Kyudô: a serenidade do arco e flecha japonês

Nome da prática moderna da arquearia japonesa, mas presente há milênios na cultura do Japão, ela busca o equilíbrio entre o pessoal e o espiritual.

O arco e a flecha surgiram no Japão há cerca de 9000 a.C., junto com os primeiros habitantes do território, chamados de Jomon. Durante um longo período de tempo, foram utilizados somente para a caça e a captura de animais a uma distância segura. 

A ressignificação dos instrumentos ocorreu apenas entre os séculos IV e V d.C., devido a influência da cultura chinesa. Surgiu a ideia, fruto do pensamento do filósofo chinês Confúcio, de que seguir o caminho do arco era a forma de encontrar o seu verdadeiro eu. A nobreza japonesa se concentrou nos ritos cerimonialistas. Já os samurais seguiram o kyujutsu, as “técnicas de arquearia” para a guerra.

Ataque noturno ao Palácio Sanjo, retratado no “Heiji Monogatari Emaki”, emakimono (narrativa ilustrada) que retrata os eventos da rebelião Heiji, na segunda metade do século 13. [Imagem: Reprodução/Museu de Belas Artes de Boston via Wikimedia Commons]

Somente com a chegada dos portugueses no país asiático, ao longo do século 15, as armas de fogo substituíram o uso do arco e flecha nas guerras. Na tentativa de manter o kyujutsu como elemento essencial da sociedade, surgiram os torneios de tiro com arco à longa distância, chamados de toshiyaNesta modalidade, as flechas eram atiradas de forma rápida e constante. Na época, as competições chegavam a durar o dia inteiro.

Xilogravura de Utagawa Toyoharu (1735-1814) que retrata o torneio Sanjusangendo, em Quioto, no período Edo. O maior evento da categoria, ainda ocorre. [Imagem: Reprodução/Museu de Belas Artes de Boston via Wikimedia Commons]

Mas, com a manutenção da paz durante a Era Edo (1603-1868), as técnicas de guerra da arquearia caíram em desuso. O termo kyudô, “o caminho do arco”, surgiu no início deste período, por meio de Kozan Morikawa. Ele fundou o Estilo Yamato, que combinou a etiqueta do arqueiro estabelecida pelo samurai Ogasawara Nagakiyo — as regras percorriam desde o treinamento até a alimentação — e as técnicas de tiro do guerreiro Heki Danjo Masatsugu, centradas no lema hi, kan, chu (voar, perfurar, centro).

Apesar desta importante contribuição, o kyudô recebeu visibilidade somente no período Meiji (1868-1912). O instrutor da Universidade Imperial de Tóquio, Honda Toshizane, foi responsável por combinar as técnicas do kyujutsu com práticas cerimoniais de preparação e de tiro. Assim, surgiu o chamado Honda-ryu ou Estilo Honda. Com a criação da Federação Japonesa de Kyudô, em 1953, a prática foi padronizada e incorporada como disciplina obrigatória nos currículos escolares. 

Equipamentos 

yumi (arco) utilizado para praticar o kyudô possui mais de dois metros de comprimento. Esta característica é uma herança do yabusame, o tiro com arco montado em cavalo. As flechas são chamadas de yaAs tradicionais são feitas de bambu, mas para os praticantes novatos as preferidas são as de alumínio, emplumadas com penas de ambas as asas das aves. As flechas com penas curvadas para a esquerda são chamadas de haya (primeiras flechas) e as para a direita de otoya (segundas flechas).

Para proteger a mão responsável por alongar a corda, o arqueiro utiliza uma yugake (luva). O uniforme é composto por uma calça larga de cor escura (hakama) e uma camisa branca de manga curta (keikogi), mantida na posição correta pelo uso do obi, um cinto. Nos pés, são utilizadas meias, denominadas de tabi.

Kyudocas uniformizados durante um treino de kyudô. [Imagem: Reprodução/Instagram @kansai_uni_kyudo] 

Prática

As salas de treinamento das artes marciais japonesas são chamadas de dojo. No caso do kyudô, o espaço recebeu o nome de kinteki-dojo, ou curta distância, pois os alvos ficam a 28 metros de distância. Em competições, também são utilizados os enteki-dojo, voltados para arquearia de longa distância, pois os alvos ficam a uma distância de 60 metros. 

Os ensinamentos do kyudô podem ser aprendidos de três formas distintas. Primeiro, por meio da observação da técnica e do estilo de um arqueiro mais experiente, o mitori-geiko. Outra opção é a mentalização dos detalhes técnicos e do esforço espiritual empregados pelo instrutor, chamado de kufu-geiko. Já no kazu-geiko, o ensino ocorre por meio da repetição constante.

Na padronização feita pela Federação Japonesa de Kyudô, foi descrito o hassetsu, os oito passos para atirar. Nos primeiros treinos, o posicionamento dos pés (ashibumi) e a postura para atirar (dozukuri) são corrigidas. Depois, inicia-se o yugamae, a preparação correta do arco. A mão direita segura a corda do arco, e a esquerda, a empunhadura. Na sequência, a cabeça do arqueiro se vira para encarar o alvo.

Em seguida, o kyudoca se prepara para atirar a flecha. O arco deve ser erguido acima da cabeça (uchiokoshi) e abaixado lentamente, até atingir a altura das sobrancelhas (hikiwake). O arqueiro faz uma pequena pausa. Por fim, o arco deve ser posicionado abaixo das bochechas (kai) e a flecha pode ser disparada (hanare).

