O Presidente se elegeu pela terceira vez prometendo manter a soberania alimentar por meio da redistribuição de terras, mas enfrenta antiga resistência do setor agropecuário.
Na manhã do dia 16 de agosto de 2023, o presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva assinou, durante solenidade de encerramento da 7ª Marcha das Margaridas, decretos que marcam a retomada do Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA) no país. Sendo essa uma de suas promessas de campanha que conversa diretamente com as bases de seu eleitorado, o novo governo tenta se equilibrar entre pressão do setor do agronegócio e defende uma reforma “pacífica e tranquila”.
É antiga a discussão acerca da realização de uma reforma agrária no Brasil. Na contramão de outras grandes economias no mundo, o país nunca realizou um processo de redistribuição de terras ao longo de sua história, apesar da existência da Lei da Reforma Agrária e o direito à terra ser garantido na Constituição brasileira. É antiga também a relação do Governo Lula e dos Movimentos Sem Terra, que constituem base importante de seu eleitorado, e que o apoiaram em sua última reeleição.
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST, pressiona o governo por um plano de ação para os próximos quatro anos. A entidade afirma que, apesar do apoio ao governo, não abrirá mão de suas bandeiras históricas. Recentemente, o coordenador nacional do MST, João Pedro Stédile (69), chamou de “lenta” a ação do Governo em prol das questões do movimento.
Histórico de luta
Em um país que nunca realizou propriamente uma reforma agrária, observa-se a postura combativa assumida tanto pelos movimentos responsáveis pela luta por terras, quanto pelos setores da elite que concentram terra no país. Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), no ano de 2022 o Brasil registrou uma média de um conflito no campo a cada quatro horas. Conflitos esses que, para além da luta direta por terra, incluem disputas pelo acesso à água, trabalhadores resgatados em condições análogas à escravidão, assassinatos, entre outros casos de violência.
Em diversas ocasiões no passado, tentativas de reforma agrária foram colocadas em pauta e sucessivamente sufocadas pelas elites dominantes.
“O Brasil perdeu muitas oportunidades de fazer a reforma agrária. A primeira foi depois da abolição da escravidão, em 1888, quando milhares de trabalhadores libertos poderiam trabalhar na terra, construir uma casa, produzir e viver com dignidade, mas foram abandonados”, discorre João Pedro Stédile em entrevista.
O abandono ao qual ele se refere diz respeito à ausência de medidas de incorporação dos ex-escravos à sociedade da época, o que resultaria em todo um setor da população se estabelecendo às margens dos centros urbanos e dando início a um processo de favelização das cidades.
O líder do MST continua: “Depois, na década de 1930, com o processo de industrialização, poderia ter sido feita a reforma agrária clássica para produzir alimentos para os trabalhadores e matéria-prima para a indústria que se estruturava. Nos anos 60, o governo João Goulart lançou um plano de reforma agrária para destinar aos trabalhadores rurais terras nas beiras das estradas, mas o processo foi interrompido pelo golpe de 1964. Por fim, nos anos 80, com o ascenso do movimento de massas, a retomada das ocupações de terra reabriram o debate sobre a reforma agrária.” Debate esse que seguiria avançando e recuando à medida em que se reestabelecia a democracia no país.
Relação com os Governos Lula
Considerando o histórico de apoio do presidente Lula ao movimento, reforçado em diversos momentos de sua carreira política, a expectativa em torno de movimentações para uma reforma sempre existiu nos seus governos anteriores. Apesar desta nunca ter ocorrido em escala universal, foi durante o governo de Lula que se destinou a maior área de terras para reforma agrária. Segundo dados do próprio MST, até setembro de 2022, 48,3 milhões de hectares de áreas improdutivas haviam passado a ser assentamentos no Brasil. Somando os governos Lula e Dilma, 747.777 famílias foram assentadas no país.
“Lula é historicamente amigo do nosso movimento e apoiador da reforma agrária”, afirma Stédile. “No entanto, conduziu governos de composição de forças, com a representação da esquerda, da direita e do centro e a participação da classe trabalhadora e de setores da burguesia, como o agronegócio. Assim, mantivemos as nossas lutas, marchas, protestos e ocupações de terra para cobrar do governo medidas para a reforma agrária e a produção de alimentos nos assentamentos.”
Recentemente, o ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, Paulo Teixeira, reafirmou a intenção do Governo de dar continuidade à reforma agrária. Segundo o ministro, o Governo pretende retomar a demarcação de terras para assentamentos da reforma e em áreas indígenas e quilombolas. “Queremos a paz no campo, já temos terras no estoque do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA)” declarou Paulo Teixeira.
