O cinema no processo de redemocratização do Brasil

A luta contra a ditadura teve como importante arma os filmes, que tiveram um papel importantíssimo na crítica e no esclarecimento da situação social e econômica produzidas pelo regime.

Ditadura Militar brasileira ocorreu durante o período de 1964 a 1984. Este momento da história foi marcado pela violência, repressão e, ao mesmo tempo, pela luta e resistência de uma militância que brigou fortemente por sua liberdade de expressão e por seus direitos. O enfrentamento ao regime se manifestou de diversas maneiras: luta armada, guerrilhas, por meio da política, de comícios e, uma grande parte, a partir das produções artísticas. A arte foi um instrumento de combate, pois, através dela, a juventude conseguia expressar sua indignação, seus sentimentos, suas propostas políticas, sua insatisfação com o regime e clamar pela volta da democracia. As produções artísticas se expressaram em diversos campos como, por exemplo, na música, no teatro, artes visuais, literatura, moda, no cinema, etc. O cinema no processo de redemocratização, mais especificamente, se manifestou, principalmente, expondo a situação em que o Brasil vivia durante o regime, contribuindo para que a população tivesse noção das raízes deixadas pela ditadura militar. Duas produções audiovisuais brasileiras que são exemplos por seguirem este papel evidenciador são Bye Bye Brasil (1980) e O Homem que Virou Suco (1981).

Bye Bye Brasil (1980) é um filme dirigido por Caca Diegues, considerado um dos clássicos do cinema nacional. O enredo conta a história da Caravana Rolidei, um caminhão que levava entretenimentos circenses às cidades do interior do Brasil. Liderado por Lorde Cigano (José Wilker), o grupo composto por Salomé (Betty Faria) e Andorinha (Príncipe Nabor) corria pelos sertões brasileiros apresentando seu espetáculo. Ao passarem por uma pequena cidade, encontram Ciço (Fábio Júnior), sanfoneiro talentoso que não suporta o lugar onde vive, e Dasdô (Zaira Zambelli), esposa de Ciço. O sanfoneiro consegue convencer Lorde Cigano a se juntar à Caravana Rolidei e, junto de sua esposa, começam a viajar Brasil adentro com a caravana. Através do enredo, diversas facetas do Brasil são apresentadas ao público e, ao mesmo tempo, a situação econômica e social do país são retratadas de forma muito fiel a realidade da época do regime militar.

Caravana Rolidey reformada [Imagem: Reprodução/Youtube/Tela Nacional]

O filme O Homem que Virou Suco (1981) é dirigido por João Batista de Melo e também é considerado um clássico do cinema brasileiro. O enredo fala sobre a vida de Deraldo (José Dumont), poeta natural do Ceará que vem tentar ganhar a vida em São Paulo. Para se sustentar, visto que a poesia não lhe dá muita renda, começa a buscar emprego, obrigando-o a enfrentar uma cidade preconceituosa e pouco receptiva para as pessoas do nordeste. Através do enredo, o filme discute questões de racismo, xenofobia, pobreza e violência de um período muito conturbado no Brasil.

Deraldo descendo as escadas da comunidade onde mora [Imagem: Reprodução/Youtube/Kâmera Libre]

Estes filmes fizeram parte de um movimento de extrema importância para o fim da ditadura. Produzidos e lançados entre o fim da década de 1970 e início da década de 1980, contribuíram de forma muito impactante para o processo de redemocratização do país, movimento este que se iniciou no fim do governo Geisel e se consolidou no Governo Figueiredo.

Contexto histórico

O governo Geisel durou de 1974 a 1979 e ficou marcado como  um período muito caótico no Brasil, em que o regime militar começou a sentir um certo desgaste e a ver sua legitimidade cada vez  mais questionada. O país sofria os efeitos da crise do petróleo de 1973 e, ao mesmo tempo, o governo tentava prolongar o crescimento econômico ao máximo, ainda que os recursos financeiros estivessem escassos. O grande investimento no Plano Nacional de Desenvolvimento II exigiu empréstimos em valores altíssimos e, consequentemente, houve uma alta na inflação, informação que foi maquiada pelo regime. 

As decisões econômicas tomadas pelo governo trouxeram consequências catastróficas à sociedade. O investimento em indústrias de base demorou para trazer retorno e grande parte da população continuou na miséria e pobreza. Além disso, maquiar o aumento da inflação gerou efeitos no ajuste do salário, causando outro arrocho salarial.

Esta situação econômica frágil foi a faísca para um movimento de insatisfação das classes mais pobres. As primeiras revoltas surgiram entre  1973 e 1974 e foram marcadas por demandas de carestia, ou seja, lutavam por  alimentação, saneamento básico, transporte, coleta de lixo e dignidade. A adesão ao movimento, porém, foi baixa, na medida em que apenas as pessoas de baixa renda marginalizadas e moradores das periferias participaram da luta. Posteriormente, esse movimento serviu de inspiração para outros que surgiram, como diz Marcus Vinícius Assis da Costa, historiador formado e pós-graduado em História Social na Universidade de São Paulo: “Isso [movimentos ligados a grupos de baixa renda] vai aumentando até eclodir em 79. Quando a crise se agravou muito mais, começam as greves operárias efetivamente e os movimentos [pela redemocratização] também começam a se organizar.”

