Cerca de quatro mil vestígios arqueológicos de tetrápodes encontrados em dez sambaquis foram analisados e classificados em 46 táxons.
Artigo científico publicado em 13 de maio deste ano, na revista “Anais da Academia Brasileira de Ciências”, analisou e identificou a diversidade de espécies de mamíferos, aves, répteis e anfíbios encontradas em sambaquis da região sul do país. Baleias, pinguins e cetáceos foram alguns dos animais identificados pela pesquisa.
Intitulado “Tetrapod biodiversity in sambaquis from southern Brazil”, o estudo classificou os vestígios animais examinados e possibilitou entender a distribuição geográfica da fauna ao longo do tempo, além de revelar hábitos culturais dos povos originários locais. O pesquisador responsável foi Augusto Barros Mendes, orientado pela paleontóloga Taissa Rodrigues Marques da Silva, ambos do Departamento de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
Especialista em Zooarqueologia — o estudo de vestígios de animais em sítios arqueológicos —, Augusto investigou peças de dez sambaquis nos litorais do Paraná, de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul. “Todos já haviam sido previamente escavados e o material estava guardado em reservas técnicas de museus”, explica, em entrevista à Jornalismo Júnior.
Após uma triagem inicial, as amostras foram separadas e identificadas por ele através de comparações com coleções osteológicas. Contando com a ajuda de outros pesquisadores quando possível e com base em artigos, livros e bancos de dados na internet, ele classificou cerca de 4 mil vestígios em 46 táxons, unidades de agrupamento biológico.
Os sambaquis
“Sambaquis são sítios arqueológicos muito comuns nas costas Sul e Sudeste do Brasil”, introduz o pesquisador. Datados de oito mil a mil anos atrás, são montes de matéria orgânica acumulada construídos por povos pré-colombianos que habitavam o litoral do país. De origem Tupi, o nome dessas estruturas vem da junção das palavras tamba (concha) e ki (monte), sendo formadas por conchas marinhas, carvão, sedimentos, rochas e restos de plantas e animais.
Augusto explica que os povos sambaquieiros eram pescadores-caçadores-coletores, por isso viviam da exploração de recursos marinhos e da Mata Atlântica. Com praias, dunas, lagoas, pastagens, pântanos, mangues e serras, a faixa costeira da região Sul foi propícia para o assentamento dessas populações.
Esse fator justificou a escolha do enfoque da pesquisa. “A região Sul tem muitos sambaquis, então houve mais escavações e material disponível para ser estudado”, complementa o autor. O material analisado foi retirado de dez sítios arqueológicos, localizados em Paranaguá, Pontal do Paraná, Joinville, Laguna, Tubarão, Torres e Arroio do Sal.
Por que os tetrápodes?
O objetivo do estudo foi investigar se os povos sambaquieiros caçavam animais vertebrados de quatro patas durante o Holoceno — período geológico iniciado há cerca de 12 mil anos. Esse grupo contempla mamíferos, aves, répteis e anfíbios.
“Este é o primeiro estudo focado exclusivamente em tetrápodes”, ressalta Augusto Mendes. A exploração de peixes e moluscos pelos povos tradicionais locais já era bem documentada pela ciência, devido à abundância de vestígios encontrados desses animais. “Optamos por analisar um grupo menos estudado. Em muitos sambaquis, esse material não era identificado, então era uma lacuna a ser explorada”, justifica o pesquisador.
Levantamento de dados
Com a análise de 3.682 vestígios de animais tetrápodes de até 4,2 mil anos atrás, dos dez sambaquis ao longo da costa sul brasileira, a pesquisa aferiu que 90% pertenciam a espécies de mamíferos. As aves correspondem a 6% das amostras, seguidas pelos répteis, com 1%.
Apenas um representante dos anfíbios foi identificado, segundo o artigo, provavelmente pela fragilidade dos seus ossos. “Todo o material estudado não tinha sido identificado ainda. É uma identificação inédita para esses sambaquis”, conta o pesquisador da Ufes.
Foram reconhecidos 46 táxons, que são níveis de classificação de seres vivos. Dentre eles, 44 chegaram a ser definidos em agrupamentos mais inclusivos que classes, dez gêneros foram determinados e 17 espécies detectadas. “Nem sempre dá para chegar ao nível de espécie, porque os ossos dos sambaquis não são muito bem preservados, a maioria é fragmentado”, menciona Augusto Mendes.
Ele explica que a classificação do material analisado é realizada a partir da identificação de características diagnósticas. “Por exemplo, as bulas timpânicas das baleias são altamente diagnósticas. Foi assim que identificamos as baleias-francas-austrais”.