Papel do Agro e resistência das elites
Segundo João Pedro Stédile, “a realização de uma reforma agrária popular para reestruturar a propriedade fundiária e consolidar um novo modelo agrícola – baseado na produção em pequenas e médias propriedades de alimentos por meio de cooperativas e agroindústrias – é uma tarefa do conjunto da sociedade e envolverá todas as instituições.” No entanto, a resistência de importantes setores da sociedade e da economia brasileira vem se mostrando um impedimento relevante.
O agronegócio se consolidou no Brasil a partir da década de 1970, com a modernização do campo que incorpora máquinas, sementes modificadas e técnicas avançadas de cultivo e criação de animais. Com a virada do século, o setor se estabelece também como importante força política, capaz de influenciar importantes decisões no país, a exemplo do impeachment da presidente Dilma, em 2016.
A bancada ruralista, como é chamado o grupo de políticos em defesa do setor nas casas legislativas, alinhou-se historicamente à direita brasileira, reafirmando um discurso conservador nos costumes e, principalmente, em defesa do livre-comércio que permite sua produção em larga escala para exportação.
Em contraponto a um modelo voltado para o mercado externo, entre as principais pautas de uma reforma agrária está a defesa do médio e do pequeno produtor e o incentivo à agricultura familiar, que propõe uma produção sustentável voltada ao mercado interno. Apesar do alinhamento dessas pautas ao viés ideológico do governo, a força da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) exige do Executivo um malabarismo de políticas que o permita governar. Por outro lado, recentes movimentações mostram um abalo do setor em relação à opinião pública.
A instalação da CPI do MST em maio de 2023, com o intuito de investigar o papel da organização em ocupações de terras e as fontes de financiamento do movimento, chegou ao fim com a derrota do setor ruralista.
A Comissão Parlamentar foi a quinta organizada para investigar o MST, e foi marcada por baixa adesão popular e por uma perda de força do bolsonarismo, amplamente apoiado pelo setor. Em abril, ainda na tentativa de consolidar a comissão, a Frente Agropecuária foi apontada como financiadora de postagens contra o Movimento Sem-Terra, que relacionavam ocupações de terra com a fome e com o aumento do desemprego.
AG
Perspectiva para o futuro
“Para o Governo Lula 3, nossa expectativa é que o governo implemente medidas emergenciais para assentar as 80 mil famílias acampadas e políticas públicas para a produção de alimentos, agroindustrialização e preservação da natureza”, afirma Stédile. Os assentamentos consistem na etapa formal de estabelecimento das famílias em áreas improdutivas, direito previsto na Constituição e promovido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).
Em 26 de junho de 2023, o Conselho Nacional de Justiça publicou a resolução nº 510/2023, que tem como objetivo estabelecer protocolos para resolução de conflitos no campo. Segundo o Secretário de Direitos Humanos da Associação e Magistrados do Brasil, Roberto Alcântara (44), essa resolução pode ser vista como um “avanço na consideração das demandas e na proteção dos direitos territoriais dessas populações”. Ele ressalta ainda que o agronegócio, historicamente envolvido em disputas territoriais, pode sentir um impacto significativo com a resolução, considerando uma possível revisão das abordagens tradicionais adotadas em casos de conflitos fundiários.
Quanto à influência no Executivo, o Secretário considera que a resolução pode catalisar discussões e pressões por mudanças políticas e legislativas. “O impacto dependerá da receptividade da medida e de como será implementada, podendo, eventualmente, influenciar políticas governamentais relacionadas à distribuição de terras e resolução de conflitos no país”, destaca.
Também nesse ano, o INCRA criou normas para definir os procedimentos para que famílias residindo em projetos de assentamento de outros órgãos governamentais e em unidades de conservação de uso sustentável sejam incluídas no Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA). O processo inclui análise sobre os perfis das famílias de acordo com o previsto na Lei de Reforma Agrária.
Por meio de decreto, o Presidente Lula retomou a Câmera Técnica de Destinação e Regularização Fundiária de Terras Públicas Federais Rurais no último dia 5 de setembro. A ação pretende acelerar e aprimorar a utilização de terras públicas federais para a reforma agrária, expandindo áreas destinadas à criação de unidades de conservação, demarcando terras indígenas e regularizando propriedades de agricultores familiares.
“Começamos por dar o destino correto à terra, pois ela sustenta a vida, o homem e a floresta”, afirma o Presidente em discurso.
Autora: Isadora Mangueira.
Fonte: Cásper Líbero.