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Caça ao estudante. Rio de Janeiro, 1968. Fotografia de Evandro Teixeira. [Imagem: Reprodução/Acervo IMS]

No fim do governo Geisel, o desgaste cresceu muito. Além da situação econômica fragilizada, o modo operante violento e repressivo da política não era mais tolerado. Geisel precisou fazer grandes mudanças, entre elas o controle dos militares, visto que atos bárbaros comuns na ditadura, agora eram motivos de isolamento político. Antigos grupos apoiadores da ditadura como os setores médios, a elite burguesa e os políticos começaram a distanciar-se politicamente e o governo militar se viu sem sua sustentação.

Acompanhando esse contexto, o movimento democrático ascendeu. Durante o fim do governo Geisel e todo o governo Figueiredo houve uma mobilização social em massa, consolidando a bandeira pela redemocratização. O movimento das “Diretas Já” foi a expressão de uma luta unificada contra a ditadura. Esta força e adesão pela redemocratização se deu de forma significativa por conta das produções artísticas.

Papel das produções artísticas na redemocratização

O movimento pela redemocratização tomou proporções gigantescas e, como consequência, diversos grupos com ideais completamente diferentes se reuniram. As produções artísticas tiveram um importante papel nessa reunião, muito devido ao caráter representativo, presente nas obras, de um sentimento comum entre a população brasileira. De acordo com Marcus Vinícius Assis da Costa, “[Os artistas] captaram exatamente os sentimentos, as sensações, e conseguiram expressar isso, socialmente. Ajudaram a reproduzir críticas que talvez em alguns grupos sociais não fossem tão comuns. Então, ajudou a canalizar e a proliferar diferentes críticas à ditadura militar, a socializar as críticas, a popularizar as críticas. E, principalmente, também as frustrações.”

Esta canalização dos sentimentos era feita de diversas maneiras. Uma delas foi um tipo de produção artística que evidenciasse a própria realidade miserável brasileira, expondo os diversos problemas do país. Estas produções concretizaram uma mudança na forma de se criticar o regime. Foi instituído um modo muito mais sutil, cativante e humano de se condenar o governo, gerando uma maior adesão do povo à luta pela democracia. “Antes, falando de 50 e 60, eram comunistas intelectuais, que às vezes até tinham uma vida mais simples, mas que criticavam o regime de forma universal, condenando o capitalismo e lutando pela revolução. Ou seja, não era uma crítica que vinha de baixo, era uma crítica que vinha de cima. Com o crescimento da desigualdade social, com crescimento da pobreza e na contradição do crescimento econômico, a esquerda vai pensar: a gente não tem que ficar no nosso grupinho fechado, tem que descer, ir para a base operária.”, de acordo com Marcus Vinícius Assis da Costa.

Passeata dos Cem Mil. Cinelândia, Rio de Janeiro, 1968. [Imagem: Reprodução/Acervo IMS]

cinema se utilizou muito deste caráter representativo para criticar o regime. Os filmes da época, tentando trazer essa realidade social do país, se assemelhavam a documentários do cotidiano brasileiro, na medida que mostravam a vida do camponês e do operário com muita veracidade. A população, por causa disso, compreendia as obras e se identificava com elas, o que aumentava a adesão à luta pela redemocratização.

A representação da realidade e seu poder persuasivo

É perceptível que, nos filmes Bye Bye Brasil e O Homem que Virou Suco , a Ditadura Militar não é tratada de forma direta. Nos dois longa-metragens, nenhuma repressão militar, tortura ou medidas políticas dos governantes são representadas. Isso não quer dizer que não são excelentes representações da época e que não evidenciam as diversas mazelas deixadas pelo regime na sociedade. A própria escolha de não mostrar explicitamente o contexto militar é que traz a beleza e genialidade dos filmes

Não é necessário mostrar imagens de soldados batendo em civis para evidenciar a violência da época, a forma como Deraldo é tratado pelos patrões em O Homem que Virou Suco deixa muito claro como eram as relações. Não é preciso exibir imagens da censura para mostrar a repressão, o modo como o oficial de justiça impede Deraldo de vender sua poesia na rua revela a falta de liberdade do momento. Não é fundamental explicar todas as leis criadas pelo regime que devastaram grande parte da Amazônia e dilaceraram a cultura indígena. Em Bye Bye Brasil, a condição na qual o grupo de indígenas é apresentado, a forma como eles são explorados por empresas estrangeiras e os projetos da estrada transamazônica representados demonstram o descaso e o caráter racista do regime. E, não é necessário mostrar os dados do fracasso econômico gerado pelos planos do regime, a miséria das cidades do sertão em Bye Bye Brasil e as condições de vida do Deraldo em O Homem que Virou Suco evidenciam a pobreza.

A crítica apresentada nos dois filmes, portanto, não é fundamentada em uma forma complexa e criteriosa de salientar os problemas, mas é construída a partir da realidade. Ao apresentar um contexto social degradado, é feita a divulgação de um lado do Brasil desconhecido por muitos e, ao mesmo tempo, que permite a identificação por outros. As histórias encantadoras e fascinantes dos filmes não convencem o público através da face explícita do regime, elas cativam a partir da catalisação de um sentimento de compreensão e empatia baseada na própria vivência de quem as assiste. Esta sutileza ao criticar o regime é que evidencia o poder destas obras. Por não retratar o “óbvio” e explorar esse caráter representativo de uma realidade social vivida por muitos brasileiros, a contribuição destes filmes ao movimento pela redemocratização conseguiu ser muito maior. Assim, Bye Bye Brasil (1980) e O Homem que Virou Suco (1981), além das suas belezas poéticas e cinematográficas, tiveram um importante papel na história do Brasil.

Autor: Gabriel Bussolotti Silveira.

Fonte: Jornalismo Júnior/USP.