Baleias, pinguins e outros animais
Dos tetrápodes classificados, a fauna marinha foi a mais abundante. O artigo destaca principalmente a presença de vestígios de cetáceos e baleias nos sambaquis. Cinco indivíduos encontrados eram pequenos cetáceos, golfinhos oceânicos como o golfinho-nariz-de-garrafa (Tursiops truncatus). A baleia-franca-austral (Eubalaena australis) foi a única espécie de baleia identificada.
Esses vestígios pertenciam a animais jovens que, segundo o autor, eram mais fáceis de capturar. Todavia, eles também podem ter sido coletados a partir da caça não intencional — enroscados em redes junto com outros animais — ou quando encalhavam nas praias.
Outros mamíferos marinhos encontrados em grandes quantidades foram os chamados Otariídeos, como o lobo-marinho-sul-americano (Arctocephalus australis) e o leão-marinho-da-patagônia (Otaria flavescens). Dos 30 indivíduos identificados, 15 eram juvenis — assim como os cetáceos e baleias —, ressaltando que a caça dos povos sambaquieiros podia ser tanto seletiva quanto oportunista.
A espécie com maior presença entre os vestígios analisados foi o pinguim-de-Magalhães (Spheniscus magellanicus). Originários de colônias na Patagônia, no sul da Argentina, os pinguins só aparecem na costa brasileira durante sua migração de inverno, entre os meses de março e setembro. O caso dessa ave marinha mostra que diferentes estratégias de captura eram adotadas de acordo com as épocas do ano e os recursos disponíveis sazonalmente no ambiente.
Os pescadores-caçadores-coletores também exploravam animais terrestres, encontrados na Mata Atlântica, embora em menor quantidade. A identificação de espécies como a queixada (Tayassu pecari) e o caititu (Dicotyles tajacu) demonstram a interação desses povos com pradarias e serras no interior do continente. Já vestígios do jacaré-de-papo-amarelo (Caiman latirostris) sugerem a ocupação de pântanos e mangues.
Preservação da biodiversidade
De acordo com Augusto Mendes, a relevância científica da pesquisa realizada está na disponibilização da classificação anatômica e taxonômica sistematizada dos tetrápodes encontrados nos sambaquis. “Ao reconhecer táxons em sambaquis que não tinham essa identificação de fauna, você amplia o conhecimento da distribuição geográfica no passado dessas espécies”, afirma o pesquisador da Ufes. Ele exemplifica: “Nosso estudo trouxe a identificação da baleia-franca-austral em sambaquis do Paraná e do Rio Grande do Sul. Antes ela era identificada apenas em Santa Catarina”.
Os dados levantados pelo estudo possibilitam a criação de inventários de referência, as chamadas baselines, das espécies de uma localidade ao longo do tempo. “Com dados do passado e do presente, eles se tornam ainda mais completos”, expõe Augusto. A importância desse mapeamento é possibilitar uma visão da distribuição geográfica das espécies a longo prazo.
O autor ressalta que ter essa perspectiva mais ampla da interação dos humanos com esses animais permite entender se uma espécie foi localmente extinta ou se sua área de distribuição foi restringida com o passar do tempo. “Os dados de biodiversidade do passado ajudam a traçar medidas de conservação e manejo de espécies atuais, sobretudo das espécies ameaçadas de extinção”, explica.
O veado-campeiro (Ozotoceros bezoarticus), por exemplo, é uma espécie identificada em sambaquis nas praias de Santa Catarina. Hoje, ela não habita mais essa área, estando localmente extinta pelo impacto da caça e de outras modificações antrópicas.
Valor sociocultural
“Os sambaquis são sítios arqueológicos artificiais, eles foram construídos por seres humanos. Por isso, os vestígios encontrados têm um viés cultural. Existiu uma seleção, uma intenção por trás dos materiais encontrados”, expõe Augusto Mendes. A diversidade de fauna tetrápode identificada no estudo reflete a variedade de tecnologias e técnicas de pesca, caça e coleta dos povos sambaquieiros e dos ambientes costeiros e interioranos explorados na época.
A maioria dos vestígios zooarqueológicos mencionados no artigo também indicam, de certa forma, como esses animais foram utilizados pelas populações indígenas litorâneas em suas práticas culturais. O pesquisador relata que as espécies eram geralmente usadas para o consumo, mas também na confecção de artefatos e adornos.
Augusto destaca que pesquisas em sambaquis contribuem para uma melhor compreensão da história do litoral do Brasil antes de 1500. “As pessoas nem sabem que existe. De um modo geral, nas escolas não se estuda os sambaquis. Mas saber sobre a biodiversidade do passado é muito importante para conhecer a cultura dos primeiros povos que habitaram o litoral. É um resgate da nossa cultura e identidade como brasileiros”, conclui.
Autora: Beatriz Hadler.
Fonte: Jornalismo Júnior/USP.