, a gente sabe que não é um caso real, nós realmente assistimos pela diversão e entretenimento”, diz Ara.
A professora de idiomas explica que as novelas coreanas são fantasiosas. “A imagem que a Coreia traz [em suas produções culturais] é daquele homem muito bonito, carinhoso e atencioso. Na Coreia, todo mundo sendo muito receptivo e legal, você conversa com alguém no meio da rua e se apaixona. Tem muitas situações assim em novela, mas a realidade é totalmente diferente.”
Longe das representações romantizadas dos doramas, Ara expõe a realidade dos coreanos, conhecidos por seu “vício em trabalho” e por serem mais racionais do que emocionais. Para ela, quem tem o objetivo de visitar esse país deve ter cuidado com as expectativas que serão frustradas, se forem pautadas exclusivamente nas produções culturais.
Apesar de possíveis extremismos, tanto Dani quanto Ara reafirmam que nem todos os fãs têm essa visão, de acordo com uma análise em relação aos seus próprios públicos. “Muitos ainda têm a consciência de que a Coreia é um país que tem imperfeições como qualquer outro”, diz Dani.
E o preconceito no Brasil continua forte?
Apesar do maior contato com as culturas asiáticas, estrangeiros como japoneses, chineses e coreanos ainda são alvos de discriminação. Para Ara, antes da Hallyu, as referências para o preconceito eram japonesas, em virtude das animações infantis e programas de televisão que eram muito consumidas. Hoje, as principais referências são coreanas.
“Ainda tem o mesmo nível de preconceito, mas, ao mesmo tempo, aumentou o número de pessoas que se interessam por essa parte da Coreia, que é o K-Pop e as novelas da TV coreana”, declara a tradutora. “É algo desconfortável de qualquer forma, seja olhando [para os asiáticos] como se fosse um animal no zoológico, seja olhando como se estivesse comparando com uma celebridade da TV.”
Repetidamente, alguns criadores de conteúdo se aproveitam desse choque cultural para monetizar por meio dos preconceitos que muitos possuem, como ao comer uma comida oriental diferente e criticar os hábitos alimentares asiáticos como um todo. A visão sensacionalista e discriminatória usada por diferentes portais, além de reforçar os estereótipos negativos, também aumenta a aversão contra essas culturas.
“Nós, criadores de conteúdo, temos que ter consciência de que são culturas diferentes e hábitos diferentes. Se eles acham a gente estranho, a gente vai achar eles estranhos também, porque são culturas diferentes. Mas o que tem que ter é respeito um pela cultura do outro”, opina Dani.
A influenciadora reforça ainda que, “como criador de conteúdo, temos que ter muita consciência do que estamos falando e do que estamos fazendo. Porque a gente vai influenciar outras pessoas a ter esses pensamentos, sejam positivos ou negativos”.
A onda que não acaba
O crescente e inédito consumo da Coreia do Sul no Brasil divide opiniões em relação a sua estabilidade futura. Para Ara, a onda de popularidade em torno das novelas, além de grupos coreanos, irá saturar e diminuir com o tempo.
Por outro lado, ela avalia que a influência que as economias que esses países possuem um sobre o outro está longe de chegar ao fim. “Existem muitas marcas coreanas que são vendidas no mundo inteiro e no Brasil”, afirma. Ela cita as empresas sul-coreanas Hyundai, Samsung e LG, importantes na economia brasileira .”Tem várias outras marcas que a gente não comenta tanto, mas que estão presentes aqui no Brasil”, reforça a professora.
Já Dani acredita que essa onda não vai decair. “Vai chegar uma época que as produções, não só coreanas, mas as produções asiáticas no geral, vão dominar. As produções estadunidenses vão decair no quesito produção e público e as asiáticas vão, cada vez mais, receber reconhecimento da forma que eles merecem”, prevê a influenciadora. Dani menciona Parasita (Gisaengchung, 2019), primeiro filme asiático a receber um Oscar, e Round 6 (2021 -), uma das séries mais assistidas na história da Netflix, como exemplos da ascensão.
As plataformas de streaming também investem no sucesso dos produtos audiovisuais sul coreanos e segundo Dani isso tende a aumentar ainda mais. “A Netflix está com uma lista enorme de produções sul-coreanas para lançar neste ano e outras plataformas também, como é o caso da Prime Video, que colocou muitos doramas no seu catálogo e da HBO Max, que produziu um dorama brasileiro”, afirma.
Além das produções culturais mais exaltadas pelos fãs dessa cultura, Ara Cho aconselha que os interessados pela cultura coreana conheçam outros aspectos do país. “Seja qual for o meio que a pessoa conheceu a Coreia, seja por novela, seja por k-pop, mas quem realmente se interessou pela Coreia e tem vontade de morar lá, acho que vale a pena pensar nas outras áreas, abrir um pouco mais a mente e o olhar.”
Autora: Aline Noronha.
Fonte: Jornalismo Júnior/USP.