Cômite de Gênero do Itamaraty pode aumentar presença de mulheres na diplomacia brasileira

O histórico misógino do Itamaraty traduz a baixa presença de mulheres na diplomacia, mas ações afirmativas procuram reverter o cenário.

Segundo o boletim estatístico do Departamento do Serviços Exterior (DSE), realizado em 2022, os homens representavam 77% dos diplomatas do Itamaraty, enquanto as mulheres ocupavam os 23% restantes. Apesar da presença de mulheres na graduação de Relações Internacionais ser maioria, a sua representação internacional é baixa. As mulheres configuram-se como minoria social, uma vez que a sua presença diplomática não é proporcional ao seu quantitativo dentro da população.

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MPC (Ministro de Primeira Classe), MSC (Ministro de Segunda Classe) e C (Chefe de Missão Diplomática Permanente).Foto: DSE/Reprodução

O cenário quando observado em mulheres com cargos de chefia no exterior se mostra menor do que o boletim do DSE. Segundo o Ministério das Relações Exteriores, a presença feminina cai em 7%, deixando 84% dos homens com as vagas.

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Tabela de proporção de embaixadores por gênero em postos diplomáticos.;Foto: MRE/Reprodução

A Primeira Baronesa mulheres

Maria José de Castro Rebello Mendes foi a primeira mulher a ingressar no serviço diplomático brasileiro. Natural de Salvador (BA), a filha do advogado Raymundo Mendes Martins e da professora Josephina de Castro Rebello Mendes, era fluente em quatro línguas: alemão, inglês, francês e italiano. Em meados de 1918, Maria José de Castro por sugestão de um primo, mudou-se para o Rio de Janeiro para participar de um concurso diplomático. A inscrição à época foi a única de uma mulher.

O Ministério das Relações Exteriores, porém, não aceitou seu pedido de inscrição, o que causou grande polêmica. O jurista Ruy Barbosa teve que intervir a pedido da família da baiana, este emitiu parecer alegando a inconstitucionalidade da medida do Itamaraty, uma vez que não havia na legislação algo que impedisse sua inscrição.

O ex-presidente Nilo Peçanha, então ministro das Relações Exteriores à época, acabou por conceder a inscrição e declarou.

“Não sei se as mulheres desempenhariam com proveito a diplomacia, vide tantos atributos de discrição e competência são exigidos, bem que não são privilégio do homem – e si a requerente está aparelhada para disputar um logar nessa Secretaria de Estado. O que não posso é restringir ou negar o seu direito. Melhor seria, certamente, para o seu prestígio que continuassem a direção do lar, taes são os desenganos da vida pública, mas não há como recusar sua aspiração, desde que fiquem provadas suas aptidões.”

No concurso público, Maria teve um ótimo desempenho. Em 27 de setembro de 1918, foi aprovada em primeiro lugar. O ingresso de uma mulher em um alto cargo do governo rendeu grande polêmica nos jornais da época. 

Ações Afirmativas

A Associação das Mulheres Diplomatas do Brasil (AMDB) foi fundada oficialmente em janeiro de 2023, mas, antes disso, o grupo teve 10 anos de atuação informal. Antes de sua legitimação, a AMDB já se mostrava presente no cenário diplomático. A Associação mantinha contato com lideranças do Itamaraty, financiava produções audiovisuais e gerenciava em conjunto com o Congresso Nacional ações afirmativas voltadas à diplomacia.

A oficialização da AMDB é apenas um pedaço da luta diária das mulheres diplomatas. A batalha por espaço e representação dentro do Ministério das Relações Exteriores está longe de acabar. Nos últimos anos, as representantes da associação procuram abordar tópicos como a maternidade, sexualidade e questões raciais, na intenção de acolher mulheres que se sentem desconfortáveis no ambiente diplomático.

“Sororidade” é a palavra que a diplomata Christiane Aquino prefere usar. Membra da AMDB explica a mudança no ambiente diplomático: “As embaixadoras mais antigas comentam que o ambiente está mais acolhedor”. O ambiente poderia ser ainda melhor se os homens entendessem a importância do que é feito pela associação, cenário, que hoje, é útopico .

No ano passado, a AMDB inaugurou uma placa em homenagem a Maria José de Castro, ação que foi rechaçada pelos colegas. “Os homens riram e fizeram chacota com a homenagem”, relembra Aquino. “É um ambiente hostil, onde é necessário falar duas, três vezes para que eles nos ouçam”, lamenta.

