Relatos de retiro espiritual à organização política apontam como identificar condutas sectárias.
Lançado no início de 2023, o podcast documental “O Ateliê”, de Chico Felitti, desperta curiosidade ao investigar uma suposta escola de arte. Localizada no Centro de São Paulo, alguns ex-alunos a reconhecem como “seita”. O fundador e dirigente do espaço, Rubens Espírito Santo, que exige ser chamado de “mestre” por seus “discípulos” (alunos), é acusado de abusos físicos, sexuais, psicológicos e exploração financeira.
Nome do método de ensino utilizado no Conglomerado Atelier do Centro (C.A.C.) leva sigla do líder Rubens Espírito Santo (R.E.S.) [Imagem: Reprodução/Facebook]
A principal denunciante é Mirela Cabral, uma jovem artista formada em Comunicação Social com habilitação em Cinema pela Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP). Ao podcast, ela conta que adentrou o mundo do Ateliê com 24 anos e só conseguiu desprender-se depois de quase três anos.
A maioria dos integrantes são jovens universitários de classe média-alta, como Mirela. Essa homogeneidade presente no grupo pode suscitar uma questão: existiria um público mais vulnerável à cooptação por seitas?
Em entrevista à Jornalismo Júnior, Ana* relata que o caso do Ateliê despertou uma lembrança desconfortável. Aos 16 anos, participou de um curso de yoga na Vila Madalena em que o professor dava “selinho” nos alunos ao final das aulas. “Ele vinha para dar tchau e se você estivesse disponível beijava-o de volta. Homem, mulher, todo mundo.” De início, Ana achou o hábito estranho e ignorou a conduta. O professor, entretanto, “agia como se o gesto fosse muito natural”, conta.
Frente ao comportamento dos outros alunos, a jovem passou a sentir-se “careta” e confessa que um dia também beijou o professor, mas arrependeu-se. Como gostava da aula, Ana acreditava que essa conduta diferenciada era apenas “parte do processo”. De acordo com ela, “quando se trata de um território novo, você não sabe muito o que esperar, então entra na onda para entender.”
O método de ensino utilizado nas aulas, criado pelo próprio professor, era chamado de “yoga livre” e consistia em realizar a prática sobre uma rede. “Ele é aquele professor que incentiva você a ultrapassar o próprio limite. Eu ficava apreensiva em fazer algumas posições e ele insistia, falando que era um medo só da minha cabeça”, relembra Ana. Alguns alunos, com idade média de 30 a 40 anos, frequentavam as aulas há muito tempo. Atualmente, o lugar encontra-se fechado.
Ainda que a entrevistada não tenha vivenciado o grupo na sua totalidade, a conduta da aula e o perfil do professor apontam indícios de práticas sectárias, isto é, de seita. A psicóloga norte-americana Alexandra Stein, após fazer parte de uma seita marxista-leninista por 10 anos, especializou-se em extremismo ideológico e cultos. O mapa mental a seguir ilustra os cinco pontos primordiais, elaborados por Stein, para definir tais grupos.
O líder exerce controle sobre o grupo ao alternar abordagens de afeto e atenção com altos níveis de estresse e medo [Imagem: Arquivo Pessoal/ Marina Giannini]
O professor de História Contemporânea da USP, Lincoln Secco, destaca uma característica que garante a prosperidade desses grupos: a dificuldade de a vida concreta colocar à prova as previsões de uma seita. “As aspirações materiais são traduzidas em formas de escapismo pretensamente separadas do mundo”, explica. “O indivíduo pode, ao mesmo tempo, ter um cotidiano ordinário e sentir-se parte de um universo oposto a este”.
Secco ainda esclarece que apesar de a vida ser essencialmente prática, há uma série de mistérios que não possuem explicação racional. “É nessa zona cinzenta que podem aparecer seitas”, adverte o professor.
“Eu estava nos bastidores de algo político grande”
Um ano após a aula de yoga, Ana conheceu uma “comunidade urbana” que se enquadra nos critérios apontados pela psicóloga Stein. Buscando inteirar-se na luta política, entrou para uma organização de esquerda da qual permaneceu por dois anos como colaboradora, participando de manifestações, por exemplo. “Quem sabia que eu fazia parte achava muito legal, eu estava nos bastidores de algo político grande. Mas as pessoas não sabem realmente como este grupo funciona”.
