O agitado passado da maior floresta equatorial do mundo é o objeto de pesquisa de grande projeto internacional, que busca entender os eventos que moldaram o bioma amazônico.
A floresta amazônica impressiona por seu tamanho e encanta pela sua biodiversidade. Porém, para além da apreciação, dúvidas podem surgir: como o boto-cor-de-rosa, as arraias, os peixes-boi, seres de enorme semelhança com os animais marinhos, estão a quilômetros do mar e vivendo em água doce? Como a floresta, os rios e a fauna diversa da Amazônia surgiram? Tais questões que provocam a ciência estão tentando ser respondidas em um novo grande projeto. Através de perfurações do solo, um grupo internacional de cientistas está reconstruindo a história do bioma e buscando entender os últimos milhões de anos em uma das mais importantes florestas do mundo.
Um mar de perguntas
Na década de 1970, a Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM) adentrou a floresta amazônica com o objetivo de executar programas de levantamento geológico para “dotar o país de um acervo de dados capazes de permitir o desenvolvimento da indústria mineral”. Em uma de suas perfurações, a equipe da empresa encontrou algo surpreendente: fósseis de crustáceos bivalves, foraminíferos e outros organismos marinhos presentes nas profundezas do solo amazônico.
A presença desses fósseis no interior do que hoje é uma densa mata se justifica pelo adentramento do mar do Caribe sobre o bioma entre 23 e 5 milhões de anos atrás, no período geológico conhecido como Mioceno. Esse fenômeno pôde ser constatado através de pesquisas de campo, em que os fósseis desses pequenos seres foram observados microscopicamente.
Os resultados não mostraram semelhanças dos fósseis amazônicos com aqueles do Oceano Atlântico, mas sim com os encontrados no mar caribenho. A descoberta levou à busca pela geodinâmica de como os dois sistemas – a floresta e o mar – interagiram.
Antes da invasão marinha, os rios da região eram configurados em duas grandes bacias: uma maior a oeste, que coletava sedimentos vindos dos Andes e escoava para o norte em direção ao rio Orinoco – na atual Venezuela – e outra menor a leste, que desaguava na margem equatorial do continente, direto para o Oceano Atlântico.
A separação era feita pela formação geológica conhecida como Arco Purus e as duas bacias consistiam em ambientes diferentes. Porém, essa configuração foi perturbada pelo soerguimento (levantamento) dos Andes, um processo de orogenia que gerou grandes mudanças no assoalho geológico sul-americano.
A grandiosidade desse evento e a busca por demonstrar seus efeitos foi o estopim para o desenvolvimento de um modelo numérico, que descreve a dinâmica geofísica do processo de levantamento da cordilheira andina, pelo pesquisador do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP, Victor Sacek. “A cordilheira foi subindo por interação entre placas litosféricas, a placa da América do Sul com a placa do Pacífico. Há uma contração da borda oeste da América do Sul, isso faz com que a crosta fique espessa e, ao ficar espessa, soerga e forme a cordilheira”, explica o geofísico.
O levantamento dos Andes provocou a descida da placa sul-americana por meio da perturbação de fluxos de convecção no manto terrestre, como se ela tivesse sido puxada para baixo. “Por exemplo, uma placa de isopor flutuando na piscina. Se você apertasse essa placa de isopor, você veria que a água da piscina poderia passar por cima dela. Algo semelhante teria acontecido, só que ela teria sido puxada por baixo “, exemplifica Sacek. O resultado disso foi que a porção oeste da Amazônia desceu seu nível em algumas centenas de metros e permitiu a entrada de água marinha vinda do norte.
Grandes lagos e animais gigantes
A invasão do mar sobre a floresta criou um ambiente totalmente novo, um caldeirão de mudanças biológicas conhecido como sistema Pebas. Este ficava na porção oeste da Amazônia e consistia em uma região de grandes lagos de água salobra, nos quais as espécies do mar começaram a interagir com as dos rios.
Os lagos, com o passar do tempo, tornaram-se lar de um grupo de espécies gigantes conhecido como megafauna. “Há evidências de crocodilos, tartarugas e cobras muito maiores que os organismos atuais. Um dos fósseis mais famosos é o do Purussaurus, um crocodilo. Ele foi encontrado em rochas do Mioceno perto do rio Purus. Há cálculos que o dinossauro poderia ter até 12 e 13 metros de comprimento, isso é muito grande, cerca de três vezes maior que o crocodilo moderno”, expõe o professor André Sawakuchi do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo.