Após a estruturação da AMDB, o prédio do Itamaraty passou por mudanças e reformas. Salas de amamentação e creches no Ministério da Saúde foram concretizadas, mas as modificações não ficaram apenas no espaço físico. A dupla jornada, tema debatido com mais seriedade nos últimos anos, se tornou realidade em alguns setores, além do trabalho remoto, medida que foi tomada com o intuito de ajudar as mulheres no período de gravidez. Entretanto, o cenário está longe do primor, principalmente para diplomatas que sonham com a maternidade.

Segundo a pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), dentre 247 mil mães que estavam no mercado de trabalho, 50% alegam que foram demitidas dois anos após a licença maternidade. O que se vê é um mercado que desqualifica a mulher após ser mãe ou, no mínimo, começa a quetioná-la profissionalmente, em alguns casos mais extremos, questioná-la com: “Nossa! Achei que você era uma mãe exemplar. Como assim você vai ficar um ano longe dos seus filhos?”, desabafa Aquino.

“A maioria das pessoas que estão se graduando em Relações Exteriores são mulheres. Mas ao mesmo tempo o mercado é majoritariamente preenchido por homens, e isso se deve pela ‘concepção’ de que a família é responsabilidade da mulher. No Itamaraty isso existe e mulheres não são promovidas por conta da licença maternidade ou porque precisam cuidar do(os) filho(os)”, afirma a internacionalista Miwa Kashiwagi.

Troca de Governo

A mudança de governo registrou um aumento acanhado de 1% em relação a ocupação feminina em cargos de chefia no Itamaraty. No governo de Jair Bolsonaro (PL), as mulheres ocupavam 14,2% das chefias no exterior. Já no governo de Lula (PT), o número registrado aumentou, chegando ao percentual de 15,2%. O atual governo entende o cenário e desde o ano passado procura inserir grupos minoritários, com a criação de comitês voltados a diversidade.

“São 4 comitês: gênero, pessoas com deficiência, raça e LGBTQIA+. É uma novidade importante. Estamos no caminho certo, só que falta prioridade. Os números têm melhorado, mas de maneira muito tímida”, explica a diplomata Aquino.

Segundo a AMDB, falta compromisso por parte do Itamaraty em relação a políticas de gênero.

Carreira Diplomática

O concurso realizado pelo Instituto Rio Branco é a única maneira, atualmente, de se tornar diplomata no Brasil. A prova é dividida em três fases:

1ª fase: se consiste em duas provas de três horas cada, uma de manhã e outra a tarde, composta por 73 questões. As perguntas englobam português, inglês, história, política, geografia, direito e economia.

2ª fase: se consiste em duas provas, uma de português e outra de inglês (feitas em dias separados). Os candidatos possuem cinco horas de cada dia para realizarem exercícios de tradução, interpretação e produção de redações e resumos.

3ª fase: se consiste em três dias de prova, com duas provas por dia, sendo quatro horas de manhã e mais quatro horas de tarde.

Essa é a meritocracia do Itamaraty, alguns conseguem, outros ficam pelo caminho, mas o que de fato funciona no sistema? O concurso que é a porta do sonho diplomático é envolto de um conjunto, historicamente, misógino.

“A meritocracia é um peso para as mulheres, precisa ter dez vezes mais mérito e competência do que um homem. E com todo esse esforço, talvez, chegar no mesmo cargo que alguns menos comprometidos estão”, desabafa a diplomata Gisela Padovan.

O registro de Padovan foi feito pela AMDB, durante a gravação de um documentário que conta sobre a desigualdade de gêneros no ambiente diplomático.

“A meritocracia do Itamaraty existe até certo ponto. Em cargos como assessor, chefe de divisão, departamento e embaixada não há um mecanismo transparente, onde a candidata(o) é selecionada por conta de sua competência”, afirma a diplomata Aquino.

Hoje, o diálogo entre AMDB e Itamaraty está em equilíbrio, a associação procura deixar o sistema mais transparente e confiável para que as mulheres ganhem mais espaço. A carreira diplomática, infelizmente, reside no cenário de luta e resistência. O desafio de mexer no vespeiro do Itamaraty é antigo e Maria José de Castro foi a primeira a se atentar.

Autora: Júlia Tortoriello.

Fonte: Cásper Líbero.