À medida em que contribuía mais, Ana era chamada para participar com maior frequência: “É possível chegar em lugares de privilégio lá dentro, então realmente cativa”. Por um final de semana, ela viveu em uma dessas “comunidades” da organização; uma casa compartilhada na qual os integrantes moravam sem ter que pagar aluguel. No início, a jovem considerou que esse modo de vida poderia fazer mais sentido do que a forma “conservadora” em que vivia. “Eles dividiam até armário”, conta.
Os moradores tinham pouca autonomia financeira e a vida alternativa demonstrava ser, de acordo com Ana, a “romantização de um perrengue”. “Eles trabalhavam em um escritório o dia inteiro sem remuneração, mas diziam que não era trabalho porque era anticapitalista.” O grupo respondia a um único homem, o dirigente da organização.
No momento em que ele chegou, Ana relata que todos reuniram-se em uma roda, mas ninguém de fato conversou. “Só o líder falou por duas horas e todo mundo ouvia-o assim, [extasiado]”. Este homem, porém, não trabalhava como os outros. “Ele não cozinhava e sujava propositadamente a casa. Ficava fumando um cigarro atrás do outro e batia as cinzas na almofada. Era claramente uma figura de poder, mas ninguém falava”.
Ana relata que o público alvo dividia-se entre “playboys revolts” e pessoas em maior vulnerabilidade, essas enxergavam na proposta anticapitalista uma oportunidade de viver melhor. Após a experiência, a jovem foi se distanciando gradativamente do grupo. Ser próxima da família e realizar muitas outras atividades mantiveram-na menos inserida nesse novo ambiente. “Eu era revoltada, mas ainda tinha que prestar conta para minha mãe. Ela me mataria se eu dissesse que ia me mudar para uma comunidade urbana”.
O caso desperta atenção para um atributo que seitas julgam possuir: a capacidade de sanar angústias existenciais. Pertencer a esses grupos é, ao mesmo tempo, obter respostas. Hoje, Ana percebe como há sempre alguém ditando verdades e o caminho necessário percorrer para alcançá-las. “Acreditar no líder é o primeiro passo”, afirma.
Ritual alucinógeno
Ana não foi a única a perceber que o grupo do qual fez parte poderia configurar uma seita. Aos 20 anos, Júlia* conheceu um retiro que envolvia certa “planta de poder”. A proposta consistia em participar de duas cerimônias nas quais a substância era ingerida, a fim de “entrar em contato com emoções e pensamentos que não se tem normalmente e entender conexões da vida”. A experiência tinha duração de um final de semana e era realizada em local distante de centros urbanos.
Durante o ritual, os participantes permaneciam deitados, como se estivessem sonhando, enquanto um líder explicava o significado das visões que cada um tinha. Para Júlia, foi uma experiência interessante, porquanto permitiu que ela se conectasse com a própria espiritualidade. Uma vez no retiro, entretanto, admite que participar das cerimônias não se mostrava opcional.
Era necessário passar por uma aprovação de nome na qual ele era “sentido” como bom ou não. [Imagem: Banco Pexels/ Dominika Roseclay]
Caso o sujeito fosse admitido e escolhesse comparecer, era para “fazer o que o líder estivesse falando para fazer. Não podia estar lá e não participar”, relembra Júlia. Ainda que fosse permitido ir embora, ela relata que dirigir em tais condições era impossível. “No dia seguinte eu nem conseguia comer”, confessa.
Havia uma estrutura hierárquica em torno do líder cuja “missão divina”, de acordo com ele, era “guiar pessoas através dessa planta para o bem, fazendo retiros”. Alguns não compareciam apenas em um final de semana, como Júlia, mas “circulavam” em torno dele, participando de viagens ou até recebendo-o nas próprias casas.