No decorrer do tempo geológico, o intemperismo atuou no sistema e o preencheu por sedimentos, principalmente dos Andes, o que fez com que esses grandes lagos desaparecessem e dessem origem a um ambiente essencialmente fluvial.
Contudo, os efeitos da presença do Pebas na história geocronológica da Amazônia ainda são visíveis na fauna do bioma, em especial na semelhança do boto-cor-de-rosa (Inia geoffrensis) com os golfinhos, as arraias de água doce (Potamotrygonidae) e suas parentes marinhas, e os peixes-boi fluviais (Trichechus inunguis) com os seus correspondentes de água salgada. Essas similaridades indicariam a presença de ancestrais comuns a todas essas espécies e a várias outras, que se diferenciaram por causa de suas inserções em um novo ambiente.
O nascimento do rio e da diversa fauna
O fim dos grandes lagos pelo assoreamento e a degradação do Arco Purus por meio das intempéries seriam os eventos iniciais para a formação da bacia amazônica moderna. “O desaparecimento do sistema Pebas pode ser o início do Rio Amazonas da forma como ele é hoje” declara Sawakuchi.
A formação do sistema fluvial se deu de forma expansiva e conectou as porções leste e oeste. “A bacia hidrográfica do rio Amazonas dentro da margem Equatorial era bem menor, mas, com o tempo, ela foi capturando algumas bacias de drenagem e incorporando porções que permitiram a conexão dos Andes até a margem Equatorial” declara o professor Sacek. Essas capturas e as grandes mudanças no mosaico da floresta tiveram impactos na biodiversidade da região.
A separação de populações de uma mesma espécie pelas barreiras naturais dos rios levou ao fenômeno biológico conhecido como vicariância, a diferenciação de um grupo inicial em novas espécies por causa da seleção natural realizada pelos ambientes inéditos em que foram obrigadas a se adaptar. Esse processo foi um dos responsáveis pela enorme variedade de espécies presentes no bioma e pela densa presença de diversas configurações que a floresta assume em toda a sua extensão.
Além disso, o rio influencia os seres de um diferente sistema observado por Sawakuchi: “O rio não é só a calha, ele é também a várzea. A várzea dos rios da Amazônia têm um tipo específico de floresta que alaga todo ano. Então, há espécies que são específicas da floresta da várzea e há espécies específicas das de terra firme”.
As florestas alagadas de várzea podem se expandir ou encolher dependendo de vários fatores. Um deles é a chuva, que, ao aumentar em determinados períodos da história paleoclimática, fazia com que as matas da beira do rio se fragmentassem e o contato entre espécies rio acima e abaixo ficasse impedido, intensificando a diferenciação delas. Essas novas espécies voltavam a interagir quando a precipitação diminuía e as florestas desalagavam, o que gerava um potencial para mais diversificação da biodiversidade.
Um projeto no Coração do Brasil
Com o objetivo de fazer perfurações desde os Andes até o Atlântico para reconstruir a geocronologia amazônica, a grande pesquisa internacional nomeada Tranz-Amazon Drilling Project (TADP) está em curso no norte do Brasil. “A gente terminou a primeira perfuração do Acre. Conseguimos perfurar até 923 metros de profundidade e com isso se recuperou 870 metros de testemunhos, que são cilindros de rochas dispostos em camadas”, divulga o professor Sawakuchi. O material coletado começará a ser pesquisado pela equipe multidisciplinar do projeto em agosto e, com o passar do tempo, descobertas poderão vir à tona.
O projeto tem a participação de instituições de 12 países e é coordenado por André Oliveira Sawakuchi (Universidade de São Paulo), Cleverson Silva (Universidade Federal Fluminense), Paul Baker (Duke University), Sherilyn Fritz (University of Nebraska) e Anders Noren (University of Minnesota). A grandiosidade da pesquisa permitiu à parcela brasileira do grupo propor a participação do Brasil na ICDP (International Continental Scientific Drilling Program), um programa multinacional que promove o estudo das geociências através de perfurações.
O próximo passo está na ilha do Marajó, perto da foz do Rio Amazonas, onde o maquinário das pesquisas logo será montado. A segunda perfuração terá de 1.200 a 1.300 metros de profundidade e deve trazer novas pistas sobre a relação entre os sedimentos andinos, a bacia amazônica e a diversa fauna que surgiu da interação entre elas.
Autor: Samuel Amaral.
Fonte: Jornalismo Júnior/USP.