No último passo, denominado de zanshin, o arqueiro persiste na postura de lançamento. O termo pode ser entendido como “continuação do tiro” ou “o corpo e a mente restante”. A saída do estado de consciência necessário para praticar o kyudô acontece aos poucos.

Diferentemente de outras artes marciais, no kyudô não se utilizam distintivos ou faixas. Porém, existem níveis de proficiência. Nas escolas japonesas, os alunos podem avançar do quinto Kyu (Gokyu) ao primeiro Kyu (Ikkyu). Já os adultos seguem diretamente para os níveis de Dan. Eles podem sair do primeiro Dan (Shodan) até o décimo Dan (Judan).

Os arqueiros que conseguem feitos notáveis recebem o título de Shogo, dividido em três níveis. O primeiro nível é o de instrutor, chamado de Renshi. Para serem considerados professores, ou Kyoshi, os praticantes precisam demonstrar habilidade técnica e capacidade de liderança. Aqueles que possuem uma conduta irretocável, dignidade e discernimento são reconhecidos como Hanshi (mestre). 

Shin-Zen-Bi

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Os objetivos máximos do kyudô são chamados de Shin-Zen-Bi. O cuidado consigo mesmo e com os outros, permite que o arqueiro alcance a boa moral. Cada flecha arremessada na direção do alvo simboliza um passo rumo à união dele com o absoluto. Este caminho percorrido permite que a verdade (Shin) seja alcançada.

A bondade (Zen) é a manifestação da ética do kyudô. Para o filósofo Confúcio, a etiqueta (Rei) exige a ausência de conflitos. A mente do kyudoca, mesmo no cotidiano, precisa estabelecer relações harmoniosas independentemente das circunstâncias. A manutenção da paz e serenidade consigo mesmo e com os outros deve ser cultivada. O silêncio também é importante para que o tsurune, o som da corda do arco, seja ouvido.

A harmonia entre todos os movimentos necessários para que a flecha seja atirada estimula o senso estético. A beleza (Bi) surge do equilíbrio entre os movimentos, sentimentos e espiritualidade. Ela surge de forma natural e espontânea, quando o arqueiro se torna moralmente honesto.

Difusão pelo mundo e cenário no Brasil

Assim como outras artes marciais, o kyudô ultrapassou as fronteiras japonesas. A realização de competições internacionais foi essencial para a disseminação da modalidade. Criada em 2006, a Federação Internacional de Kyudô, ficou responsável por organizar a Copa do Mundo de Kyudô, realizada a cada quatro anos. A quarta edição da competição está marcada para 2024, em Nagoya, no Japão.

Elisa Figueira, presidente da Associação Brasileira de Kyudô, relata que descobriu a arquearia japonesa por intermédio de um colega, pouco antes de um intercâmbio no país asiático. “Comecei a prática no dojo da Universidade de Estudos Estrangeiros de Tóquio, em 2006″. Depois de voltar ao Brasil, ela e o professor Nobuo Yanai, criaram o primeiro dojo de kyudô do Brasil no Rio de Janeiro, em 2008.

Ela acredita que a necessidade de um espaço físico grande e o uso de equipamentos importados do Japão, são os fatores que dificultam a difusão do kyudô no Brasil. “Faz sentido que o crescimento não seja tão simples como o de artes como o judô e o caratê, ou até mesmo o kendô, que também tem a dificuldade do material”. Elisa ainda acrescenta o baixo número de pessoas qualificadas para o ensino das técnicas.

Mesmo com estas adversidades, a associação conseguiu expandir o ensino do kyudô pelo território brasileiro. Atualmente, existem grupos praticantes em São PauloBrasíliaBahia, Paraíba, ParanáRio Grande do Sul e Santa Catarina. Em 2014, o Brasil conseguiu seu resultado internacional mais expressivo. Na segunda edição da Copa do Mundo de Kyudô, o brasileiro Igor Devulsky Prata conquistou a medalha de prata na categoria de iniciantes.

Medalhistas do mundial realizado em Paris, na França, em 2014. Da esquerda para a direita: Isabelle Rosaz (medalhista de bronze), Akos Nagy (medalhista de ouro) e Igor Prata (medalhista de prata). [Imagem: Reprodução/Site Federação Internacional de Kyudô]

Questionada sobre as expectativas para a próxima edição, Elisa lamenta a impossibilidade do Brasil participar como grupo. “Ainda não somos oficialmente membros da Federação Internacional de Kyudô. Nós submetemos a documentação necessária para filiação em 2021, mas, por causa da pandemia, a avaliação das novas solicitações foi suspensa por muito tempo e toda essa parte continua atrasada, infelizmente.” Porém, ela reforça que algumas pessoas irão competir e representar o Brasil nas categorias individuais.

Além das competições, a arte marcial também conquistou o público dos animes. Em 2018, o mangá Tsurune: Kazemai Koukou Kyuudou-bu — Clube de Kyudô do Colégio Kazemai — de Kotoko Ayano ganhou uma adaptação pelo estúdio Kyoto Animation. A história aborda a relação de amizade entre os garotos do clube e a tentativa de Minato Narumiya, personagem principal, em superar seu “pânico de alvo”, condição psicológica que o impede de arremessar as flechas.

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Autora: Julia Martins.

Fonte: Jornalismo Júnior/USP.