Letícia Morello, psicóloga mestra em distúrbios do desenvolvimento e especialista em neurociência social, esclarece como as noções de poder e subordinação são determinantes para distinguir os vínculos professor-aluno e mestre-discípulo. “No estabelecimento de uma relação adequada há uma hierarquia situacional”, explica. Ainda que o professor possa estabelecer regras de comportamento, Morello pontua que a partir do momento em que a aula termina ele não detém poder algum sobre seus alunos.
Já na relação mestre-discípulo, o grau de controle é elevado e a hierarquia é percebida como definitiva. De acordo com a psicóloga, “o mestre age com superioridade e determina como seus discípulos devem se comportar. Ele não aceita questionamentos e se dá o direito de punir aqueles que não seguirem suas orientações.”
“Usar roupa curta é como oferecer cerveja a um alcoólatra”
Outra característica específica de uma seita é a complexidade em definir o seu “objeto de estudo”, ou seja, sua proposta. É comum a prevalência de temas subjetivos como religião, arte, saúde e autocuidado. Por serem assuntos difíceis de delimitar, os parâmetros de conduta passam a ser uma linha tênue. No caso do Ateliê, os alunos não sabiam se posar nu, em um suposto ensaio artístico para o grupo, fazia parte do “método” de arte utilizado.
A primeira entrevistada, Ana, descobriu pela internet um retiro Hare Krishna e resolveu conhecê-lo durante as férias da faculdade. Ela conta que tinha muito interesse, ainda que não soubesse definir tal movimento religioso. O retiro oferecia uma experiência espiritual e filosófica, assim como cursos de bioconstrução, horticultura e yoga. Por R$ 200, comprou o pacote de duas semanas, mas acabou retornando para casa em poucos dias.
Era um sítio distante, de difícil acesso. Ao chegar, a jovem relata que estava nervosa e sentia-se desconfortável; “não consegui dormir naquela noite, acho que tive um ataque de pânico”. No dia seguinte, entretanto, experienciou o completo oposto: “eu fiquei muito bem, foi um dos momentos de menor ansiedade da minha vida.” Neste lugar de uma natureza deslumbrante, o ritmo era outro e as pessoas estavam sempre bem humoradas. “Por alguns dias foi muito utópico”, recorda.
Algumas características faziam do retiro uma experiência singular. Dormia-se no chão, não havia espelho, o banho era no rio e as comidas não tinham cebola ou alho por serem ingredientes energéticos. Ao mesmo tempo, algo lhe parecia estranho. O líder do grupo, Maharaj, não trabalhava como os outros. “Ele não lavava nem o próprio prato, as pessoas disputavam para limpá-lo”, relata Ana. A jovem ficou perplexa ao descobrir que o “sabão” utilizado era um pó feito de cocô de vaca seco, cinzas e terra, sob a justificativa de ser uma mistura bactericida.
O líder do grupo passava horas rezando para Krishna, o deus hindu representado em estatueta [Imagem: Hari Mangayil/Pixabay]
A fim de que os integrantes permanecessem espiritualmente focados, práticas sexuais eram proibidas no retiro, assim como o uso de roupas curtas. De acordo com o maharaj, vestir-se dessa maneira era como “colocar cerveja na frente de um alcoólatra”.
Ana relembra que o celibato aparentava ser uma restrição difícil, pois até “passar um creme no corpo era sugerido por eles de maneira sexual”. Os moradores tinham um perfil pouco questionador: “Eu perguntava alguma coisa e eles respondiam de uma maneira muito certa, como se não houvesse outra verdade possível”.
A chegada de um casal, que vinha fugido de um retiro tântrico, mudou a perspectiva da Ana a respeito do grupo. Ao invés de considerarem aquele ambiente mais razoável, ambos questionaram as condições em que as pessoas viviam. Esse olhar externo fez a jovem perceber a “cilada” na qual tinha se metido e os três decidiram ir embora. Hoje, Ana compreende que acostumar-se facilmente a novas condições é uma característica que a tornou mais “tolerante” a essas experiências.
Na mira do guru
Há poucas semanas, veículos noticiaram internacionalmente a morte de centenas de membros de uma seita cristã no Quênia. As pessoas faleceram, principalmente, devido a um jejum total para “conhecer Jesus”. Frente a casos extremos como esse, é comum o pensamento de que “eu nunca cairia em uma seita”. Tal concepção, entretanto, contribui para o desenvolvimento de um imaginário coletivo restrito.
Os relatos apresentados nesta reportagem apontam como tais grupos podem estar mais próximos do que se imagina. Ainda assim, identificar um “público-alvo” homogêneo aparenta ser uma tarefa complexa.
O historiador Lincoln Secco explicou que seitas podem procurar as mesmas pessoas que outras organizações, mas oferecem vantagens imaginárias que formas de associação diferentes não conseguem ofertar com a mesma intensidade. Exemplos disso, segundo ele, são “o sentimento de exclusividade, de dominar conhecimentos ocultos só para iniciados, de amparo mútuo e de participar de rituais ligados por gerações passadas”.
Secco também levantou a possibilidade de “pessoas desajustadas” ou “adolescentes sem segurança material e moral” estarem na mira de gurus. A tendência, de acordo com o professor, pode ser explicada porque “a adolescência é uma fase de incertezas”.
Ao refletir sobre o que a levou a fazer parte desses grupos, Ana pondera que encontrava-se “com sede de viver”, procurando novas respostas em um momento de maior independência. Ela acrescenta que algum aspecto que ressoa dentro de si, “você acha algo que parece um caminho e isso te leva”. A respeito da organização política, pretendia trabalhar na área; em relação ao grupo hare krishna, ainda que não tivesse referência sobre o assunto, sobrava-lhe curiosidade.
Ana e Júlia compartilham da opinião de que a falta de conhecimento prévio foi um fator importante para não terem identificado tais grupos como seitas desde o início. “Hoje em dia eu não entraria nesses ambientes, já consigo ver as ‘bandeiras’ bem antes. Talvez nem tanto pela idade, mas por ter repertório”, relata Ana.
A psicóloga Letícia Morello pondera que a idade pode ser um fator de risco sob certa perspectiva. Pessoas mais jovens, por terem menos experiência, estão mais adaptadas a seguir ordens de seus pais ou professores e podem falhar em reconhecer sinais de desrespeito. Ela pontua, contudo, que “isso não se aplica a todos os jovens”.
Morello considera que cada seita possui um “público-alvo” específico, a depender de sua ideologia. Ela ressalta que um adulto com um padrão de comportamento pouco questionador, por exemplo, pode ser alvo de cooptação.
Ao adentrar um novo ambiente, é necessário estar atento e manter-se questionador. Para auxiliar no reconhecimento de uma seita, a psicóloga elaborou algumas perguntas. A reflexão pode também ser aplicada para diferenciar ambientes saudáveis de relações profissionais ou “amizades” que possam ter efeitos negativos sobre a saúde mental. O esquema a seguir ilustra as questões de Morello.
Seita: degrau por degrau [Imagem: Arquivo Pessoal/ Marina Giannini]
A especialista em neurociência social também aponta semelhanças entre o modo de comportamento dentro do ‘Ateliê’ e uma relação abusiva. Nesse caso, as agressões e humilhações eram justificadas pelo “método de ensino R.E.S.”, que tanto a vítima quanto os demais presentes acatavam. Dessa maneira, o comportamento violento era reafirmado como “normal e até mesmo necessário”, pontua Morello.
A existência de elementos adicionais, como consenso grupal sobre certos princípios ideológicos, faz a entrevistada não definir uma seita como um relacionamento abusivo. Ainda assim, destaca “o isolamento da vítima de sua rede de proteção”, como um ponto em comum.
Ao final, a psicóloga afirma que nenhum ambiente será completamente e 100% do tempo aversivo. É possível que momentos de abuso intercalem-se ou coexistam com benefícios oferecidos. Dentre essas vantagens, ela destaca: “prestígio, status, recompensas financeiras e promessas de benefícios espirituais”. Compreender que “as relações podem ser agradáveis na maior parte do tempo” é, para Letícia, tão importante quanto estar atento aos sinais apresentados.
*Nome fantasia, pois a pessoa entrevistada optou por não ter a própria identidade revelada
Autora: Marina Giannini.
Fonte: Jornalismo Júnior/USP.